Hurry Up Tomorrow é o novo filme de um Trey Edward Shults raptado por The Weeknd. O filme é escrito por The Weeknd e interpretado por The Weeknd e, basicamente, é sobre um artista (The Weeknd), chamado The Weeknd, que fica afónico durante um concerto (a história é baseada num evento que aconteceu na vida de The Weeknd). É uma espécie de companion piece para o álbum de The Weeknd. Senti que tudo isto era propício a uma meditação grave, telúrica. Ao sair do cinema, telefonei a David Bernardino, meu editor, e perguntei-lhe se a minha crítica ao filme podia ser só um texto de eu a fazer uma receita de bifes de soja no forno, que eu faço muito bem. Ele disse-me que em princípio não mo podia permitir, porque eu tinha de de facto escrever alguma coisa sobre o filme. Isto consternou-me sobremaneira. Perguntei ao David se me podia acompanhar por telefone enquanto eu ia buscar as coisas no El Corte Inglês. Ele aquiesceu.

“Vamos às boas notícias” – disse-lhe, enquanto ‘Wake Me Up’, faixa que abre o álbum do cantor de quem falávamos, com produção de Justice, emanava por coincidência do interior da Mesón de Tapas. A obra vivia ainda em mim. – “Ao contrário de Michael Jackson, que pendurava bebés de varandas mas habitava uma aura forte de persecução, de acosso, transmitia um sentido de coisas ocultas que lhe estavam a fazer a ele, Kanye West mostrou-nos, ao reclamar uma e outra vez a sua agência numa alienação que não pode ser confundida como obra de terceiros, que o dinheiro e a fama não podem, nem conseguem, ser unguento para a doença mental grotesca. Agora, The Weeknd mostra-nos que é muito burro, e cringe, apesar de ser um dos cantores mais bem-sucedidos do mundo. Esta é a segunda vez que tenta forçar uma aparição mainstream enquanto actor. São boas notícias no geral: a pessoa ao teu lado, quando vais na rua, é provavelmente menos cringe que The Weeknd – somos remetidos a algo mais irredutível, a uma psicologia aplicável a todos, independente do dinheiro, do sucesso, democrática: é uma vitória para as humanidades.

Em Hurry Up Tomorrow há um concerto, há um backstage, há um manager, existe tensão. The Weeknd tem uma ex-namorada: compreendemos isto no filme. Ela deixa-lhe voicemails. Ele liga-lhe, não tem resposta, parte um espelho. The Weeknd parece ter algumas inseguranças e problemas, que afirma em verso, para os mais atentos, decorrerem talvez de um abandono por parte do pai. Num post do Reddit que encontrei, chamado ‘Guia para como o álbum e o filme estão conectados’, leio que Trey Edward Shults construiu o filme para ser uma experiência ‘gratificante para os fãs de The Weeknd’.”
“Mas tu estás mesmo nas compras a dizer-me isto tudo?” – perguntou-me o David no auricular. Estava, mas com o uso de uma função que me permitia gravar a chamada para a transcrever depois. “Falta-me apanhar ainda o limão. As coisas não estão fáceis: já vou em quase dez euros.”
“O manager de The Weeknd, interpretado por Barry Keoghan, é um tipo pragmático. The Weeknd deve esquecer esta ex-namorada, focar-se na tour que tem pela frente. Compreendemos isto numa sequência de três ou quatro minutos onde The Weeknd está amuado a olhar para o chão e o manager lhe diz “Tu és o maior, tu não és um gajo normal, és um Deus, tens de ir cantar, eu não era nada sem ti”. The Weeknd diz-lhe: ‘Vai-te foder!’.

O terceiro vértice neste triângulo é interpretado por Jenna Ortega, e descobrimos a posteriori, nos créditos, que a personagem se chama Anima, ou seja, é como se fosse um dos principais arquétipos antropomórficos da mente inconsciente, em oposição à função teriomórfica e inferior dos arquétipos das sombras (Wikipedia), sombras essas que estão no filme e que – percebemos agora – têm uma função simbólica além da literal: à revista The Fader, Abel Tesfaye (The Weeknd) confessa que ‘não há antagonistas no filme. A paralisia do sono é o inimigo’. Isto tem sido na verdade recebido com amplo assombro pelos fãs. O comentário de topo no reel diz-nos: ‘Tenho tanto respeito por o Abel aguentar a paralisia do sono’. Eu não tenho paralisia do sono, por isso fui poupado a esse trabalho hercúleo. Tenho outros problemas: a Paladin está com uma banca de amostras no meio do supermercado. Têm molho de queijo da ilha de São Jorge. Em bisnagas. É a isto que a minha vida chegou?”

“A personagem de Ortega é muito fã do The Weeknd, é por isso que está lá. Quando ele fica sem voz no concerto, ela pressente que algo de grande gravidade se passa com a sua garganta e arranja forma de saltar a segurança, entra nos corredores do estádio à procura do seu ídolo, e esbarra mesmo com ele, por sua vez a tentar fugir sem ser visto. Os dois sentem como que uma ligação ancestral um com o outro. ‘Eu vi-te’, disse eu na sala de cinema em voz alta, e um segundo depois The Weeknd repete a deixa, mas no ecrã. ‘Queres vir comigo?’ – pergunta-lhe. Ela diz que sim, e os dois partem para um date na versão americana da Feira de Corroios. Já no quarto de hotel, The Weeknd mostra-lhe uma canção inacabada onde pede desculpa à mãe por ter vivido uma vida de excessos, naquela que é uma cena real de um filme com distribuição mundial escrito pelo próprio. De manhã, as coisas são menos queridas: Ortega chora, The Weeknd é de novo um homem frio, explicando à fã que tem mais que fazer, tipo, um concerto na Austrália, e que esta devia tirar o cavalinho da chuva ou deixar-lhe o número, se quiser. É aqui que Jenna lhe parte uma garrafa na cabeça. Desculpa por te estar a dar este spoiler assim sem aviso nem nada.”
“Não faz mal.”

“Depois, assistimos a um pesadelo do cantor que dura vinte minutos, numa das grandes sequências metaficcionais do filme, pois também o espectador está a viver um terror interminável. The Weeknd acorda amarrado à cama. Isto não é muito excitante, porque pela expressão parece sofrer de prisão de ventre, e também porque Jenna Ortega tem consigo um boião de gasolina, e vai matá-lo, a menos que este consiga admitir na frente dela que sofre e que tem sentimentos, conclusões que ela retirou da letra de Blinding Lights, que lhe canta na íntegra. Isto é mesmo assim como estou a dizer. A cena climática do filme é The Weeknd a chorar, climática do género buraco do ozono, e o filme acaba com ele a entrar de volta no seu backstage antes de um concerto, mostrando que tudo isto aconteceu na sua cabeça e que só tinha de se aceitar a si próprio, como em algumas curtas da FCSH. É isto.
Depois do flop da série The Idol, o cantor volta a tentar protagonizar um filme sobre ele próprio, provando que a autoficção não é para todos, assim como a colaboração Roblox x The Weeknd que decorre esta semana e poderá ainda pagar algum do dinheiro aqui perdido. E eu? Talvez eu não quisesse mesmo escrever um texto sobre chegar a casa, juntar numa taça o mel, a mostarda, o azeite, o sumo de limão, o alho em pó, o pimentão doce, o alecrim, o sal e a pimenta, mexer tudo até ficar bem envolvido, pincelar, deixar os bifes a repousar quinze minutos e pôr no forno. Se calhar, só precisava de um empurrãozinho. Às vezes, as coisas não saem logo. Sabes que às vezes não é fácil. Obrigado.”