Quando andava na escola primária fui desafiado por um rapaz da minha sala para uma competição de filmes de terror. Não era propriamente formal, creio que nem fazíamos uma contagem. O que importava era o compromisso e o desafio (além da dupla prova de valentia que passava pelo convencimento ou contorno da supervisão dos nossos pais, e que tínhamos todo o gosto em detalhar).
Não sei quantos filmes terei visto no contexto deste certame informal. Acho que foram poucos e, da memória que tenho, todos maus. Mas lembro-me bem que Jeepers Creepers se destacou. Pedi à minha mãe que o alugasse no clube de vídeo local. Depois de muitos “tens a certeza?” lá acedeu a levá-lo. Vimo-lo em casa, à noite, ou melhor: vimos até onde aguentei. Não sei explicar porquê, mas este monstro em particular assustou-me como o raio. Durante dias sonhei com momentos que ainda hoje tinha na cabeça: aquele camião ferrugento com uma buzina inenarrável, a queda num poço escuro, o pânico nas caras dos irmãos em fuga, no carro, o mostrengo titular a assobiar a melodia que não mais esqueci, enquanto pegava numa cabeça cortada para lhe comer a língua, o aviso de uma desconhecida ao telefone, num diner… Tudo imagens que, ao rever, me pareceram quase tiradas a papel químico das recordações que tinha.
Por algum motivo, estive anos sem voltar a este filme. Durante a infância por medo, claro, mais tarde porque foram surgindo outras prioridades naquela voracidade consumista de ver tudo pela primeira vez, ou simplesmente porque me fui esquecendo. Este ano decidi testar as águas e encetar, com ele, a minha maratona anual de terror. A curiosidade de perceber se exerceria o mesmo efeito sobre mim, tantos anos depois, rapidamente deu lugar à diversão. É um filme muito palerma, quase um outline de narrativa de terror, tão básico e de aparência tão inacabada. Tudo do mais simples e cliché que há: mito e regras definidas por meio de exposição, efeitos especiais datados, protagonistas estúpidos, um monstro indestrutível… E, contudo, desprovido de encantos este Jeepers Creepers não é!
Foi com gosto que constatei que a razão pela qual retive aquelas imagens na minha memória, até hoje, se prendia com aspetos técnicos. Para um filme tão menor há um cuidado muito particular com as composições dos planos, um inspirado uso de cor nas cenas diurnas – muito bonito contra o grão da película, algo retro – e interessantes jogos de luz e sombra nas cenas noturnas e de interiores. É um filme onde as set pieces de terror se definem de forma muito eficaz e elegante. As cenas de “perseguição” na estrada são primorosamente filmadas e montadas, o plano em que o bicho mau come a língua diretamente de uma cabeça cortada é enquadrado por um cartaz publicitário de um talho, num inesperado toque de humor, a cena da queda no poço – ainda que metida a martelo na narrativa e pejada de efeitos práticos risíveis – faz confluir o crescendo da música com o da iluminação para revelar algo que deveria ser muito mais assustador, mas que devido a este expediente deliberado não deixa de ter impacto. Enfim, mesmo com um guião escrito com os pés, um orçamento de fundo de tacho e o mau gosto de 2 ou 3 enxertos digitais, o brio técnico subsiste neste pedaço de trash horror fadado ao esquecimento.
Quase 25 anos depois, é esta a realidade que se nos apresenta: por muito que os recursos tecnológicos e financeiros fossem mais escassos, por muito que fosse, à época, mais aceitável fazer “coisas de mau gosto”, muita da produção dos anos 90 e 2000 tinha melhor aspeto do que a maioria dos filmes que se fazem hoje. Isso é válido tanto para a série B como para grandes produções (particularmente nos géneros de ação e terror). Lembremo-nos, por exemplo, de quando Matrix Resurrections utiliza alguns planos da trilogia original, de quão mais bonitas são as imagens sob aqueles filtros de verde e azul, quão mais táteis, por obra da película… O uso de película é, aliás, uma primeira explicação para este fenómeno. Pode parecer uma picuinhice de cinéfilo pretensioso, e não quero dizer que o digital não preste – abre possibilidades infindáveis e tem outras qualidades – mas a verdade é que as imagens eram infinitamente mais encorpadas, com uma gama de texturas muito maior e, por isso, mais fortes a nível sensorial. Para um género como o terror, sobretudo quando assente numa imagética mais crua, isso faz toda a diferença.



No entanto, a questão não se cinge apenas ao aparato tecnológico. É também um problema de know how técnico (e teórico) e de liberdade criativa. As noções daquilo que funciona melhor em tela para a construção de uma narrativa visual, ou do que é preciso para obter determinados efeitos emocionais junto do espectador, pareciam estar mais generalizadas entre as equipas técnicas. Por outro lado, nem o cinema mais independente, nem as grandes produções estavam tão reféns da homogeneização estética e simbólica, perfeitamente ditatorial, que torna todos os produtos terrivelmente seguros e semelhantes entre si. A estética era mais comummente um meio para atingir fins narrativos e afetivos do que um fim em si mesma. A preocupação principal, em cada plano, na découpage e na montagem, era precisamente a de contar qualquer coisa que as palavras não atingem (que estaria, aliás, para lá do significado direto das imagens) e não o “realismo” (leia-se a correção absoluta dos aspetos visuais de uma imagem, de forma a que se assemelhem plenamente a algo que podia pertencer ao nosso plano de realidade – por outras palavras: algo que nos faça esquecer que estamos a ver cinema). Jeepers Creepers, sim este filme terrível, é cinema – nunca tenta convencer-nos do contrário e cumpre requisitos mínimos que, aos dias de hoje, o destacam do generalizado marasmo criativo em que grande parte da produção audiovisual se encontra.
Cheguei ao fim deste reencontro a pensar que o ditado “cuidado com o que desejas” nunca me tinha assentado com tanto peso nas entranhas. Tantos anos a evitar um filme foleiro de 2001, apenas para perceber que o terror que encapsulava acabaria por denunciar um outro muito mais profundo e abrangente: a cada vez mais assumida (e lucrativa) lógica de produção segundo a qual se podem e devem fazer filmes sem se fazer cinema. Como regredimos…