Killers of the Flower Moon: Comédia Negra ou Murro Emocional?

Muita tinta tem feito correr o último filme do veterano Martin Scorsese, criador de obras primas, mas também de obras menos primas, que, devido a um empolamento mediático difícil de explicar, mas que começa a ser comum nestes dias, (serão Oppenheimer e Barbie mesmo obras primas do cinema?) não sai das bocas dos entusiastas da sétima arte, nem dos meros curiosos, sendo difícil não se ouvir a pergunta “o novo filme do DiCaprio vale a pena”? Seja devido ao seu longo tempo de produção que começou em 2016/17, seja devido às suas 3 horas e meia (como se fosse a primeira vez que um filme comercial ousasse tal coisa), ou mesmo devido à colaboração Scorsese/DiCaprio/De Niro, parece que Killers of the Flower Moon será a escolha anual de muita gente para ir ao cinema. O filme tem vindo a ser recebido de forma extremamente positiva tanto pela crítica como pelo público, existindo ainda assim algumas vozes dissonantes que o apelidam mesmo de um dos piores filmes do veterano, mal filmado e mal interpretado. Pensamos que no meio está a virtude.

Assistindo às suas 3h30 numa mesma cadeira de cinema, é difícil o pensamento não derivar. O bichanar da fila de trás retira por vezes a concentração e eis que me questiono (e raramente escrevo na primeira pessoa) se seria suposto a portentosa nova obra de Scorsese permitir que um simples bichanar em sala cheia – não um balde de pipocas a cair ou um telemóvel encandeante – retirasse a concentração ao espectador. A minha conclusão foi que, apesar de Killers of the Flower Moon estar repleto de brilhantismo (já lá iremos), chegamos a um ponto em que é difícil separar a obra dos artistas que a compõem, isto é, olhar para a tela e deixar de ver Leonardo DiCaprio, o actor, um dos melhores da sua geração, “mascarado” com uma dentadura postiça e uma queixada caricaturalmente pacóvia. De igual forma temos De Niro, um ícone que se funde com o cinema em si, que estamos tão habituados a ver ao longo da nossa vida que se torna difícil separar o actor da sua personagem de manda chuva. Por fim Scorsese, um mito vivo da Nova Hollywood que, à medida que a idade avança, atrai cada vez mais para si os holofotes, temendo nós, talvez, que o seu próximo filme possa ser o último. Killers of the Flower Moon não consegue deixar de ser tudo isso: um produto bem embrulhado, esforçado, cheio de boas intenções para fazer crescer o cinema enquanto indústria. O tempo o dirá, mas aparentemente, e para já, conseguiu ter esse efeito.

Desmontando o filme em si, não deixa de ser curiosa a percepção tão díspar que ele deixa em diferentes espectadores. Killers of the Flower Moon, adaptado de um romance homónimo de 2017, trata a história verídica da tribo nativa americana Osage, nos anos 20, após esta ter descoberto na sua reserva em Oklahoma grandes quantidades de petróleo, tornando a tribo milionária e consequentemente atraindo os brancos, quais abutres, que rondam a presa de forma gananciosa. Impressiona o facto como, sem escrúpulos, os colonos americanos se aproveitaram do sistema para se apropriarem da riqueza dos Osage, seja através de casamentos, seja através de assassinatos e inércia das forças da lei. Essa foi uma das várias reacções do público ao filme: o murro emocional difícil de digerir (mas não vimos também já muito pior?), em que a falta de empatia é gritante e a maldade e manipulação imperam. Essa será a primeira camada do filme de Scorsese, mas Killers of the Flower Moon é muito mais que isso, para o bem e para o mal.

Regressemos por momentos a Goodfellas, Raging Bull, Wolf of Wall Street, Departed ou mesmo o recente Irishman, entre outros. O seu denominador comum, além do óbvio mundo do crime etcetera e tal, é o toque de comédia negra. A infame caricatura dos espertalhões, dos broncos, dos idiotas fazedores de expressões faciais. Recordemos a gargalhada de Ray Liotta, a questão para Joe Pesci “did you fuck my wife?” em Raging Bull ou as conversas de dois velhos de pijama entre De Niro e Al Pacino em Irishman. E é nesse registo clássico de Scorsese que, na nossa (minha) opinião, Killers of the Flower Moon é filme de excepção. Aliando a dificuldade de deixar de ver o filme como uma representação farsante levada a cabo por 3 lendas, como acima descrito, resta a delícia negra paralela ao drama emocional que o compõe. Um DiCaprio bronco e perdido, manipulado por um manda-chuva De Niro que lhe puxa as orelhas e dá açoites no rabo. Um Brendan Fraser advogado a gritar de forma incisiva mas deliciosamente embaraçosa. Para não falar do outro irmão bronco Byron (Scott Shepherd), o desgraçado Blackie (Tommy Schultz) que arca com todas as culpas e principalmente John Ramsey (Ty Mitchell), o cowboy zarolho, qual pirata, pai de 7 filhos e que não tem onde cair morto. Em Killers of the Flower Moon todos os homens que compõe esta farsa são representados de forma deliciosamente caracterizada, demonstrando, sem margem para muitas interpretações, a hierarquia social em que os peixes graúdos comem os mais pequenos, de forma impiedosa e sem pensar duas vezes. De Niro é esse peixe graúdo, em mais uma interpretação sólida que demonstra que ainda está para durar, por entre as comédias ligeiras e os dramas de maior complexidade.

Do outro lado temos os Osage, realisticamente representados como animicamente frágeis, corrompidos pelas doenças trazidas pelos colonos europeus. Nota particular para a família de Mollie (Lily Gladstone, numa interpretação popular que pisca o olho a óscar) e a desilusão da moribunda matriarca que observa lentamente as suas 3 filhas a cair nas garras dos abutres. Lendo a forma como o filme está a ser recebido pelo Mundo fora notamos que a ligação à história norte-americana e o confronto/análise de culturas lhe atribui, nesse país, um peso dramático superior ao que um europeu dificilmente sentirá. Na realidade Killers of the Flower Moon, além de cinema, é também história e denúncia, nunca deitando felizmente a perder a linguagem cinematográfica em detrimento de pretensiosismos morais baratuchos que abundam cada vez mais nas produções do outro lado do Atlântico.

Enfim, é esta a multiplicidade de camadas e pontos de vista pela qual se poderá pegar no filme de Scorsese. A grande dificuldade é decidir se é ou não um grande filme. Se por um lado o filme é subsumível a vários elementos fortíssimos já expressos, por outro é difícil afirmar que a película funciona enquanto todo. Por outro lado ainda é – ainda – mais difícil negar que Killers of the Flower Moon não fica connosco seja por que motivo for, e negar o mérito a todas essas virtudes, que vão desde a comédia brejeira ao melodrama, do crime ao court movie, da interpretação ao peso dos seus protagonistas, à frente e atrás da câmara, enquanto figuras do cinema em geral. Killers of the Flower Moon é isso tudo, uma espécie de meta cinema que olha em simultâneo para dentro e para fora, e que deixa sem dúvida a sua marca.

David Bernardino