Joker: Folie à Deux, de Todd Phillips: Eu e a minha sombra

Hugo DinisOutubro 7, 2024

Não é fácil contextualizar o legado de Joker (2019) em 2024. Ostensivamente criado para ser uma adaptação do scorsesianismo insidioso ao mundo dos super-heróis e super-vilões que populava e continua a popular boa parte da produção criativa de Hollywood, não tardou a que fosse cooptado politica e socialmente. Joker: Folie à Deux começa, de resto, com um sketch animado ao estilo de Looney Tunes que procura recriar o episódio em que a personagem de Joaquin Phoenix é convidado do talk show de Robert DeNiro e acaba por atirar sobre ele. Todd Phillips apresenta este prelúdio com o título de “Me and My Shadow”, a história pouco velada de um indivíduo em permanente confronto consigo mesmo, na esperança que o homem vença a sombra, mas forçado a aceitar a derrota.

Nesse sentido, Folie à Deux parece o difícil segundo álbum daquela banda que se tornou desmesuradamente célebre a fazer música demasiado popular para o seu próprio gosto. Todd Phillips aparenta sobretudo renegar a ideia do Joker enquanto figura de contracultura, que simultaneamente procura desafiar o sistema e quer ver tudo a arder. Muito embora esse Joker possa não ter sido mais que um exercício em recriar, para um público Marvel, os Bickles e os Pupkins com quem Scorsese, Schrader, e Zimmerman conviviam, foi sobretudo a sugestão do perigo desse convívio que lhe trouxe algum sentido de energia e propulsão narrativa. Folie à Deux faz por renegar até isso: para quem vá ao cinema disfarçado de Joker ver o seu super-herói/vilão favorito mostrar o dedo do meio ao “sistema”, será confrontado com a literalidade devastadora de Phillips a dizer-nos que matar gente é mau e a saúde mental é o grande desafio social desta geração.

Para lá chegar, pegamos em Joker onde o antecessor nos deixou. A vida na prisão é previsivelmente horripilante, repleta de abusos da parte dos guardas prisionais liderados por um Brendan Gleeson sorridente e cantante. O Joker de Phoenix, agora absorvido na infâmia mediática dos seus actos, vive dividido entre o homem violentado e a personagem idealizada, a vítima que a sua advogada de defesa vê e o avatar de justiceirismo ou repugnância moral aos olhos do grande público. Com efeito, é o aparecimento de Lady Gaga que catalisa ainda mais essa divisão que Phillips vai martelando. O próprio interesse amoroso de Phoenix, que cai praticamente de pára-quedas na narrativa e que pouca ou nenhuma química tem com ele, recusa-se a vê-lo como algo mais do que o Joker destruidor.

Esta faceta romântica de Folie à Deux, ao invés de fazer por acentuar o isolacionismo forçado de Phoenix, é sobretudo utilizada como veículo de uma crítica social interessada em desmascarar a obsessão profundamente americana com o macabro e a figura do serial killer, muito ao estilo de Natural Born Killers, ainda que sempre com o pudor moral de tornar tudo o menos ambíguo possível para potenciais amantes da figura do Joker enquanto justiceiro social. De resto, tudo o que aqui poderia ser interpretado como formalmente arrojado é rapidamente anestesiado e desprovido de dentes para morder. Sim, Joker é um musical, mas carece quase por inteiro de composições originais e coreografias para os números que se sucedem sem grande critério ou sensação de apego emocional. Sim, Joker evolui para uma espécie de drama de tribunal, mas com uma trama procedimental praticamente inexistente e aparentemente apenas com o pretexto de rever algumas das incidências do filme antecessor.

Enquanto que a natureza despudorada com que Scorsese e Zimmerman criaram um Pupkin obcecado pela ribalta a todo o custo fez com que necessariamente o espectador se tornasse seu cúmplice, Phillips recria um Joker à margem dos seus apoiantes, detractores ou até de quem potencialmente o quereria ajudar e compreender. Phillips diz-nos que a sociedade moderna cria, alimenta, reproduz e, em última instância, destrói os seus próprios Jokers. E pior do que a obstinação moralista com que insiste nesta mensagem até ao seu final é a forma enfadonha e descomprometida com que o faz.

 

Hugo Dinis