Johnny Coração de Vidro, de Koreyoshi Kurahara, integra a programação do Ciclo de Mestres Japoneses Desconhecidos que será exibido a partir de dia 3 de Novembro no Cinema City de Alvalade, em Lisboa.
Este artigo contém spoilers.
Ao entrar na sala para ver uma das obras presentes no ciclo Mestre Japoneses Desconhecidos, é palpável a raridade e a fragilidade desta selecção. O ciclo, da responsabilidade da produtora The Stone and The Plot, apresenta-nos três filmes nunca estreados fora do Japão. No meu caso, desconhecendo ao que ia para além do título – falo aqui de Johnny Coração de Vidro, filme de 1962, do autor Koreyoshi Kurahara – senti-me imediatamente, com os créditos iniciais, dado à costa num continente de estranheza, um Japão profundo, antigo, pós-guerra – desconhecido – impenetrável, com o seu preto e branco impassível e os seus instrumentos duros de cordas e percussão. O filme inicia-se também numa praia, com uma labuta em que participa a protagonista, (que parece chamar-se Mifune, há parcas confirmações pela Internet, assim como poucas “visualizações” e nenhumas críticas nos sites cujo propósito são esses registos – estamos mesmo a falar de um filme visto por quase ninguém) a mãe, e outras mulheres. Percebemos que Mifune foi vendida a um homem, despede-se da irmã e da progenitora, esta afiança ao criminoso que a filha é um pouco estranha, mas bem-intencionada, rapidamente partem. É deste homem, sempre vestido de negro e acompanhado por uma mala, intermediário de tráfego humano (compreendemos que vende estas mulheres a casas nocturnas naquela zona do Japão) que Mifune consegue escapar, fugindo num comboio, sem bilhete, para o mais longe possível.
Numa terra em que consegue desembocar, sem mais nada além da roupa que traz consigo, conhece numa praça Joe, um homem-criança muito irrequieto, com uma fixação obstinada nas corridas de bicicletas que se disputam na vila: ganha a vida gerindo apostas que os restantes fanáticos fazem nos corredores – também ele aposta, e muito, normalmente todo o dinheiro que faz graças aos outros: tem um corredor favorito, em quem investe material e emocionalmente, comprando-lhe equipamento, esperando-o à saída dos treinos para o motivar, gritando o seu nome junto aos portões do recinto. É a este desconhecido que Mifune, graças a um qualquer acto de caridade de que possa ter sido alvo, se agarra sem largar, passando imediatamente a segui-lo, a apresentar-lhe a sua devoção e a esclarecer-lhe a sua posição de salvador.
O distúrbio emocional de Mifune é muito claro, fruto de um grande desamparo, tragicamente além da “esquisitice” de que todos, incluindo a mãe, a acusam. Abandonada pelo pai, relata como formativo um encontro que teve com um artista, desconhecido, na praia, que depois de lhe ensinar uma pequena canção de saudade e amor – Johnny Coração de Vidro – se suicida nas ondas. “Ela chama Johnny a todos os homens que conhece. Acha que a vão salvar”, explicará mais tarde o homem vestido de negro, que viaja para a capturar de novo. Mifune enamora-se do apostador Joe, de forma obsessiva, não saíndo junto dele em nenhum momento, para grande confusão do rapaz. Ela agarra-o, puxa-o para que não a deixe, sempre chorosa, em grande angústia. Ele acede, contrariado. A situação é minada por natureza, e a realização tem momentos ricos, muito pesados. Estou a pensar particularmente na primeira noite que Mifune e Joe passam juntos, e no meio da incapacidade emocional dos dois surge, muda, à mesa, a questão do que acontece quando forem dormir. Joe persegue Mifune pela sala e pelo quintal, que não quer dele, é evidente, a mesma coisa que ele quer dela, e quando chegam ao quarto a câmara fica de fora – Joe fecha a porta, e não os acompanhamos para lá daquele ponto.
O homem vestido de negro chega eventualmente à vila em que Mifune está escondida. É no desenho deste triângulo que se situa Johnny Coração de Vidro. Mifune não quer voltar à vida que era forçada a levar e refugia-se cegamente junto de Joe, o seu salvador, forçado pelo seu lado a ser o responsável pela segurança desta rapariga, sem que por isso o homem de negro desista de a recuperar.
O filme é de uma tragédia severa, que cobre tudo. Mais tarde, abandonada por Joe, o desespero de Mifune é tanto que se estabelece ao lado da cama do homem de negro, ferido e capturado pela polícia, implorando o seu cuidado e companhia diários. Emocionalmente incapaz, quase inválida, tem fé numa coisa: que o seu Johnny a venha um dia salvar. No leito de recuperação na esquadra, tocado pela devoção de Mifune, o homem de negro, com uma guitarra nas mãos, revela-nos: antes do sórdido negócio com que decidiu ganhar a vida, era um cantor. Tinha uma carreira, gravara um álbum. No dia do seu aniversário, chegou a casa e descobriu que a sua esposa o tinha deixado, sem explicação. Quedou-se dias inteiros em silêncio e em ausência completa. Quando deu por si, vermes rastejavam pela comida da casa, e soube então que muito tempo teria passado. Decidiu que iria procurar a sua esposa, durante os anos que fossem precisos até a encontrar, para a matar.
Johnny Coração de Vidro é uma história de sucessivos abandonos. O homem de negro, abandonado pela mulher, vive num deslize cego pelo mundo à sua procura. Mifune, irrecuperavelmente só, é abandonada por todos em quem deposita a crença da boa índole e da sua salvação: primeiro, deixa-a Joe, que a vende a um bordel para conseguir dinheiro para uma bicicleta de corrida. Depois, é também abandonada pelo homem de negro, que foge dela uma manhã em que é informado do paradeiro da esposa. Joe, mostra-nos o filme, sacrifica tudo pela carreira do corredor de bicicletas que acompanha fanaticamente. Quando o vê correr, explica a Mifune, sente arrepios, sente o corpo a estremecer – ama-o, diz-nos o filme sem nos dizer. O corredor, na verdade, odeia o sufocante e irascível Joe, e foge com o dinheiro deste, num comboio com a namorada: Joe é também abandonado. Sem nada, sem ninguém, no limite das suas forças, Mifune encontra a linha ferroviária e começa a segui-la a pé, até desmaiar e ser apanhada por maquinistas, querendo voltar a casa e reencontrar a mãe. Chega demasiado tarde: a mãe e as irmãs foram-se embora, não há forma de as contactar. Tanto Joe como o homem de negro estão agora também prestes a chegar à praia da juventude de Mifune: aos dois, agora sozinhos no mundo, a dedicação incondicional de Mifune surge como última esperança de felicidade na vida de cada um, uma felicidade pobre, vencida, função do afecto louco desta mulher doente. Chegam, também eles, demasiado tarde, encontrando-se os dois, um de negro e o outro de branco, junto às ondas e aos sapatos de Mifune que já avançou para a água.