Estreado uma semana após o 25 de Abril de 1974, Jaime, de António Reis e Margarida Cordeiro, é uma obra à qual todos pertencemos. Sem discurso hagiográfico ou pedantismo, o filme, centrado na figura de Jaime Fernandes (1900-1969), apresenta o que o homem deixou: a sua última morada – o hospital Miguel Bombarda, Evangelina, a viúva, e as suas inúmeras pinturas. Respeitando a máxima de Caeiro, as únicas breves linhas biográficas ao início dão-nos as datas de nascimento e de morte, tudo o resto ao falecido pertence.
É impossível pretender compreender Jaime ou tentar falar por ele. As pinturas não são testamento. Um mundo não se esgota na criação do indivíduo. Através dos elementos do legado de Jaime, o filme ganha contornos de uma ficção assumida. O que ver? Como ver? Não se trata apenas de contrapor o barulho da água e a cor da urze, com as quais Jaime conviveu, aos seus quadros. Num primeiro plano, Matéria e Criação. Num segundo plano, porém, Verdade e Dúvida. Como é que o Homem concebe a Natureza? Neste cruzamento jaz uma torrente de autenticidade que, pela sua força, quebra qualquer espírito livre.
Sim, a questão está agora do nosso lado. Ver ou não ver? Estamos materialmente distantes de 1973 (ano de rodagem da película) e do cenário clínico de Jaime, o paciente de esquizofrenia. Despidos de pressupostos, sentimos a nossa ignorância a germinar ao longo dos trinta minutos do filme. Procura-se pelo indefinido, tanto através de um travelling veloz sobre um campo de flores como por um plano de um bote de madeira preso, irremediavelmente preso. Não deixa de ser livre quem consegue ver, quem não deixa de ver. Em Jaime não há ciência, nem teorização capazes de resolver o impacto da Dúvida. Ancorado na força do momento, há no filme uma cena em que o torvelinho dos regatinhos, sob o forte coaxar de rãs, é seguido pela imagem de um cadáver de animal, em avançado estado de decomposição, levado pela corrente. Dificilmente tal quadro foi encenado. A Natureza encerra a Dúvida, enquanto o Cinema apenas a testemunha. Assim seria caso este testemunho não fosse já leitura, reprodução, linguagem. Voltamos aos irmãos Lumière. Como é que o Homem concebe a Natureza? Ou por Pascal: “Car enfin qu’est-ce que l’homme dans la nature?”
I – “Ninguém. Só eu.”
Em tom sépia, entre um dominó e o mikado do recinto do hospital, os pacientes vão entrando e saindo do plano. Deambulando, os primeiros minutos do filme reinventam o espaço. O recorte da luz compõe a atmosfera. Sem aparente protagonismo, as figuras são essenciais para os planos, em momento algum as panorâmicas as abandonam. Os homens deitados, a jogar, em movimento, em igualdade uns com os outros, mas com importância maior face ao cenário. A forma assume assim preponderância.
Não podemos falar na procura de um padrão. Os azulejos do hospital terão a sua ciência, uma arte centrípeta, clamando para si a atenção no traço. Se há uma atração pela forma – veja-se a sucessão de planos em que as linhas paralelas surgem nas camas, nas janelas, nas portas, no tecto, nos troncos decepados no exterior – o raccord é erguido pela ideia. Da claraboia passamos às portas trancadas (pela quais passa um gato travesso), do ralo da banheira ao bote amarrado, da multiplicidade de ramos aos veios de uma porta desgastada. Por oposição aos azulejos, uma planificação talvez centrífuga, pelo menos pautada por uma consistência diferente. Fugindo ao barroco (e absorvendo-o), Jaime é um filme livre, afirma-se por uma improvisação calculada.
II – “I went down to St. James Infirmary”
Num célebre episódio, o jovem Eça de Queirós, então ainda a passear as suas sebentas de Direito, relata a grande aprendizagem que lhe trouxe uma singela visita ao quarto de outro estudante de Coimbra, Antero de Quental, a quem, com devoção sincera, apelidaria de Santo Antero.
Dobrava cada folha ao meio, esmeradamente: depois, violento e certeiro, ainda a dobrava em quarto; depois com uma atenção sombria, ainda a dobrava em oitavo. Sob a unha raivosa achatava as dobras — e, empunhando uma faca como um ferro de vingança e morte, cortava os papéis finamente, fazendo com dois golpes pequenos maços bem esquadrados, que ia amontoando numa resma nítida e fofa (…) Fascinado, surdi do vão da janela onde me refugiara, e parando à borda da mesa:
— Oh, Antero, quanta ordem você tem na destruição!
Ele dardejou sobre mim dois olhares devoradores. Depois considerou, ainda enrugado, a pilha acertada dos papéis cortados, e um sorriso, aquele sorriso de Antero que era como um sol-nascente, iluminou, fez toda clara e rósea a sua boa face onde havia um não sei quê de filósofo de Alexandria e de piloto do Báltico:
— O ritmo — murmurou — é necessário mesmo no delírio.
Ritmo. A música de Louis Armstrong, Karlheinz Stockhausen e Georg Philipp Telemann é importante em Jaime, mas não é ela que confere o ritmo. Algures entre os 10 e os 20 minutos, desenrola-se o segundo terço do filme, iniciado com a saída do hospital (transição banheira/barco) e o regresso ao mesmo espaço (transição ramos/porta desgastada), onde, pela primeira vez, vemos as pinturas de Jaime. Este segmento, que culmina no breve depoimento da trémula viúva, é todo ele em allegro affettuoso.
Primeiro, imprime-se a energia da Natureza. Ganha palco a cor, os grandes botões das margaridas e as copas frondosas. Se, nas sequências iniciais, com o tom sépia no hospital, os enquadramentos denotavam trabalho em pormenor – as silhuetas em contraste -, este segundo andamento revela-se mais esparso. Subitamente, um grande plano no olho de um burro como portal para a fantasia e para um imaginário. Neste segundo degrau, as imagens já não são em bruto. Um guarda-chuva aberto, uma cabra solitária numa pequena divisão da casa antiga, um plano com três maçãs e uma máquina de costura? Prefiramos uma religiosidade dos comuns envolta no manto da tradição popular, à necessidade da tese e antítese. Vagueando pela casa não encontramos respostas. O manancial de imagens foram realidade com que Jaime conviveu, das maçarocas de milho ao guarda-chuva até alcançar a viúva a tremer, e aí se deter.
Da orientação fragmentada deste trecho, permanece o peso da ausência. Onde está o homem que pertence a este lugar, que acompanhava esta mulher? Ficam as limitações do espaço e a combustão do tempo (“Jaime! Jaime!”). Seria errado ver na intencionalidade do movimento de câmara um veículo documental, as interrogações feitas não precisam de respostas. Jaime não é Jaime. O que é objeto no primeiro será sempre imagem no segundo, daí uma lógica matemática cinematográfica incapaz de refutar que tudo constitui ficção.
III – “Animais como retratos de príncipes”
“O ritmo é necessário mesmo no delírio”. A última parte do filme é dominada pelas pinturas de Jaime, numa primeira fase em sucessivos grandes planos ao som de Stockhausen, e numa fase posterior em longa panorâmica ao som de Telemann. Neste diálogo entre música e imagem, o ritmo torna tudo mais apetecível, dir-se-ia claro até.
Muito grande plano nos traços em quadriculado, oblíquos ou irregulares de cada um dos quadros, geralmente representações de animais, à medida que a voz e as ondas de Gesang Der Jünglinge vão complementando o picotado que prefere a parte ao todo. No texto que as crianças cantam, lê-se que Nabucodonosor vê os hebreus dentro da fornalha, mas, ao contrário das suas ordens, estes não ardem. “Eu não saber nada”, “Acendia fogueiras” – escreveu Jaime. A (in)compreensibilidade do trecho não interessa, o ritmo, na dicotomia som-imagem, impõe-se sensorialmente, torna-se plataforma de templo sumério ou assírio-babilónico.
Regressar ao primordial – “Eu não saber nada”. Na arte rupestre, os animas eram alfa e ómega, inspiração e constante. Intercalando entre expressões de homens em corpos disformes e representações enormes de animais (cavalos, cães e pássaros), gera-se uma espiral obsessiva com os mesmos motivos, ou, reformulando, meramente os interesses de um autor. Sempre a esferográfica no papel, telegramas despidos sem data e sem local.
Aguardando um regresso à matriz, um travelling furioso ou vivace por um campo de flores permite, simultaneamente, a respiração necessária e um eco dessa urgência em voltar. Após tal manifesto, a música de Telemann surge, serena, como o repuxo de água do hospital nas cenas iniciais. Os “retratos de príncipes”, agora exibidos integralmente e sem serem fragmentados, acompanhados pela toada barroca – construção à base de frases e suas variações, fuga e contraponto, também ela uma espiral de repetição de motivos, também ela emanando uma religiosidade à base do tema.
IV – “Tu!”
O apelo de Jaime persiste graças à força do seu desassossego. Apesar do contexto, trata-se de um filme verdadeiramente sem tempo. De uma espantosa liberdade não só criativa como espiritual, Jaime torna as suas irregularidades em manifesto. O delírio do Homem a espelhar a ansiedade por comunhão com a Natureza. Teixeira de Pascoaes, em “O Homem Universal” (1937), fala sobre como algo movido por esta energia persiste. “Ao homem mitológico, escravo dos deuses, sucedeu o metafísico, escravo dum Deus; e a este, o industrial, escravo duma deusa de metal, aquela mulher eléctrica, numa barraca de feira, estendendo a vara mágica aos labregos espantados. Mas o homem universal, o verdadeiro, persiste através de tudo (…) resultante das mesmas forças ignotas, heranças de nebulosas, taras minerais e vegetais e uma recordação do Infinito”.
Mais à frente, no epílogo, Pascoaes remata: “O homem aparece como suprema expressão consciente ou sintética da Natureza, e como a sua libertação da fatalidade material ou morte mineral. E assim, o seu destino é interpretar e definir o Indefinido, talhar o informe, concluir, em outro plano, o mundo esboçado neste”. Parece-nos ajustado justapor esta conclusão ao final de Jaime, no qual o aparente vociferado “tu” surge quase como provocação. Jaime, o homem e o artista, mais não fez que talhar um entendimento, num outro plano, de Natureza e do Indefinido. A dado momento, a propósito da alta, Jaime respondeu: “Não me pertence cá ficar, pertence-me voltar lá para cima”. Sobre o seu delírio não nos pronunciamos, Jaime é expressão universal, o conhecimento que importa procurar é outro.
Filme absoluto de resoluta indefinição, sem mistério ou equação. Sigamos o desafio. Tomar a liberdade como consciência do Ser, do ancestral que se perde e regressa como rajada a desconcertar as margaridas. Simultaneamente reféns e libertados do tempo, ou como escreveu o poeta do Marão em “Jesus e Pã” (1903):
E a árvore que formou, outrora, este meu ser
Quase que a sinto, em mim, dar sombra e florescer.
Então, vivia eu, sonâmbulo, a sonhar,
No oculto interior das formas e das coisas,
Que hoje são, para mim etéreas sensações…
Meu ser humano
De toda a terra, num abril, desabrochou…