By the Stream e Juror #2 : À Margem do Riacho

Bruno VictorinoDezembro 17, 2024

 

“By the stream I dream in calm delight, and watch as in a glass,

How the clouds like crowds of snowy-hued and white-robed maidens pass,

And the water into ripples breaks and sparkles as it spreads,

Like a host of armored knights with silver helmets on their heads.

And I deem the stream an emblem fit of human life may go,

For I find a mind may sparkle much and yet but shallows show,

And a soul may glow with myriad lights and wondrous mysteries,

When it only lies a dormant thing and mirrors what it sees.”

Paul Laurence Dunbar, By the Stream

 

Do alto dos seus 94 anos Clint Eastwood apresenta-nos em Juror #2 mais um fascículo do seu relativamente prolífico período tardio. Paralelamente, o cineasta sul-coreano Hong Sang-soo, 30 anos mais novo e com 9 filmes realizados nos últimos 5 anos, expõe em By the Stream mais uma variação em torno da sua musa, a atriz Kim Min-hee. Apesar do oceano que os separa, geográfica, formal e tematicamente, existe algo aparentemente frívolo que une estes dois últimos trabalhos dos realizadores: a importância de um riacho no desenrolar da narrativa. 

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O riacho de Juror #2 é o local do crime de um alegado homicídio que se encontra em julgamento e no qual o protagonista do filme é um dos 12 membros do júri.  Pode-se considerar que o filme de Eastwood se enquadra no género courtroom drama, que nos deu alguns clássicos do cinema americano (Ford, Preminger, Lumet), mas a preocupação do realizador extrapola o mero apuramento da verdade ou as dinâmicas do sistema judicial. A análise ao funcionamento das instituições democráticas americanas volta a estar em especial evidência, bem como a dicotomia sociedade vs indivíduo e bem vs mal. Eastwood coloca-nos numa posição profundamente desconfortável, de ampla ambiguidade moral, transportando para o espetador o peso da culpa do protagonista, exposto ao dilema entre a assunção da responsabilidade dos seus atos, ainda que involuntários, e as pesadas consequências pessoais que tal despoletaria.

Se nos detivermos nos filmes mais recentes do realizador, tem sido recorrente a análise à (des)construção mitológica do herói americano personificado pelo homem médio, o regular guy, de American Sniper a Richard Jewell, passando por 15:17 Paris. Em Juror #2 o “herói” é-nos apresentado fundamentalmente pelo seu exemplar comportamento enquanto homem de família e marido. O filme inicia com a mulher do protagonista a entrar vendada (uma declarada alusão à deusa Themis, símbolo da justiça) no futuro quarto do filho, imaculadamente decorado pelo pai. Estabelece-se assim no espectador uma imagem idílica do personagem principal e do paraíso suburbano americano onde vive, que Eastwood se predispõe a progressivamente subverter. Paulatinamente é-nos desvendando um passado ligado ao alcoolismo que se junta ao comportamento moral e eticamente questionável quando confrontado pelo fardo da culpa e que o leva a socorrer-se de variados subterfúgios que o iludem e relativizam a imoralidade das suas (in)ações.

Juror #2, Clint Eastwood

 

O funcionamento do sistema judicial americano é problematizado, nomeadamente a composição dos 12 membros do júri, escolhidos de entre a população e leigos em assuntos jurídicos, mas responsáveis pela eventual condenação de um concidadão. Em sentido contrário ao protagonista a caracterização do arguido encaixa perfeitamente no estereótipo de alguém capaz de perpetrar o crime, adensando o dilema do júri e do próprio espetador. Simultaneamente, Eastwood aparenta reconhecer que, independentemente das evidentes falhas do sistema, será sempre preferível à anarquia potenciada pela sua inexistência. Mas é precisamente esta dúvida que assola a mente de Clint Eastwood, uma dúvida alicerçada no indivíduo mas que o transcende. Qual o papel das comunidades e sociedade contemporâneas no comportamento individual? O que é a verdade? O que é a justiça? Verdade e justiça caminham em paralelo? As questões ficam propositadamente em aberto e são magistralmente agudizadas pelos desoladores instantes finais do filme.

Juror #2, Clint Eastwood

 

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O riacho de By the Stream integra o ambiente vincadamente outonal do filme, onde a professora interpretada por Kim Min-hee vai sendo submetida a uma série de situações mais ou menos confrangedoras, relacionadas fundamentalmente com a relação intuída entre o seu Tio e a sua mentora e colega de profissão. Depois de em A Traveler’s Needs, protagonizado por Isabelle Huppert, ter tomado algumas liberdades formais distintivas da sua linha autoral, Sang-soo regressa agora à sua abordagem mais clássica, repleta de conversas em torno de refeições com personagens embriagados em soju.

By the Stream, Hong Sang-soo

 

Ainda assim, as repetições e variações narrativas habituais nos filmes do cineasta sul-coreano não se vislumbram aqui, sendo que as rimas subtis e pontuais que vão surgindo encontram eco precisamente no seu filme anterior (A Traveler’s Needs). Curiosa é também a abordagem narrativa relativamente mais convencional quando comparada com a sua filmografia mais recente, constatando-se uma progressão e linearidade invulgares ao cineasta.

Kim Min-hee surge predominantemente à margem em By the Stream. Do riacho, da pequena peça encenada pelo Tio e os seus alunos, do flirt entre o Tio e a colega, etc. Mas a câmara de Hong Song-soo não deixa de se focar frequentemente nela e na forma como vai reagindo às circunstâncias, concedendo-lhe um papel de espetadora ativa deste conto outonal. Num dos diversos diálogos à refeição a protagonista refere inclusivamente que se sente feliz sozinha, ainda que quase todo o filme seja composto por variações de situações amorosas, desde o caso do Tio ao aluno que foi afastado por estar envolvido simultaneamente com 3 colegas. Este desaparecimento do personagem assume um carácter literal na maravilhosa cena final do filme, precisamente na margem do riacho, antes do desarmante freeze frame que o finaliza. Esta aura misteriosa que assombra a protagonista remete-nos diretamente a On the Beach at Night Alone (2017) e é conjugada habilmente com o tom levemente humorístico que caracteriza Hong Sang-soo e que aqui especialmente justifica as reiteradas comparações com Éric Rohmer

O Tio que chega no início do filme e que parte no final. A partilha e choque entre gerações. As nuances e idiossincrasias das relações entre personagens. O amor. A vida. Como sempre em Hong Sang-soo todo um universo cabe nas entrelinhas das suas imagens. Tudo é aflorado e elidido na aparente banalidade do seu gesto. E restam os momentos de sublime simplicidade como a pequena dança de Kim Min-hee com uma folha caída da árvore ou a retumbante catarse das alunas depois da apresentação da peça.

By the Stream, Hong Sang-soo

 

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Regressando ao filme de Clint Eastwood e ao seu respetivo riacho. Juror #2 decorre na cidade de Savannah, Georgia. O riacho surge nos arredores da localidade, compondo a imagem idílica de paraíso suburbano que é perturbada pela hedionda tragédia ocorrida. As águas paradas e a aparência calma e verdejante da natureza contrastam vincadamente com o corpo ensanguentado da vítima, uma imagem perturbadora que a advogada de acusação utiliza para confrontar os membros do júri. Voltamos frequentemente ao riacho durante todo o filme, inclusivamente mediante uma invulgar “visita de estudo” que o júri faz em momento de impasse na decisão, e que vai contribuindo para o adensar do sentimento de culpa através da exposição à verdade dos factos.

Juror #2, Clint Eastwood

 

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Em By the Stream o riacho é a principal fonte de inspiração das produções artísticas da personagem de Kim Min-hee. A sua presença perpassa o filme, compondo diretamente diversos planos ou sendo diegeticamente intuída através do som do seu natural fluir. As imagens de Kim Min-hee junto ao riacho vão pontuando a narrativa, juntamente com planos da lua progressivamente mais cheia. A ação do filme decorre em Seul, capital sul-coreana, sendo que o riacho se encontra junto à universidade onde passamos parte significativa do filme e onde a protagonista reside e trabalha. É junto às suas margens que o filme respira das constantes cenas de refeições e diálogos entre os personagens. Um lugar onde Kim Min-hee surge sempre sozinha, frequentemente em planos gerais bastante afastados e que a fazem perder-se e diluir-se na imensidão do quadro.

By the Stream, Hong Sang-soo

 

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Apesar da ênfase que se pretende colocar no peso dramático do riacho em ambas as obras, importa sublinhar que, felizmente, nenhum dos cineastas tem por hábito fazer-se valer de simbolismos inócuos ou metáforas simplistas. Encontramo-nos perante dois pólos opostos do panorama cinematográfico internacional. De um lado um dos grandes mitos da história de Hollywood, um filme com selo do estúdio Warner Bros (ainda que plenamente negligenciado, tendo estreado em menos de 50 salas nos EUA), e com os meios inerentes a uma grande produção norte-americana. Do outro lado temos o relativamente celebrado autor sul-coreano, com relevância sobretudo num determinado nicho cinéfilo, sendo o próprio realizador o responsável por praticamente todas as tarefas associadas à feitura do filme (realização, montagem, banda sonora, etc.), facto latente nas imagens do(s) filme(s) e do seu carácter marcada e propositadamente artesanal.

Paradoxalmente é da aludida diferença no método que surge a aproximação. A depuração do gesto cinematográfico dos dois realizadores manifesta-se na praticamente total ausência de “estilo”, uma encenação despojada de qualquer formalismo que possa um dia ter caracterizado os autores Clint Eastwood e Hong Sang-soo. Os filmes do cineasta americano têm vindo a ser inclusivamente apelidados de telefilmes, pela limpidez e saturação das suas imagens digitais. Em Hong Sang-soo existe uma aproximação pronunciada à filmagem amadora, imagens de “qualidade” menor, também elas saturadas. Em ambos os casos, e mesmo considerando os resultados distintos, existe uma economia que é privilegiada em detrimento do embelezamento dos quadros ou do virtuosismo dos movimentos de câmara.

“And I deem the stream an emblem fit of human life may go, For I find a mind may sparkle much and yet but shallows show, And a soul may glow with myriad lights and wondrous mysteries, When it only lies a dormant thing and mirrors what it sees” diz-nos o poema de Paul Laurence Dunbar a propósito de um riacho. Em ambos os filmes os riachos são meros reflexos das respetivas realidades. Lugares que emanam paz e calma e se tornam inspiradores ou perturbadores,  mediante a ação dos homens que nas suas margens se perdem e encontram.

Juror #2, Clint Eastwood
By the Stream, Hong Sang-soo

 

Bruno Victorino