Hurry Up Tomorrow, de Trey Edward Shults: O Cantor Que Chora

Rafael FonsecaMaio 22, 2025

Hurry Up Tomorrow é o novo filme de um Trey Edward Shults raptado por The Weeknd. O filme é escrito por The Weeknd e interpretado por The Weeknd e, basicamente, é sobre um artista (The Weeknd), chamado The Weeknd, que fica afónico durante um concerto (a história é baseada num evento que aconteceu na vida de The Weeknd). É uma espécie de companion piece para o álbum de The Weeknd. Senti que tudo isto era propício a uma meditação grave, telúrica. Ao sair do cinema, telefonei a David Bernardino, meu editor, e perguntei-lhe se a minha crítica ao filme podia ser só um texto de eu a fazer uma receita de bifes de soja no forno, que eu faço muito bem. Ele disse-me que em princípio não mo podia permitir, porque eu tinha de de facto escrever alguma coisa sobre o filme. Isto consternou-me sobremaneira. Perguntei ao David se me podia acompanhar por telefone enquanto eu ia buscar as coisas no El Corte Inglês. Ele aquiesceu.

Abel Tesfaye em Hurry Up Tomorrow

“Vamos às boas notícias” – disse-lhe, enquanto ‘Wake Me Up’, faixa que abre o álbum do cantor de quem falávamos, com produção de Justice, emanava por coincidência do interior da Mesón de Tapas. A obra vivia ainda em mim. – “Ao contrário de Michael Jackson, que pendurava bebés de varandas mas habitava uma aura forte de persecução, de acosso, transmitia um sentido de coisas ocultas que lhe estavam a fazer a ele, Kanye West mostrou-nos, ao reclamar uma e outra vez a sua agência numa alienação que não pode ser confundida como obra de terceiros, que o dinheiro e a fama não podem, nem conseguem, ser unguento para a doença mental grotesca. Agora, The Weeknd mostra-nos que é muito burro, e cringe, apesar de ser um dos cantores mais bem-sucedidos do mundo. Esta é a segunda vez que tenta forçar uma aparição mainstream enquanto actor. São boas notícias no geral: a pessoa ao teu lado, quando vais na rua, é provavelmente menos cringe que The Weeknd – somos remetidos a algo mais irredutível, a uma psicologia aplicável a todos, independente do dinheiro, do sucesso, democrática: é uma vitória para as humanidades.

Barry Keoghan e Abel Tesfaye em Hurry Up Tomorrow

Em Hurry Up Tomorrow há um concerto, há um backstage, há um manager, existe tensão. The Weeknd tem uma ex-namorada: compreendemos isto no filme. Ela deixa-lhe voicemails. Ele liga-lhe, não tem resposta, parte um espelho. The Weeknd parece ter algumas inseguranças e problemas, que afirma em verso, para os mais atentos, decorrerem talvez de um abandono por parte do pai. Num post do Reddit que encontrei, chamado ‘Guia para como o álbum e o filme estão conectados’, leio que Trey Edward Shults construiu o filme para ser uma experiência ‘gratificante para os fãs de The Weeknd’.”

“Mas tu estás mesmo nas compras a dizer-me isto tudo?” – perguntou-me o David no auricular. Estava, mas com o uso de uma função que me permitia gravar a chamada para a transcrever depois. “Falta-me apanhar ainda o limão. As coisas não estão fáceis: já vou em quase dez euros.”

“O manager de The Weeknd, interpretado por Barry Keoghan, é um tipo pragmático. The Weeknd deve esquecer esta ex-namorada, focar-se na tour que tem pela frente. Compreendemos isto numa sequência de três ou quatro minutos onde The Weeknd está amuado a olhar para o chão e o manager lhe diz “Tu és o maior, tu não és um gajo normal, és um Deus, tens de ir cantar, eu não era nada sem ti”. The Weeknd diz-lhe: ‘Vai-te foder!’. 

Jenna Ortega em Hurry Up Tomorrow

O terceiro vértice neste triângulo é interpretado por Jenna Ortega, e descobrimos a posteriori, nos créditos, que a personagem se chama Anima, ou seja, é como se fosse um dos principais arquétipos antropomórficos da mente inconsciente, em oposição à função teriomórfica e inferior dos arquétipos das sombras (Wikipedia), sombras essas que estão no filme e que – percebemos agora – têm uma função simbólica além da literal: à revista The Fader, Abel Tesfaye (The Weeknd) confessa que ‘não há antagonistas no filme. A paralisia do sono é o inimigo’. Isto tem sido na verdade recebido com amplo assombro pelos fãs. O comentário de topo no reel diz-nos: ‘Tenho tanto respeito por o Abel aguentar a paralisia do sono’. Eu não tenho paralisia do sono, por isso fui poupado a esse trabalho hercúleo. Tenho outros problemas: a Paladin está com uma banca de amostras no meio do supermercado. Têm molho de queijo da ilha de São Jorge. Em bisnagas. É a isto que a minha vida chegou?”

Jenna Ortega e Abel Tesfaye em Hurry Up Tomorrow

“A personagem de Ortega é muito fã do The Weeknd, é por isso que está lá. Quando ele fica sem voz no concerto, ela pressente que algo de grande gravidade se passa com a sua garganta e arranja forma de saltar a segurança, entra nos corredores do estádio à procura do seu ídolo, e esbarra mesmo com ele, por sua vez a tentar fugir sem ser visto. Os dois sentem como que uma ligação ancestral um com o outro. ‘Eu vi-te’, disse eu na sala de cinema em voz alta, e um segundo depois The Weeknd repete a deixa, mas no ecrã. ‘Queres vir comigo?’ – pergunta-lhe. Ela diz que sim, e os dois partem para um date na versão americana da Feira de Corroios. Já no quarto de hotel, The Weeknd mostra-lhe uma canção inacabada onde pede desculpa à mãe por ter vivido uma vida de excessos, naquela que é uma cena real de um filme com distribuição mundial escrito pelo próprio. De manhã, as coisas são menos queridas: Ortega chora, The Weeknd é de novo um homem frio, explicando à fã que tem mais que fazer, tipo, um concerto na Austrália, e que esta devia tirar o cavalinho da chuva ou deixar-lhe o número, se quiser. É aqui que Jenna lhe parte uma garrafa na cabeça. Desculpa por te estar a dar este spoiler assim sem aviso nem nada.”

“Não faz mal.” 

Abel Tesfaye em Hurry Up Tomorrow

“Depois, assistimos a um pesadelo do cantor que dura vinte minutos, numa das grandes sequências metaficcionais do filme, pois também o espectador está a viver um terror interminável. The Weeknd acorda amarrado à cama. Isto não é muito excitante, porque pela expressão parece sofrer de prisão de ventre, e também porque Jenna Ortega tem consigo um boião de gasolina, e vai matá-lo, a menos que este consiga admitir na frente dela que sofre e que tem sentimentos, conclusões que ela retirou da letra de Blinding Lights, que lhe canta na íntegra. Isto é mesmo assim como estou a dizer. A cena climática do filme é The Weeknd a chorar, climática do género buraco do ozono, e o filme acaba com ele a entrar de volta no seu backstage antes de um concerto, mostrando que tudo isto aconteceu na sua cabeça e que só tinha de se aceitar a si próprio, como em algumas curtas da FCSH. É isto.

Depois do flop da série The Idol, o cantor volta a tentar protagonizar um filme sobre ele próprio, provando que a autoficção não é para todos, assim como a colaboração Roblox x The Weeknd que decorre esta semana e poderá ainda pagar algum do dinheiro aqui perdido. E eu? Talvez eu não quisesse mesmo escrever um texto sobre chegar a casa, juntar numa taça o mel, a mostarda, o azeite, o sumo de limão, o alho em pó, o pimentão doce, o alecrim, o sal e a pimenta, mexer tudo até ficar bem envolvido, pincelar, deixar os bifes a repousar quinze minutos e pôr no forno. Se calhar, só precisava de um empurrãozinho. Às vezes, as coisas não saem logo. Sabes que às vezes não é fácil. Obrigado.”


Rafael Fonseca