O japonês Ryukishi07, um dos ficcionistas mais interessantes e originais do nosso tempo, tem como imagem-chave (capaz de representar o conjunto de toda a sua obra) o tabuleiro. Os seus trabalhos mais reconhecidos, entre outros – os que o fizeram ser lido internacionalmente – (Higurashi e Umineko no naku koro ni) seguem mais ou menos a seguinte estrutura, um pouco esotérica: um primeiro tomo, que compõe uma iteração completa da história, apresentando as personagens e a trama até a um aparente término ou desenlace da situação, e depois vários outros tomos, tipicamente sete, mas que podem ser mais, e que se constituem como “sequelas” ou retomas da trama, concretamente reposições da situação dramática a um ponto de base, a partir de onde a história, cujos elementos já nos são familiares, pode ter a liberdade de seguir um outro rumo; as personagens, como peças num tabuleiro, poderão estar dispostas de forma diferente, tanto de forma major (na iteração X, um dos protagonistas pode não participar, ou é nos apresentado um protagonista inédito) como de formas mais microscópicas (o humor mais afável de dada personagem tornará possível situações distintas). Na obra do japonês, que nomeia Agatha Christie como a maior influência no seu trabalho, é a súmula dos conhecimentos obtidos ao longo das várias “reposições” da história que nos permite chegar a uma conclusão, ou a um final tentativamente “verdadeiro”. Há aqui, é claro, muitas afectações japonesas. Mas voltaremos a este assunto.

Halloween Ends é o terceiro filme de uma trilogia que se propôs, com a bênção de John Carpenter, a ser uma continuação do filme original de 1978, ignorando todas as sequelas feitas ao longo dos anos – a saber: Halloween II (1981), ainda escrito por Carpenter e Debra Hill, uma sequela “imediata”, sendo passada na mesma noite que o primeiro filme, estrutura que David Gordon Green viria a reimaginar em Halloween Kills; Halloween III: Season of the Witch, Halloween 4: The Return of Michael Myers; Halloween 5: The Revenge of Michael Myers, Halloween: The Curse of Michael Myers, Halloween H20: 20 Years Later, Halloween: Ressurection, e, claro, o remake e a respectiva sequela da parte de Rob Zombie.
Halloween (2018), um filme cujo guião foi alvo, segundo a Wikipedia, de cerca de oitenta versões diferentes, e cujas grandes decisões foram todas aprovadas por Carpenter, limpa o quadro: assume-se como uma continuação do filme original e apenas do filme original – quarenta anos depois da fatídica noite de 78, voltamos às personagens de Laurie Strode (mãe, avó, obcecada com a segurança da sua família) e de Michael Myers (há quatro décadas a cumprir pena numa prisão de alta segurança). Sobre a rebootquel, o fenómeno da moda em Hollywood no que toca à manutenção de propriedades intelectuais, podemos ser sucintos: o único objecto realmente notável (e corpo estranho à órbita dos outros) é Twin Peaks: The Return. Tudo o resto que há para dizer, disse-o já Scream (2022) a surpreendente homenagem e continuação da série de Wes Craven, simultaneamente ciente, crítica e ponta-de-lança em relação às vicissitudes destas sequelas que buscam um prolongamento, passados muitos anos, da obra original, em regra indo buscar os mesmos actores, naturalmente envelhecidos – na ficção como na realidade.
No entanto, no meio da choldra que constitui os vários exemplos da tendência (Star Wars: The Force Awakens, Jurassic World: Dominion), o trabalho de David Gordon Green em Halloween (2018) é muito interessante. O filme é original, tenso, aguçado, com um bom sentido de cinética – uma sequela natural, ao mesmo tempo uma nova história vigorosa: A cabeleira branca de Jamie Lee Curtis, a máscara gasta e suja de Michael Myers, o memorável final onde três gerações diferentes derrotam o monstro de “outro tempo”, tudo se une harmoniosamente num filme com uma sólida qualidade narrativa, uma fotografia forte, um trabalho sonoro atencioso; é também o início de uma trilogia desigual. Em 2018, foi-nos anunciado que este filme, cuja história se passava nesse mesmo ano, traria um Fim ao Mal. A premissa entusiasmou-me bastante, e guardo na memória a sessão de cinema em Outubro, entre fotografias tiradas à máscara de Michael nos cartazes. Um pouco mais tarde, soubemos que o Mal acabaria afinal nos próximos dois filmes, e foi uma engraçada experiência voltar à mesma Noite de Todos os Santos em 2021, com um atraso adicional devido à pandemia de COVID-19. Halloween Kills (2021) possui grandes falhas, é um filme colocado num beco-sem-saída, que ao escolher continuar imediatamente a partir da entrada anterior da série se vê forçado a pôr Laurie “no banco”, delegando a personagem a uma estadia no hospital onde é forçada a entreter um B-plot inane em torno de um paciente mental que toda a gente no estabelecimento acha que é Michael Myers e cuja morte errónea será causada pela multidão – tudo isto enquanto, pela cidade, Michael assassina um grande conjunto de cidadãos de meia-idade que o filme nos sublinha uma e outra vez que desempenharam pequenos papéis no original de 78.

Haveria planos a certa altura para Halloween Ends também se passar ainda nessa mesma noite (deveríamos estar quase a ver o Sol a nascer), mas não foi, felizmente, o que aconteceu. Deste modo, Kills é, dentro do total mosaico, um filme que fica a cumprir vários propósitos: homenageia de algum modo o trabalho de Carpenter e Hill no excelente Halloween II (o que se passa nesse filme é que Laurie e Michael estão no hospital juntos) e serve como, na trilogia contemporânea, a entrada onde Michael, bom, mata – bastante.
Halloween Ends dá um salto de um ano para a frente. Em 2019, na Noite de Todos os Santos, Corey, um jovem babysitter, mata uma criança sem querer, numa brincadeira.
Em 2022, Laurie situa-nos com um monólogo (e estamos mais uma vez a ver um filme que se passa no ano que o estamos a ver – uma atenção que estimo da parte de Gordon Green e da equipa): nos últimos tempos, a cidade de Haddonfield não tem parado de sofrer. O retorno de Michael carregou um espectro sobre os habitantes da cidade, e incapacidades físicas, deficiências, suicídios e variadíssimos lutos, todos resultantes da sua acção criminosa, desfiguram os habitantes para uma anedonia na vizinhança da psicose. Não verão no filme contudo, nenhum efeito tradicional deste contexto, estilo “ambiente opressivo” ou personagens sorumbáticas, ou seja, o que vemos não é uma cidade em luto, é precisamente uma cidade que parece “de loucos”: continuam a haver festas de Halloween em bares de snooker, as pessoas continuam inclusive obcecadas com a celebração, com abóboras (desta toma é a própria Laurie – depois dos eventos de Kills, que incluíram o homicídio da filha, decidiu, estilo ano novo vida nova, desfrutar da sua reforma) – a neta de Laurie Strode parece propensa a comportamentos de risco, estando em processo de saída de uma relação com um polícia de meia-idade e flirtando abertamente e imediatamente no trabalho (enquanto enfermeira) com um homem que chega ferido – mas, enfim, sendo claro, eis o que o filme revela, eis o que o filme ganha, ao empurrar a agulha ainda mais para a frente no tempo, ao dar-nos um outro “anos depois” – o retorno a Haddonfield é também um retorno ao franchise: obviamente, uma coisa é necessariamente a outra. Este efeito é também cumulativo. Estamos mais uma vez perante o mesmo tabuleiro.

Claude Shannon, de forma célebre, calculou o número de movimentos diferentes possíveis num jogo de xadrez. Na escrita de um argumento, não serão tantos. Mas na ficção temos acesso a um outro poder: o do raccord – e o arrojo deste filme, de Halloween Ends, existe em contexto com tudo aquilo que veio antes. Sim, até aqueles filmes que “não aconteceram” – nesta “timeline” ou neste “universo” ou o que quer que seja que os espectadores de super-heróis estejam a nomear hoje em dia. Não estou a falar de um raccord diegético mas da meta-diegese, de ver o filme depois de ver os outros filmes, ironicamente o suposto mission statement destes produtos que estão tão na moda (Spider Man: No Way Home, Matrix Ressurections) mas que só consegue ser levado ao limite precisamente com este tipo de franchises, franquias que contam com a inclusão de filmes fracos, mal-sucedidos, com um número de sequelas que foi longe demais, com imensas mãos à mistura, com um prolongamento bizarro e que são, por excelência, os franchises clássicos de terror, aqueles que em virtude de uma posição de começo muito confiável – o regresso do assassino – se prestam a uma e outra partida e em cujo cerne de banalidade, de repetição é possível surgir o mais interessante, o que me interessa mais. Há casos memoráveis pelo seu desembaraço e inventividade: no décimo filme de Sexta Feira 13, o assassino está no futuro e no espaço sideral, como é conhecido. No oitavo Hellraiser (2005), a trama acompanha “um grupo de jovens viciados num jogo de computador online inspirado no franchise Hellraiser” (!) – e por aí fora. Mas em Halloween, no tabuleiro de Haddonfield, é a simplicidade que me atrai. Lembro-me de a premissa de Halloween 4 ser simplesmente “Michael volta”, e de a premissa de Halloween 5 ser simplesmente… “Michael volta”; E de seguida? O que farão os habitantes da pequena cidade com isso, como pequenos peões a fugirem de um lado para o outro? Desta vez Michael vai para a escola? Ou vai para a casa da sua infância? Quem o vai tentar parar é o intrépido sabujo Dr. Loomis ou um xerife da polícia, irado e intransigente?
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Numa estação de serviço, um grupo de bullies agride Corey – o tal rapaz que, anos antes, num trabalho de babysitting, matou a criança num acidente. Laurie Strode, a abastecer o automóvel, depara-se com a situação e afugenta o grupo. Ajuda Corey a levantar-se. Os dois reconhecem-se como semelhantes: um é visto como um monstro, a outra é conhecida pelo monstro que a persegue. Tornam-se amigos. Com a bênção de Laurie, a sua neta e Corey começam a namorar. De entre tantas pessoas desgraçadas, aquelas vistas como a origem do mal têm de estar juntas, de ficar unidas – é impossível para os outros compreenderem. Para os outros, Michael Myers passou como um vento (uma “respiração” – Carpenter). Para Laurie e para a neta, que estiveram com ele em casa e sobreviveram, para Corey, que viu as suas próprias ações causar a morte de um rapaz, é diferente: estarão mais marcados que os outros, mais marcados por esta coisa que é um boneco da morte, neste filme de terror.

Os dois jovens apaixonam-se (fulminantemente), vão sair à noite, numa festa de Halloween. Ao ter o infeliz acaso de encontrar no bar a mãe da criança morta anos antes, Corey abandona as festividades, sai para a rua, é de novo atacado e, ferido, refugia-se numa pequena gruta ligada ao sistema de saneamento, na orla da cidade.
No interior desta gruta, Corey depara-se com Michael Myers, apertado numa fenda rochosa, que o ataca, e o olha longamente nos olhos. Mais tarde, quando um polícia investiga o mesmo espaço, irá ver aquilo que parece ser uma “cara na pedra” – o filme não se demora muito, infelizmente, neste local entre mundos (a noite e a manhã, a fantasia e a realidade, o dentro e o fora), e acaba por seguir, devedor à necessidade de um confronto entre os dois grandes nomes da série, um caminho que diverge desta promessa inicial, mas é aqui, nesta gruta, que Gordon Green trabalha a mais fantástica matéria deste filme, a mais profunda:
O que acontece nesta caverna a Corey é uma “experiência irreconciliável”, para lá do que é possível descrever em palavras. Uns dias mais tarde, o pai da criança que Corey matara confessa a Laurie que se encontrava pronto para finalmente perdoar o jovem pelo acidente, mas que quando o encontrou na rua, e se abeirou dele para o fazer, constatou com um arrepio que os olhos do rapaz “já não eram os mesmos”, e afastou-se com pressa.

É a partir daqui que Corey começa a matar, a matar a sério, com intenção. O que se passou com ele na caverna remete-o para que queira “aprender”, e voltará à gruta onde Michael existe, inclusive atraindo vítimas para os dois homens, para que se cumpra este desígnio; a máscara e a faca. Naquela que é a cena mais pujante do filme, Michael Myers e Corey matam um cirurgião rico e a sua mais recente amante na casa com piscina do médico – os dois mascarados, Michael com a sua peça branca, Corey com uma máscara de festa, os dois brutalmente violentos, mudos, sem palavras, e Corey, claro, com uma fome sem fundo. O plano corta violentamente para o rapaz, já sem máscara, a conduzir a sua moto com a neta de Laurie agarrada atrás, uma banda sonora de herói neo-romântico, taciturno, estilo Drive, a tocar. Este romance continua, e cada vez mais aceso: o casal fala agora abertamente de “sair dali para fora”, de “acender a faísca” que irá rebentar, terminar, com a cidade, em suma: vingar a sua condição de pária, que ambos partilham. Quanto mais Corey mata (em segredo – a rapariga não o sabe), mais apaixonados estão.
As críticas podem ser feitas em nome de uma qualquer coerência intratextual ou em nome de uma compreensão de personagem que o espectador julgará ter, muito comum no caso dos fãs: Michael Myers nunca “aceitaria um aprendiz”. Michael Myers nunca mataria ao lado de outrem. Michael Myers teria logo acabado com este míudo! E por aí fora. Mas, em Halloween 4 Michael Myers conduz um camião. Em Halloween 6 Michael Myers é alvo de uma maldição druida para o manter imortal – estamos a falar de uma coesão que não existe. O que importa é o que eu faço com esta personagem, em que situações a coloco. Deverão ser dezenas e dezenas os guionistas que já tocaram na personagem de Myers e no setting de Haddonfield. O que importa é o que é feito com o tabuleiro desta vez, o que é feito com as peças desta vez. E a surpresa de Gordon Green é inventiva e é profundamente consciente do raccord e da soma invisível de signos e de jogos anteriores presentes na franquia. Nós já fizemos isto tudo antes: Halloween 5 também tem Michael a recuperar numa espécie de túnel de esgoto enquanto um mendigo aparentemente fica de guarda; Halloween II também trata o fervor, a loucura da população com consequências desastrosas; e aqui, no capítulo final da sua trilogia, Gordon Green vira-se para o mal endémico, imaterial, atmosférico, presente nesta cidade, um tema que foi sempre virado e revirado ao longo do franchise, sem nunca produzir nada concreto nem de jeito, mas até isso é uma marca da série, e Laurie voltará neste filme a fazer discursos difusos sobre o Mal e as suas vagas repercussões.

O que realmente importa aqui, e que torna Halloween Ends um grande final é a concretização destes temas em disposições arrojadas, conscientes do seu estatuto enquanto iteração adicional num corpo de obra com quarenta anos. O que se passou no interior da caverna foi a subsistência do Mal. Corey está a matar porque o Mal continua. Michael está de volta porque o Mal continua. É tão simples quanto isso. É muito bom um suposto capítulo final focar-se num novo protagonista, neste caso: renovar-nos os grandes temas da série, abrir a obra em todas as direcções. Achei graça a algumas críticas online que apontam uma semelhança das personagens a “peças num tabuleiro”, as situações seguindo-se numa sequência de coincidências específicas e “implausíveis” para que as condições para as próximas cenas sejam satisfeitas: essa dimensão estará sempre presente num trabalho desta capacidade. Quando se trata de uma segunda sequela, de uma terceira sequela, de uma quinta sequela – quanto mais longe vamos, quanto mais material temos por baixo do que estamos a fazer, mais o trabalho se deve depurar. Halloween Ends é, afinal, uma décima-segunda sequela ao filme original. O que se trabalha a este ponto, ou o que se deve trabalhar a este ponto, são puramente vectores. Os jovens apaixonados, o regresso do assassino, a avó preocupada, o Mau, os Maus, o Bom, os Bons. É natural que as personagens pareçam peças: são de facto ferramentas para a inventividade, ou para a falta dela, que determina a qualidade destas sequelas, destes trabalhos específicos – o que estou a dizer aplica-se a Halloween, a Hellraiser, enfim, aos slashers clássicos, devido às suas características muito particulares, a estes filmes que foram passados de mão em mão ao longo dos anos. É uma pena que o filme se obrigue a terminar a história de Corey, muito arrumadinha, antes de passar para o dito showdown final: Michael Myers volta a casa de Laurie, recupera a sua máscara, há um combate, esta mata-o e um grupo de muitos cidadãos transporta o corpo do assassino para uma sucata onde existe uma trituradora, etc. – é um final soporífero, pitoresco e desnecessário, e está aqui apenas para cumprir a questão de fazer o que diz no título. Não me interessa muito. Estarei, obviamente, no cinema para o próximo.