High Plains Drifter (1973): western do Terror

O western é um dispositivo minimal do qual retiramos efeitos máximos. Três elementos o definem: uma linha do horizonte (física e mentalmente omnipresente); armas de fogo que reflectem a luz do sol e da lua; seres humanos em estádios mais ou menos avançados de uma solidão intratável. O elemento humano admite ainda os subtipos psicológicos “medo/ganância” e “amor/heroísmo”. É através da composição deste conjunto que se obtêm todas as imagens de um western. Trata-se de uma linguagem suficientemente flexível para acolher uma grande diversidade de ideias, histórias e morais, e cuja gramática se presta bem à subversão, à revisão, à sátira e à actualização. Mas o melhor cinema western, mesmo que se sirva dessas convenções para “falar” de alguma coisa que parece ultrapassá-las ou existir antes delas, é capaz de tocar no fundo da relação entre os três elementos anteriormente definidos, e perceber em que medida estes formam um todo indecomponível. (Um bom western está habilitado a fazer perguntas como: por que é que um ser humano se torna mais solitário quando tem uma arma na mão? Ou: por que é que as pessoas assustadas ou apaixonadas estão mais atentas à linha do horizonte?). Percebida a razão de ser deste conjunto de três, aquilo que o torna indestrutível, podemos então aplicar-lhe essa intensidade a que comummente chamamos uma “visão” de autor. Foi o que Clint Eastwood fez na segunda longa-metragem que realizou, High Plains Drifter (1973): apreendeu o todo, o triângulo mágico do western, e mergulhou-o nas trevas de uma moral cósmica.

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Um Estranho com um passado obscuro (Clint Eastwood, é claro) chega a uma cidade mesquinha chamada Lago. Ele está investido de uma missão terrorista que obedece às leis do acaso. Nos dias que se seguem à sua chegada, vemo-lo intimidar e agredir transeuntes, atirar dinamite para dentro de casas, trocar pessoas e objectos de lugar a seu bel-prazer. High Plains Drifter está, parece-me, mais próximo de um videojogo da Rockstar Games (Grand Theft AutoRed Dead Redemption) que do cinema de John Ford. É claro que a narrativa se encarregará de justificar (quase) todas as acções da personagem de Eastwood, por mais gratuitas que elas nos pareçam, mas isso em nada esconde ou atenua a profunda irrealidade da cidade de Lago, que aqui se assume como campo de jogo – as possibilidades de decadência deste lugar dependem única e exclusivamente das possibilidades de violência que o justiceiro comporta dentro de si, e vice-versa. É um dos raros filmes onde parece que todo o cenário é destrutível. Há uma adaptação mútua, total, entre forasteiro e cidade, que não se encontra em mais nenhum western, e que dá a High Plains Drifter uma vertigem solipsista. Isto não quer dizer, porém, que estejamos perante um sonho, ou que o filme de Eastwood seja “surrealista” (do mesmo modo que Lynch e Fellini não foram “surrealistas”, mas o espectador de cinema médio é muito preguiçoso: basta-lhe ver um anão em cena para se sentir autorizado a desistir de pensar sobre um filme).

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High Plains Drifter (1973), Clint Eastwood

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No videojogo western Red Dead Redemption (2010), bem como na sua sequela (2018), podemos reproduzir alguns dos truques que vemos nestes filmes, nomeadamente os que envolvem o uso do lasso. Lança-se a corda com o característico nó sobre qualquer um dos figurantes que povoam o mundo de jogo, e podemos de seguida atá-lo, pés e mãos, e atirá-lo de um precipício, ou amarrar o seu corpo ao nosso cavalo para o arrastar durante quilómetros até a uma eventual morte por esfolamentos e exaustão. Nenhuma revelação, nenhum desenvolvimento dramático se segue.

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As qualidades de videojogo de High Plains Drifter confirmam-se num momento-chave do enredo, no qual o xerife de Lago concede “crédito ilimitado” ao Estranho – a troco da contribuição deste para a defesa da população local. O Estranho fica assim apto para adquirir e exigir tudo o que quiser, as vezes que quiser. A partir desse momento, o filme abre-se a um campo de possibilidades intensas e livres de quaisquer constrangimentos narrativos – tudo fica como que infectado de infinito. A extrema disponibilidade deste mundo de jogo, estruturalmente concebido para acolher as investidas de um jogador, é desde logo pervertida quando o Estranho decide retirar ao xerife a sua estrela para a colocar num pobre diabo ridicularizado por todos em Lago, invertendo com isso a ordem pública. Sem surpresa, também as mulheres desta cidade serão, na condição de NPCs (non-player characters), vítimas da omnipotência do Estranho: não acreditamos que tenham uma vida autónoma fora do seu raio de percepção e acção; elas existem, antes de mais, como alvos potenciais do seu terror. E é de facto como um agente terrorista que o justiceiro de Clint Eastwood se move pelo filme, fazendo a violência mais vulgar e arbitrária coincidir com os desígnios mais moralistas. Nesse sentido, High Plains Drifter era já em 1973 um western do século XXI.

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A sensibilidade de um Cormac McCarthy não anda longe deste filme. Tanto High Plains Drifter como a obra-prima de Cormac Blood Meridian (1985) parecem partir desse pessimismo antropológico que “propicia o fundamento de uma política autoritária”, como Peter Sloterdijk já o identificara a propósito de um certo pensamento conservador: crer que o Homem no seu “estado de natureza” é egoísta, destrutivo, cobarde e moralmente indiferente, é a premissa indispensável para se fazer apelo a uma lei e a uma disciplina que o humanizarão à força. Mas se o engenho de Cormac, que extravasa qualquer programa político, reside no tempo “geológico” do seu moralismo e no fascínio que ele não pode deixar de sentir pelas potências produtivas do caos, o que resgata o cinema de Eastwood das demagogias sobre a “natureza” do ser humano é a consciência de que, se há algo a “conservar” e “cultivar” face ao Mal do cosmos, são os acessos espontâneos, comoventes e incompletos de um Bem absoluto (isto é, irredutível à soma das circunstâncias), que por vezes se apodera do homem humilde. Encontramos tais “acessos”, por exemplo, n’ As Cartas de Iwo Jima ou no final de Gran Torino, e mesmo num filme implacável como High Plains Drifter eles estão lá para quem os souber procurar. Quando chicoteiam até à morte a personagem de Eastwood, uma mulher avança para o salvar. Esse movimento é interrompido pela cobardia do marido dela, mas fica para sempre inscrito na memória física do Universo, passível de ser reconstituído como um exemplo de “comportamento humano altruísta” por uma civilização alienígena tecnologicamente avançada, munida de supercomputadores, num futuro distante.

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Mesmo não tendo a truculência de Blood Meridian, High Plains Drifter aproxima-se como esse livro de um ponto de não-retorno onde o niilismo emerge como consequência lógica de uma moral obscura e intransigente. Um grande western terrorista, portanto, ou o western despido de tudo aquilo que o torna humanamente reconhecível; uma carcaça exposta à luz de um sol indiferente.

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“O ex-padre voltou-se e olhou para o rapaz. E foi esta a primeira vez que eu vi o juiz em toda a minha vida. Pois é. Vale a pena atentar naquele fulano.
O rapaz olhou para Tobin. E de qué que ele é juiz? Perguntou.
De qué que ele é juiz?”

Cormac McCarthy, Meridiano de Sangue (Tradução de Paulo Faria)

Diogo Ferreira