Integral Kinuyo Tanaka: “Para Sempre Mulher” – De Corpo e Alma Contra a Fatalidade

Bruno VictorinoAbril 21, 2023

Depois do Ciclo Mestres Japoneses Desconhecidos, o programador Miguel Patrício e a produtora The Stone and The Plot voltam a reunir-se para o Ciclo Integral Kinuyo Tanaka. Se a atriz e realizadora japonesa é tudo menos desconhecida, tendo sido protagonista dos principais filmes de Kenji Mizoguchi, e participando também nas obras de Akira Kurosawa, Yasujiro Ozu, Keisuke Kinoshita, Hiroshi Shimizu e Mikio Naruse, o seu trabalho como cineasta é, incompreensivelmente, muito menos badalado. Incompreensível porque a mestria de Tanaka em nada deve aos canonizados e consagrados autores japoneses. 

Numa altura em que as obras de realizadoras têm vindo a ganhar uma preponderância outrora inexistente, culminando com a recente eleição do filme Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles (1975), de Chantal Akerman, como o melhor filme de sempre na última votação da revista Sight & Sound, importa ir além da superfície, redescobrindo filmes e autoras com menor visibilidade. E nesse sentido é de valorizar mais uma vez a ousadia da The Stone and The Plot e de Miguel Patrício para irem além do óbvio e mostrarem ao público nacional as restaurações em 4K da obra integral de Kinuyo Tanaka. 

Se nos deparamos com uma certa tendência contemporânea de destacar um determinado cinema apenas pela relevância dos temas tratados, onde predominam assuntos da ordem do dia que forçadamente engordam a narrativa sem qualquer preocupação com a linguagem cinematográfica, é refrescante ver um filme como Para Sempre Mulher, e a forma como Tanaka aborda com delicadeza e sensibilidade a jornada de Fumiko Shimôjo (Yumeji Tsukioka). 

Uma jornada sinuosa mas poética de uma mulher contra a fatalidade da existência, onde a mente e o corpo procuram perdurar contra todas as adversidades. Uma sucessão de infortúnios abatem-se sobre a protagonista e Tanaka consegue habilmente alhear-se do miserabilismo pelo qual a narrativa poderia facilmente enveredar, intercalando momentos de graça com os acontecimentos devastadores que se abatem sobre a protagonista. E se “o travelling é uma questão de moral”, Tanaka vislumbra constantemente formas de estabelecer um distanciamento equilibrado entre a câmara e a personagem principal, captando o rosto de Yumeji Tsukioka num luxuriante preto e branco que nos remete para a Hollywood clássica e para as grandes atrizes da época. 

É na ambiguidade moral de Fumiko que encontramos alguns dos momentos mais belos e extraordinários do filme. Um em particular, considerado pelo crítico espanhol Miguel Marías como uma das melhores cenas da história do cinema, fica na retina. Depois de se divorciar do marido, Fumiko visita um casal amigo, juntamente com a sua filha pequena. Quando a sua amiga sai para ir trabalhar e a sua filha adormece à mesa, Fumiko estabelece uma conversa com o amigo, reveladora de um passado e de sentimentos que subsistem. No final da conversa Fumiko coloca a filha às cavalitas e é acompanhada pelo homem em direção à paragem de autocarro. Estando a chover, o amigo acompanha Fumiko com o seu guarda chuva e cede o cachecol à criança. Uma cena de singular beleza, que encapsula os sentimentos e anseios reprimidos da protagonista. Para além do impacto dramático e visual, a cena é alvo de reverberações profundas ao longo da narrativa.

Com Para Sempre Mulher, Kinuyo Tanaka entrega-nos uma obra-prima, um filme que poderia facilmente figurar junto a Tokyo StoryUgetsu no panteão do cinema japonês, um filme de uma beleza ímpar e devastadora, que nos permite viver por uns momentos a vida de uma mulher, mãe e companheira, com os seus defeitos e virtudes, sentimentos e desejos, que se manifestam até ao último suspiro.

 

Bruno Victorino