“Carta de Amor” (1953), estreia da atriz Kinuyo Tanaka na realização, não é apenas um filme sobre a malaise nipónica do pós-2ª guerra mundial, é uma prova de aquilo que Chris Marker, no seu filme “Sans Soleil” (1983), propõe – “o Japão como ponto extremo de sobrevivência”.
A orfandade é um dos temas dominantes do filme, manifestando-se de vários feitios e em todas as personagens: Reikichi e Hiroshi, dois irmãos solteiros a viver na mesma casa, Michiko, que se revela uma jovem viúva e vítima de uma impiedosa madrasta, a galeria de mulheres caídas na prostituição ou antigas amantes, se tanto, de soldados americanos. A ausência de relações normais, o que quer que isso seja, acentua a dinâmica trágica entre o par amoroso – Reikichi e Michiko. O que é que estas personagens procuram? Entre as linhas dos ilusórios macguffins do filme, as cartas de amor, há uma que sobressai: “razão de viver”. Tornamos a questionar, então o que é ter uma “razão de viver”? Ter uma profissão? A primeira meia hora empurra Reikichi nessa direção, quer o irmão, quer um velho camarada de armas (que lhe dará emprego a escrever cartas de amor de japonesas para americanos), vêem nele potencial a ser capitalizado num métier. No entanto, o recorrente motivo do metropolitano a passar ao fundo dos cenários, nos planos do nosso introspetivo protagonista, aponta para algo mais… até o cão Haichiko presta uma visita à nossa história.
O atormentado Reikichi parece viver somente quando recorda, sendo Michiko o ponto nevrálgico das suas memórias, figura essa que vai ganhando contornos, cada vez mais dourados, na mente do prosador e tradutor, face à repugnância de algumas das mulheres a quem serve. Michiko, que nesta primeira metade da película, é apenas uma fotografia, é também uma salvação, uma fuga momentânea, portanto não a conhecemos. Ao espectador é só dada uma evocação, habilmente complementada pelo uso intermitente de deixas musicais. Vozes femininas pululam discretíssimas na paisagem sonora. A frustração cinematográfica não vive de grandes planos com traços amargurados, antes de uma atmosfera de obsessões.
A segunda parte do filme terá Michiko como protagonista, levantando o véu sobre o que lhe aconteceu, como caiu. Destruindo assim a patética e melosa montagem que se dá no reencontro entre o par, epicentro narrativo, composta por brincadeiras e promessas de crianças e namorados; a vida apresenta-se ridícula (como as cartas de amor). Mais, contrastemos estas lembranças cor de rebuçado com os últimos instantes do filme. Por um lado, Reikichi abandonando a casmurra renitência e procurando entendê-la amando-a. Do outro lado, Michiko em amarras de uma penitência, companhia constante, pulsando o não acreditar descontente estampado de todas as faces em que procurou gentileza. O par amoroso é coadjuvado por outras personagens, ele pelo comparsa na feitura das cartas: “Não te aches superior a ela!”, ela pelo irmão dele: “Tens a certeza que foi só um americano?”. O confronto sustenta o equilíbrio.
A mise-en-scène nas cenas dela, nestes momentos finais, é simples na sua maestria: um prédio ao longe barrado por uma cerca, na qual ela se encosta, de seguida, flashs de luz cirandam a cena (polícia? ambulâncias?) atingindo o seu rosto, e…. um grande plano dela amargurada! Em jeito de retificação, nunca subestimemos o poder desta ferramenta.
A frenética montagem paralela coíbe-se de mostrar o ato desesperado dela, tornamos antes a ele (“Aquele que nunca pecou atire a primeira pedra. Todos os japoneses são responsáveis pela guerra.”). Chegará ele a tempo? Quem responde primeiro aos nossos anseios como público é a música. Não será necessário que as partes se cruzem num epílogo reconfortante. Griffith tiraria o chapéu. Eisenstein ficaria orgulhoso. Concluamos com um refrão dos Carpenters (banda com compreensíveis recepções apoteóticas no Japão): “I know I wasted too much time, I know I ask perfection of a quite imperfection world…and fool enough to think that’s what I’ll find”.