Como que movido por um ímpeto natural, algo indefinível, o cinema de Jacques Rozier é feito de regressos. Por muito que o cineasta tenha, em anos mais recentes, deixado o relativo anonimato que o acompanhou durante grande parte da vida, a sua obra permanece um cinema “que se redescobre”. Terá qualquer coisa a ver com aqueles grandes planos mudos e inarráveis na parte “estival” de Adieu Philippine; algo nas grandes vistas de mar, de praias infinitas pontuadas pelas três figuras femininas de Du Côté d’Orouët; na deriva burlesca distendida pela paisagem tropical de Les Naufragés de l’île de la Tortue; ou algo nesse samba, sempre por traduzir, de Maine Océan. Rico em improviso e aberto ao imprevisto, o cinema de Rozier existe em luz solar e água salgada, sempre doce e triste como as nossas memórias de juventude. Uma obra singular e independente, profundamente pessoal, que não terá um paralelo evidente no “corpo” da Nouvelle Vague.
Mesmo tendo feito parte do grupo de cineastas que redefiniu o cinema francês nos anos 60 — tendo sido assistente de Renoir e iniciado a sua obra com curtas de enorme vitalidade – Rozier manteve-se sempre à margem dos caminhos da consagração. Recusou os circuitos oficiais, os prémios, o prestígio das instituições. Filmava pouco, com meios escassos, mas com uma liberdade obstinada, sempre atento ao acaso, à gaguez do real, ao inesperado das relações humanas. A sua obra foi-se tornando cada vez mais esparsa e inclassificável, mas nunca menos inventiva. Oscilando entre a crónica e a fantasia, o caderno de esboços e o delírio jocoso, um cinema indomável e em perpétuo movimento, que hoje, mais do que nunca, se impõe como um dos mais livres e surpreendentes da sua geração.
A Tribuna redescobre o realizador, numa homenagem — Rozier, discreto, nunca gostara de homenagens — à boleia de um ciclo essencial que se avizinha, organizado pela Medeia Filmes.
E talvez seja por este colocar-se rente às personagens, tão perto, tão perto da gente, tão perto das pessoas, das coisas, por se colocar ao rés da história que conta, improvisando cenas e diálogos, à caça da emoção, desprevenido, que este é o filme que todos queríamos fazer, todos quererão fazer. Mas ficou assim, filme singular de cineasta maior, filme marcado por um tempo e eterno, filme de adeus e dor, riso e lágrimas, filmado com alegria dos pássaros.
Tão raro, feito à mão em sebenta de faculdade.
Jorge Silva Melo, sobre Adieu Philippine
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Adieu Philippine 1962
As duas curtas-metragens que o antecedem já indiciavam os traços com que nos deparamos em Adieu Philippine. Em Rentrée des Classes (1956), através da encenação da interação entre um jovem miúdo e uma cobra de água, era já possível verificar a preocupação de Jacques Rozier com a captação de um “puro presente”, revelando uma invulgar capacidade em filmar a dilatação do tempo, do instante imediato e imprevisível. Posteriormente, em Blue Jeans (1958), onde dois jovens se passeiam de Vespa pelas praias de Cannes enquanto procuram conquistar o coração das veraneantes, o mar, a liberdade e a efemeridade simultânea da juventude e dos amores de verão são protagonistas. Adieu Philippine é o resultado da conjugação das peculiaridades dos seus dois projetos anteriores.
A primeira longa metragem de Rozier inicia com a informação de que o filme se passa em 1960, no sexto ano da guerra na Argélia. Apesar de este facto ter relevância no desenrolar da narrativa, apenas é aludido pontualmente pelos personagens durante o filme. No entanto, é uma sombra que paira sobre Adieu Philippine e que contrasta com o cariz profundamente livre, da dramaturgia e encenação de Rozier, características idiossincráticas do cinema do realizador francês. O jovem galã Michel trabalha na indústria televisiva e trava conhecimento com Juliette e Liliane, aspirantes a atrizes, com as quais forma um triângulo amoroso. O filme divide-se em duas partes fundamentais. Numa primeira fase estamos em território parisiense, acompanhando a azáfama citadina, que nos é tão familiar dos filmes da Nouvelle Vague da época, e as movimentações dos jovens pelos meandros da produção de anúncios televisivos. Mas, como em qualquer filme de Rozier, acabamos sempre por chegar à água. Michel, Juliette e Liliane vão de férias para a ilha de Córsega, libertos, personagens e realizador, da “burocracia” que, em Paris, ainda obrigava a um dado compromisso com a narrativa.
Na praia, o tempo distende-se de forma ainda mais radical, na inglória e incessante busca pelo produtor de televisão ou na longa espera de Liliane pelo regresso de Juliette e Michel. Paradoxalmente, Rozier faz um uso sistemático e empolgante da elipse, omitindo deliberadamente os momentos mais íntimos entre o trio e intensificando a desorientação do espectador sobre as preferências amorosas de Michel.
Apesar de não ter o reconhecimento transversal de filmes como À Bout de Souffle (1960), de Jean-Luc Godard, ou Les Quatre Cents Coups (1959), de François Truffaut, considerados os grandes marcos estabelecedores da Nouvelle Vague, Adieu Philippine é porventura o mais belo primeiro filme de realizadores associados ao movimento, e aquele que mais se aproxima dos pressupostos que o fundaram, onde é mais facilmente identificável a liberdade narrativa e formal e onde se rompe de forma mais radical com as regras comummente aceites de como se deve fazer cinema. No final ficamos com a despedida de Michel, que parte num barco rumo ao destino incerto da guerra, enquanto Juliette e Liliane se despendem dos fugazes, efémeros mas marcantes momentos que viveram a três.
Paparazzi 1963
De sentido apurado – a tender para um voyeurismo maximizado mas autoconsciente – para a observação do observador e do observado, é a partir do encadeamento das relações entre estes últimos que Jacques Rozier faz o seu estudo sobre a personalidade mediática Brigitte Bardot. Estudo esse que é localizado num espaço e tempo específicos – Capri, entre filmagens de Le Mépris –, elevando Paparazzi a um estatuto de documento valioso, mas ainda assim afastado de um retrato absoluto das ocorrências, mais próximo de uma reflexão crítica e artística em torno do poder desta figura feminina, da contaminação entre cinema e vida. É sobretudo na articulação entre uma narração íntima dos movimentos de Bardot em Capri, tentativa de revelação amparada pela diferente, mas sem deixar de o ser, perseguição de fotógrafos e jornalistas, e uma construção distanciada da sua mystique, através das sequenciais capas de revista que protagonizou – ao par da fenomenalmente estroboscópica BB – que esta curta converge para a desmistificação e, em simultâneo, o contrário, de Bardot. Não mostra o seu lado banal, humano, mas revela de que forma é idealizada – pelas mãos dos jornalistas e dos olhos ávidos dos transeuntes, mas cujo princípio será a imagem ficcionada –, apelando a uma atmosfera (ir)real que nos deixa sem respostas esclarecedoras, apenas com a beleza in e atemporal, rodeada de belas paisagens naturais, sol e mar, por último independente daqueles que a acompanham e dos significados que lhe atribuem.
Le parti des choses 1963
Desta vez muito mais interessado nas engrenagens do cinema, nos meandros dos bastidores e em quem popula as proximidades de Le Mépris, Jacques Rozier, em Le Parti des Choses: Bardot et Godard, complemento de Paparazzi, faz questão de assinalar as mundanidades e palpabilidades desta arte “que se esconde sob uma velha manta”, para delas fazer curiosos quadros filosóficos, mesmo na ausência da voz perscrutadora. Provocatoriamente usufruindo da sua posição privilegiada – a de quem sabe como filmar planos aos quais mais ninguém acedeu –, centraliza as contrariedades e as farsas que são os propulsores do cinema, de Godard, do filme a ser filmado. Fazendo jus ao título e aos pilares que vai enumerando como godardianos – e que colocam, interessantemente, à sua mercê Fritz Lang – toma o partido das coisas, aceita a realidade, dá à cena a liberdade para ser o que é, desdobrando, no entanto, a incontrariável (meta)linguagem cinematográfica em estratos que se confundem entre real e imaginado, filmado e visto, literal e metafórico. Um pequeno conto protagonizado por deuses, mitos e sereias que não são mais que o seu nome e corpo habitando um “mar impassível”.
Du côté d’Orouët 1969-1971
Va, petit mousse,
Où le vent te pousse,
Où te portent les flots, les flots;
Sur ton navire,
Vogue ou chavire
Vogue ou chavire
Dans le fond des eaux.
“Vivement l’été !”, arrisca a nova amiga de Gilbert. O Outono, entretanto, chegou, e fazem-se planos para o ano seguinte – talvez umas férias em Itália? Mas, afinal de contas, on n’y est pas encore, e, por entre discretos relances trocados com Joëlle, noutra mesa do restaurante, Gilbert tranquiliza-se ao relembrar que ainda lhes restam três quartos de hora para o almoço antes de regressarem ao trabalho.
O tempo é tema essencial de Du Côté d’Orouët. Segunda longa-metragem de Jacques Rozier, chegaria já alguns anos após Adieu Philippine, com umas poucas curtas-metragens e trabalho televisivo pelo meio. A ideia fora, à partida, a de um telefilme (patrocinado por amigos admiradores do realizador), que passaria a série de dois episódios e que, enfim, se concretizaria neste grande filme longo, em 16mm. Amplamente esquecido à data da sua estreia (Rozier classificava a apresentação do filme em Cannes, em 1971, como «um desastre» e não quis marcar presença na estreia, em 1973, em Paris), Orouët encontraria algum (necessário) reconhecimento mais recentemente, após restauro e remasterização em 35mm.
Se parte importante do cinema de Rozier se orienta pela ideia de uma partida para um algures fora do tempo – um lugar que resgate as personagens de uma vida presente que não lhes permite sonhar –, Orouët será, porventura, o seu filme onde a cadência dos dias que discorrem pela tela se encontra mais claramente detalhada ao longo do enredo. Férias de fim de Verão, já Setembro, entre três amigas – Caroline, Kareen e Joëlle – em Saint-Gilles-Croix-de-Vie, sobre o Oceano Atlântico, mais precisamente na chamada Côte Vendéenne. Aqueles dias passados para os lados de Orouët (ou Orrrouette !, como nos explica, em brincadeira, Caroline) parecem decorrer na mais doce atemporalidade, ritmados apenas pelas vagas e pelo humor do vento. Uma contagiante insouciance parece transportar a trama e, por entre as risadas exageradas das três amigas, por entre as suas imperdoáveis provocações a Gilbert, será no silêncio natural da grande paisagem aberta (o ruído contínuo das ondas do mar) que muito deste filme existe. E, no entanto, tudo será sistematicamente enquadrado pela cadência do calendário que, em grafismo e cores alegres, nos relembra, afinal, a momentaneidade daquela fuga. Como em Adieu Philippine, tudo o que vivemos por Orouët estará necessariamente marcado pela fatalidade – do vento que sopra e dos dias que passam, das férias que pouco a pouco nos escapam, ou, como chora Gilbert, esse pequeno imbécile das três amigas, de um amor que não nos corresponde. Pelo registo directo de um quadro de evasão, este será tanto o filme de uma fuga ao Presente, como o registo de um tempo suspenso que se vê progressivamente assaltado pelo tempo real – uma dualidade que muito parece interessar a Rozier.
Em busca do tempo perdido, o título do filme (que começara por chamar-se Journal d’une jeune fille grosse, em alusão às dietas de Joëlle) não será um acaso, e deixamo-nos navegar, como Gilbert, à l’ombre daquelas jeunes filles en fleur. Rozier tem o talento raro de saber filmar “um tempo que passa” – sempre pela maior simplicidade – e Du Côté d’Orouët vive dessa melancolia que não se expressa por palavras. No que será o filme mais radical do realizador, a precisão narrativa é reduzida ao estrito mínimo. Lembramo-nos talvez de Rivette em finais dos anos 60, mas aqui perfeitamente despido do seu jogo de ficções. Pouco sabemos para além do nome das três amigas: aquele seu convidado inesperado e, eventualmente, o seu rival velejador, o sol e a vastidão do imenso mar. Rozier, que quisera fazer um filme de exteriores, filma sem se perguntar do que trata, numa obra onde a ampla improvisação jamais parece sofrer da banalidade de um qualquer experimentalismo. Se o filme se terá revelado, pouco a pouco, na mesa de montagem – o rigor de um raccord sendo aqui completamente posto de lado em favor de uma abertura maior à materialidade (naturalismo) e, nisso, ao sentimento das coisas – resiste aqui uma infinita joie de filmer, através da qual Rozier parece construir um lugar, no tempo, através do som e da imagem.
Aquelas férias, já algo fora de época, o Verão que começa a dar lugar ao Outono, e enfim a doce leveza de dias livres que, pouco a pouco, se fragiliza perante a realidade do… tempo. Como terminam umas férias de preguiça, também termina, afinal, a nossa juventude. O betão cinzento regressa com a paisagem urbana, e serão onze longos meses de clausura até reencontrar o sol amigo e o doce convite das ondas do mar. Lágrimas sobre a areia dourada, “j’ai dû rêver, j’ai dû prendre mes rêves pour de la réalité“. Que vontade, enfim, de passar o dia deitado, enquanto o vento forte abana a casa, lá fora.
Les Naufragés de l’île de la Tortue 1976
No cinema de Jacques Rozier, a narrativa é frequentemente o pretexto e quase nunca o propósito. Uma desculpa para filmar o entretanto, esse instante que escapa tanto ao controlo humano como à lógica utilitária do enredo. Seguindo esta linha desgarrada, Les Naufragés de l’Île de la Tortue começa a desenhar-se, à superfície, como uma comédia de aventura com ecos de Robinson Crusoe, para rapidamente se diluir em algo mais errático e livre, a roçar o inclassificável.
Rodado em condições quase improvisadas, nas Caraíbas (com mudanças de elenco a meio da produção, incluindo a saída abrupta do ator principal, Pierre Richard), o filme carrega esse improviso na própria estrutura. O tempo é marcado pela duração real das ações e não pelos ritmos dramatúrgicos; os planos prolongam-se para lá do necessário, e as falas perdem-se em constantes divagações. Tudo é filmado com uma leveza visual próxima do documentário, rompendo a promessa de exotismo da paisagem tropical e tornando-a em espaço de espera, dispersão e paciente revelação. O resultado é uma anti-aventura alojada algures entre o slapstick e um existencialismo letárgico. Uma procura de verdade na extensão do que, habitualmente, seria considerado acessório ou descartável. Rozier aproxima-se aqui do espírito dos hangout movies, onde o sentido emerge menos da progressão dramática do que do convívio entre pose, ritmos naturais (dos corpos e do meio) e tempos mortos.
A premissa satírica será o fundo sério de um filme que respira o deleite da inconsequência. Dois agentes de viagens concebem um pacote promocional para clientes que desejam “reconectar-se com o essencial” – ou seja, simular a vida de náufragos numa ilha deserta. Mais do que uma caricatura do romance de Daniel Defoe, o filme expõe os mecanismos comerciais que moldam a sociedade contemporânea: do marketing que nos vende autenticidade como produto, à quebra de rotina transformada em experiência de consumo. Rozier antecipa o delírio de uma lógica mercantil (hoje mais acentuada do que nunca), onde a exigência de novidade permanente se impõe como dogma, e até o regresso à natureza tem de ser formatado como atração turística. Mais do que subverter o colonialismo redentor de Defoe, o filme propõe antes a sua atualização farsesca – a paródia de uma civilização que, convencida de estar a redescobrir-se, apenas reencena o próprio vazio até ao colapso.
Esse delírio coletivo não se limita ao dispositivo narrativo, mas encarna nas próprias personagens – todas cúmplices e reflexo direto da impostura em curso. O guia que se insinua veterano de guerra, sem nunca ter passado da cozinha de um navio atracado em Toulon; os turistas, fascinados pela ideia de fuga e ausência de privilégio, que não tardam em revelar os tiques burgueses da sociedade da qual pretendiam escapar… e, claro, o nosso protagonista, Jean-Arthur – mitómano, adúltero e aproveitador de ideias alheias – que se lança nesta empreitada apenas para escapar ao trabalho e às responsabilidades pessoais. Todos encenam convicções para fora, mas, acima de tudo, para si próprios.
Numa abordagem mais convencional, a comédia seguiria um percurso reconhecível, com progressão narrativa, clímax e resolução. Rozier, pelo contrário, recusa o crescendo e opta pela dispersão, pelo acaso, pelo instante em que o gag se desfaz e revela a fragilidade estrutural da encenação. Há algo de Jacques Tati na forma como o humor se manifesta: discreto, lateral, frequentemente inesperado – uma fala interrompida aqui, uma expressão fora de tempo ali, um gesto deslocado acolá. Em vez de provocar riso imediato, instala uma fricção entre o que é prometido e o que de facto acontece. A aventura que se anuncia é constantemente sabotada por uma realidade sem grandeza nem sentido. Há, também, uma rima inesperada com o cinema de Werner Herzog. A relação de escala entre humano e natureza, claro, mas sobretudo a entrega febril do protagonista ao seu próprio embuste. À semelhança das personagens de Klaus Kinski em Aguirre, der Zorn Gottes (1972) ou Fitzcarraldo (1982), também ele mergulha numa fantasia messiânica. Mas onde os heróis de Herzog perseguem ideais absolutos, o de Rozier professa uma fé difusa, alimentada por slogans, lugares-comuns e promessas ocas. A diferença está no tom: Herzog filma o abismo com solenidade quase cósmica; Rozier, com ironia ligeira, cúmplice, até piedosa. Afinal, está bem ciente de que a loucura contemporânea pode nem chegar a tragédia – é mero teatro de brochura turística, vendido com pensão completa – mas toca a todos.
Nesta espécie de reality show avant la lettre, o que resta é o absurdo das convicções encenadas e incorporadas, a fragilidade das poses, a ironia de um sistema que consome as suas próprias promessas. Um cinema da auto-exposição que antecipa tanto as celebridades em fuga como os influencers em busca de uma verdade programada. Uma aventura frustrada que se torna, precisamente por isso, numa das mais lúcidas parábolas sobre a era da simulação, bem como numa das comédias mais livres, singulares e – não menos importante – sensuais do seu tempo. Porque mesmo na sua deriva, o filme encanta visualmente: os cenários tropicais, os longos planos contemplativos e o discurso solto inscrevem-no num raro gesto de cinema, onde o prazer da observação substitui qualquer necessidade de resolução.
Maine Océan 1986
Maine-Océan conta a história de uma linha. Não a de uma linha recta, como poucas encontramos por essa vida fora, mas a de um enorme contínuo. Maine-Océan é, em primeiro lugar, uma linha de comboio. Da Avenue du Maine em Montparnasse, Paris, até Saint-Nazaire, na costa ocidental francesa, com vista para a Île-d’Yeu, vai um mundo e uma vida de distância. Do alvoroço de Paris, Jacques Rozier parte em busca de uma linha que vai em direcção a algo tão indefinido como o Mar, com o M maiúsculo. Maine-Océan é um filme de indefinições também. Um pouco como um número de jazz que requer a perfeição de todos os seus intérpretes, mas que nunca resvala para o improviso. Em primeiro lugar, é um filme de mal-entendidos, sobretudo ao nível da conciliação de línguas e da comunicação humana. Nele encontramos um conjunto de personagens à procura de uma língua franca, seja para encontrar um campo comum, seja para valorizar as suas diferenças.
Rosa-Maria Gomes é uma dançarina brasileira que arranha o francês, Lydia Feld é a advogada que surge para a defender quando é acusada de não ter validado o bilhete de comboio, Bernard Menez e Luis Rego são os ‘picas’ que a interpelam, Yves Afonso é o marinheiro que se expressa veementemente num dialecto Poitevin particularmente esdrúxulo. Contudo, mais do que as línguas em que todas estas personagens se expressam, o que Rozier foca são as suas vivências e as suas raízes. A advogada expressa o ‘legalês’ que lhe é quotidiano, o marinheiro fala com o sangue na guelra, os picas usam o dialecto burocrata próprio da repetição do seu métier, e a dançarina adopta o discurso da abertura humanista que Rozier invoca. Esta ideia é transmitida, de resto, de forma magistral pelo monólogo de defesa da advogada perante o caso do marinheiro. “A língua francesa não é uma coisa eterna, única, e definitivamente codificada”, diz. Ou, posto de forma mais elegante, é a mesma língua na qual se expressa o amor, a redação de tratados de mecânica ondulatória, ou as declarações de impostos. Esta mixórdia é o sangue vital do quotidiano das pessoas.
O cruzamento de mundos improváveis traz tanto de imprevisto como de indispensável, e o resultado tem tanto de dramático como de humorístico. Mas não se pode propriamente dizer que Maine-Océan seja estritamente uma comédia de costumes ou desentendimentos. A cada viragem, as ocorrências e as mise en scènes sucedem-se com uma plasticidade e uma leveza surpreendente. Para isso, muito contribui o papel da música. Ou, melhor dizendo, a força da musicalidade das pessoas. A um certo nível, é também um filme musicalizado, ainda que não necessariamente um musical. A ideia da casualidade como estando na base do conhecimento interpessoal surge, pelo menos aos olhos de 2025, como algo simultaneamente estranho e delicioso. A dançarina é abordada pelos ‘picas’, que fazem caso com a advogada, que, por sua vez, leva a dançarina a conhecer o seu cliente marinheiro em Angers, que, por seu turno, os irá levar a todos ao salão de ensaios da banda da ilha. Uma sinfonia de vozes, línguas, e buscas, mas sobretudo de humanidade. O mar de humanidade vai desembocar na assombrosa sequência do “Rei do Samba”, onde burocratas pegam em guitarras e empresários em maracas. Maine-Océan, contudo, vai mesmo desembocar no Atlântico do “dia seguinte”, e nas sequências finais magistralmente representadas na fotografia de Acácio de Almeida. A ressaca da realidade é um avião que parte sem nós e uma linha, mais uma, que nos leva de volta ao quotidiano.
Fifi Martingale 2001
No éter do improviso, Fifi Martingale revela os ensaios e récita de uma peça cujo autor renunciou. Altere-se. Se o público a granjeou com êxito comercial é sinal que precisa de ser mudada. Repete-se o gag, remodela-se o cenário. Não há neste filme personagens, só performance, ou melhor eco de performance. Atores ou amadores trabalham um texto de difícil tradução para nós, espectadores de cinema. Uma criada que ascende socialmente, uma terra distante cuja aristocracia sobrevive à base de negociatas, tiradas sobre chocolate? A inacessibilidade do contexto torna a performance a âncora da nossa atenção.
Quem é, afinal, o autor? O intérprete que assume o texto, o dramaturgo que se insurge a cada investida dos restantes, o produtor que transforma acidente em oportunidade? De rompante, entra um actor, qual Mr. Memory que decora qualquer texto em instantes e assim assalta o protagonismo a um orgulhoso e azarado discípulo de Coquelin. Deslumbra, intriga e é a ele que devemos o único desvio do pano-de-boca durante as duas horas do filme, para um bas-fond em que uma sequência oferece perplexidade ante uma roleta de jogo, em que ao som de umas guitarradas umas saudáveis obscenidades são urradas em coro. Se tínhamos encontrado, finalmente, o nosso auteur, o filme cospe-o. Sem problema. Há sempre o ponto, que dialoga com a desastrada performance. Atente-se no abraço do falhanço por Fifi Martingale. Sistematicamente fragmentado, choques sem piada, gags e carantonhas sem finesse, até tartes surgem imagine-se! E, por isto tudo, caro amigo leitor, é que este derradeiro filme de Rozier, raramente exibido, surge como combustível revelação. Resgatar o pensamento pela mais frontal manifestação artística.
Enfim, entre gritinhos, amuos e contradições, a experiência teatral. E também comentário. Teatro, arte morta, que tem apenas num público de simpáticos velhotes um alento antes do estertor. Como um espelho do cinema, este último há muito deserdado dessa tradição de um público familiar.