A breve filmografia de Kinuyo Tanaka terminaria em 1962, com o seu sexto filme, uma obra algo ambiciosa, ainda que particularmente pessimista. Senhora Ogin (お吟さま, Ogin-sama), ou “Amor sob o Crucifixo” no seu título inglês, conta a história (fundada em personagens e factos reais) do amor proibido de Ogin, filha adoptiva do mestre de chá Sen no Rikyū, e Takayama Ukon, daimio e samurai cristão. Japão de finais do século XVI, o contexto histórico é de conflito militar, em torno da unificação do país, com a subsequente erradicação do cristianismo, e expulsão ou perseguição daqueles que o praticavam.
O filme abre com uma cena de combate armado. Mas Tanaka cedo se afasta da ideia dum grande fresco militar, primeiramente limitando a acção dessa batalha ao som (cavalos, espadas, ou cornetas sobre imagens mais abstractas de fumo e estandartes), e rapidamente se orientando sobre discussões paralelas à guerra (num filme muito falado: manobras políticas, família e amor). Tanaka inverte então a dimensão épica do “grande tableau histórico”, sempre subjacente à acção, concentrando o filme na sua personagem titular, Ogin, seu rigor moral e perseverança, e o seu destino através das transformações político-sociais exteriores. Num filme de “paciente resistência”, que evoca a relevância moral da tradicional cerimónia do chá japonesa, é também sobre os objectos ou detalhes (o leque, a cruz de Cristo, a ferida, a chávena, o fogo, …) que Tanaka direcciona a sua câmara, sem jamais se deslumbrar com o movimento tumultuoso que sabemos existir em torno da acção central.
A narrativa é próxima de Mizoguchi (com quem Tanaka filmara “Os Contos da Lua Vaga” ou “O Intendente Sansho”), mas a realização revela-se paralelamente mais rígida (ou obstinada) como expansiva. Algo independentes entre si, as diferentes cenas revolvem pacientemente, fecham-se, em torno dum centro individual próprio, sem que haja, apesar da linearidade narrativa global, uma continuidade particularmente forte entre os diferentes segmentos da acção. Por outro lado, pelas frequentes e violentas vagas de paixão, cada cena é, por si, uma erupção (frequentemente) “falada” dentro do constrangimento tradicional dos movimentos teatrais dos actores. Senhora Ogin é, assim, um filme formalmente arrojado (não estando longe do cinema de Oliveira, por exemplo) como algo “antiquado”, sem que isso seja aqui um defeito. Se Ogin sofre dum romantismo fatalista sobre-evidente, é também esse seu carácter “exagerado” que lhe confere uma dimensão quase surreal, ou para além do real, e portanto misteriosa.
A fotografia audaciosa do filme reveste a tela dos mais profusos, profundos, e maravilhosos tons de azul. “Já nasce o dia !” anuncia auspiciosamente Rikyū sobre uma deslumbrante abstração de bege alaranjado sobre um céu em índigo, não longe de J. M. W. Turner. A apaixonante palete do filme será aqui, de forma algo ambígua, tanto o fundo cromático do Amour Fou de Ogin, como a base do negro escuro que carregará progressivamente a imagem rumo a uma noite cerrada. O fogo laranja que arde entre os dois amantes, as sombras de Toyotomi por detrás dos painéis shoji, a faustosa gaiola dourada, e o espectro branco de Ogin – as raras cores deste filme convergirão invariavelmente numa só, o azul.
Senhora Ogin é um filme que trata o Amor como religião, e apresenta a religião como um acto de Amor. A sociedade enquanto construção estranha assente na guerra e engano, comércio e agressão. Os “combates” de Ogin serão sobretudo interiores (“em” e “do” interior), num filme que discorre com uma seriedade inexorável, de ritmo lento, mas sempre pontuado com os inevitáveis florescimentos, digamos, espectaculares de cada cena. Graça e devoção, uma paciente dedicação moral em resposta à vulgaridade da sociedade (veja-se também a necessária afronta de Rikyū a Toyotomi). Ogin e Ukon abdicarão da vida eterna na qual acreditam, por segundos dum amor terreno. Mas uma vida desprovida desse vital fogo do amor, será também uma vida desprovida de sentido. “Talvez as flores desbotadas sejam um sinal de fraqueza”, arrisca-se. Em Ogin, o eterno existe, no coração duma mulher.
– Não me sigas.