“Hatching” – The Exorcist meets The Shining meets Lamb meets Leopoldina

Esta crítica contém spoilers

Hatching ou Ovo chegou a Portugal no dia 3 de Novembro pelo Cinema Fernando Lopes, em Lisboa. É a primeira longa-metragem da realizadora finlandesa, Hanna Bergholm, que teve estreia no Festival Sundance e tem recolhido críticas consideravelmente positivas, bem como uma relevante onda de popularidade. Hatching é uma mistura explosiva entre os corredores de The Shining, o Exorcista, a particularidade do terror nórdico de Lamb e uma ave muito semelhante à Leopoldina. É um filme perturbador, bastante gráfico, chocante e apesar de não nos assustar os olhos, afecta-nos a alma. O filme é curto, assertivo e sem rodeios, não oferecendo ao público momentos de real gore nem suspense, mas impressiona visualmente e pode chegar a incomodar quem faz uma refeição antes da sua visualização.

Estando categorizado nos géneros do horror/terror e fantasia, mais concretamente no subgénero do body-horror, na primeira cena do filme somos apresentados a uma família composta por quatro elementos (pai, mãe, a filha Tinja e o filho Matias) que recebem a visita inesperada de um corvo na sua sala-de-estar. Quando as portadas se abrem para a entrada desta ave que provocará a destruição do local, também a família inicia um processo psicológico de devastação identitária, tanto singular como grupal.

Desde cedo o espectador se depara com uma mãe obcecada pelo relato digital da vida familiar, incutindo na sua dinâmica quotidiana, a gravação e exposição social dos momentos que deveriam ser pessoais e privados. Com efeito, Hatching é um filme que aborda e critica o aprisionamento digital que a contemporaneidade tem imposto à realidade doméstica de várias famílias e, consequentemente, aos seus descendentes. Na verdade, neste contexto familiar a vida é vista pelo prisma da lente do android e tudo tem e deve ser transmitido e relatado a um público pouco concreto. A mãe de Tinja é uma influencer e vlogger e aparenta procurar a sua realização pessoal numa audiência que não conhece, mas na qual busca reconhecimento e aprovação através dos constantes broadcasts. Aqui, o silêncio é morte. Os likes e visualizações, vida.

Por isto, Hatching é um filme que retrata, através de diversas alegorias e metáforas, o traçar da linha fronteiriça entre o aceitável e o fanatismo no que concerne à persistência incessante na busca e alcance da perfeição, trazendo nefastos efeitos a uma família já possuidora de laivos característicos da modernidade tóxica. Por outro lado, Hatching é também uma crítica profunda à sociedade digital, à vaidade e a quem vive da imagem e do carácter superficial e materialista. Em suma, é um filme que retrata de forma sarcástica e mordaz diversos problemas sociais actuais, como a crescente digitalização da vida pessoal; a extrema importância conferida aos influencers pelas massas; a futilidade de quem vive de aparências e, acima de tudo, os segredos mais perversos de quem foge do que realmente é.

No que diz respeito ao argumento, a audiência depreende que a mãe de Tinja terá sido atleta ginasta de alta competição, porém, provavelmente devido a alguma queda ou acidente, o futuro ficou comprometido, deixando-lhe cicatrizes físicas e, acima de tudo, psicológicas. Terá sido a decepção, o desalento e o desgosto que criaram a poção para se tornar numa mãe que projecta na filha tudo aquilo que não conseguiu ser. Por oposição, com Matias é uma mãe descuidada, desinteressada e desapegada, contudo, com Tinja, torna-se cada vez mais obcecada, perturbada e neurótica. Por outro lado, Hatching é também um filme impertinente e com um intenso foco em temáticas que abordam contrastes narrativos e estéticos, por exemplo: a ideia do belo e bonito por oposição ao que é considerado feio e esteticamente desagradável; às dicotomias entre filho e filha (diferenças de tratamento baseadas no género, sexo e conceitos bacocos e tradicionais – azul para o menino, cor de rosa para a menina); e até mesmo na disputa e rivalidade entre a aparência física de uma mulher loira e de uma mulher morena.

Toda esta transmissão virtual do quotidiano faz de uma mãe frustrada e obcecada pela perfeição, exigir à sua filha os êxitos que nunca alcançou. É toda esta imposição física e emocional imputada a Tinja que leva à criação de um monstro nascido de um ovo. E para que este ovo possa ser chocado, é necessária muita frustração, medo, incompreensão e, principalmente, o desprezo emocional de que foi vítima. Sem percebermos se está perante um sonho, pesadelo ou realidade, Tinja encaminha-se para a floresta guiada por sons assustadores e pelo nevoeiro. Mais uma vez, encontra o corvo caído e fazendo-se valer de uma pedra, ataca-o até à morte. É debaixo do corpo desta ave tão simbólica que Tinja irá encontrar um ovo que traz para o seu quarto, prometendo-lhe cuidado e servidão. Será então este ovo a recordação física da mortalidade e o representante da angústia emocional que a jovem adolescente vive. Além disso, toda a atmosfera competitiva imposta a Tinja, conferem-lhe sentimentos de fracasso, inquietação, insegurança e, especialmente, vingança que culminam no crescimento e desenvolvimento do ovo como representante do seu estado de espírito frustrado e revoltado.

Por conseguinte, Hatching é um filme que, apesar da sua curta duração, consegue ser uma fábula, nua e crua sobre a máscara social que a sociedade digital coloca no dia-a-dia sob a forma de redes sociais. Todo o contraste do filme é sintetizado pelo dark mood do argumento em contraste com os tons rosa e pastel dos cenários e do design estético dos adereços, reafirmando que a realidade é sempre mais dura do que o pretensiosismo virtual. Famílias disfuncionais, a solidão, a frustração humana e respectiva impossibilidade de concretização são as grandes premissas do filme mas que, de uma forma simbólica, a realizadora recorre a subterfúgios como o body horror e a criaturas horripilantes (o peso e simbolismo espiritual do corvo) e insanidade performativa para personificar toda esta alienação e fracasso.

Denota-se inexperiência e verdura direcional por parte de Hanna Bergholm mas também se saúda a sua espontaneidade e inocência na forma sem medos como dirige um elenco low budget mas sobretudo pela forma como consegue fazer um filme de dupla face.

Rita Cadima de Oliveira