Revi Grand Tour de Miguel Gomes ontem à noite num calminho CinemaCity Alvalade: segunda vez em vinte dias, pois na primeira, num visionamento de imprensa matutino, ocorrera que estava de directa – não tinha dormido nada nessa noite – e, descansado que poderia rever o filme antes do texto marcado para o dia de hoje, aproveitei a experiência, da qual desliguei, por força maior de cansaço, em apenas dois momentos – percebi agora que na verdade foram balizados de forma bastante estreita: a sequência com Edward, o seu guia, as três esposas e um pónei, perto do início, e a pequena cena entre Molly, Ngoc e o Reverendo já a navegar, perto do fim. Vê-las pela primeira vez na segunda visualização – estava na outra aí completamente apagado – foi divertido, como se de um novo corte se tratasse.
Tive com os filmes de Miguel Gomes várias experiências ao longo dos anos, continuará a acontecer; é um cineasta do nosso tempo. Aos vinte, não gostei nada de A Cara Que Mereces, por razões que agora já não consigo bem recordar; pelo contrário, achei As Mil e Uma Noites – Volume 3 uma obra-prima forte – e especificamente o Volume 3, que era também o volume que quase ninguém tinha visto durante aquelas semanas em 2015 onde discutíamos na faculdade as valências de cada capítulo – e temos a agradecer a Gomes esse breve período feérico na vida de estudantes recém-chegados à Lisboa desse ano, e é difícil crer que se passaram nove anos desde aí, desde essa estreia tripartida no Nimas (?), um Nimas com cadeiras mais vermelhas, parece-me, na imagem dessa recordação onde fiz na verdade uma pergunta ao autor sobre a história da migrante chinesa com o nome, salvo erro, de Lin Nuan.
Quanto a Inventário de Natal, é a melhor curta-metragem de todo o cinema, ex aequo com Puissance de la Parole, de Godard. De Tabu lembro-me inevitavelmente de um plano, sempre que entro no Centro Comercial Shopping Cacém. E é mais ao menos isto.
Portanto nove anos depois, a ver Grand Tour pela segunda vez, a ver acordado algumas cenas pela primeira vez, e Molly e Ngoc a subir o rio, rumo ao destino funesto da primeira, fazem lembrar Teresa e Mariana no barco em Amor de Perdição – como a casa junto às plantações de bananas e de mangas, e de outras “sensualidades” num manto pelo mundo, filmadas em estúdio por Rui Poças, poderia, se tivesse cor, assemelhar-se ao ao pátio no pomar de tangerinas (em estúdio!) de Doña Prouhèze em Sapato de Cetim – e a subjectividade destas linhagens (e é um filme que se insere numa linhagem, é claro, os acontecimentos históricos das premiações já o asseguraram) poderia esticar-se (o grande plano de Molly a virar o rosto para olhar em frente Timothy Sanders na sua última noite juntos, etc, para dar um exemplo em que cabe toda uma história do cinema…); de qualquer maneira, isto tudo não é enfim na prática o propósito de um texto destes, feito a sair após uma estreia, para a recomendação aos leitores de que se desloquem às salas.
Ou seja: Grand Tour segue o noivo cobarde Edward (Gonçalo Waddington), que está a fugir de Molly (Crista Alfaiate) pela Ásia, não se querendo casar com ela, apesar de a amar. Molly, obstinada, mostrando uma extraordinária matéria moral, persegue Edward pelo seu grande percurso, acompanhando o filme na sua primeira metade a ele, e na segunda metade a ela. Os planos subjectivos das coisas que cada um vê pelas suas viagens são da responsabilidade dos outros dois directores de fotografia, Sayombhu Mukdeeprom (Tio Boonmee que se Lembra das Suas Vidas Anteriores) e Gui Lang.
Pelo meio, uma série de vinhetas e acontecimentos: Jorge Andrade é o primo de Molly, Reginald no bar do pós-guerra onde pede cocktails e imagina cenários de espionagem. Há uma viagem de barco com um conjunto de fidalgos, Diogo Dória é talvez um comerciante de gado, e acompanha-os junto à cabeça da bamboleante mesa um tenor. Edward passa uma temporada com um grupo de monges que usam cestos até ao pescoço, vê macacos na neve, mais tarde pandas. E muitas outras coisas. Pelo meio, não é claro se esta fuga é o início ou o fim do período de “sete anos” em que Edward e Molly não se vêem, ou se o filme cabe no primeiro ou no segundo sonho em que a narração indica que Edward caiu, exausto, em meios de transporte pelo Sudeste Asiático – num dos comboios, a imagem fecha-se na entrada do túnel que é também uma vinheta, e abre-se do mesmo modo. É uma imagem evidente – não deixa de ser linda.
Não vou acrescentar a este raciocínio alguma sentença foleira, como “o sonho do cinema”: não o acho necessário para este filme, além de que o essencial já foi dito pela sua recepção crítica e fenómeno público – não me sinto de resto compelido a diatribes efusivas para compôr um grande elogio ao filme. Grand Tour é um prazer de ver à primeira, e igualmente um prazer numa segunda vez: há de facto nele uma certa aura de recorrência repetível, como um LP cujo início se liga com o fim, que promete portanto ser um prazer uma e outra vez futuras, vistas com vontade.
Não lhe posso apontar grandes pretensões para além da beleza, e essa é consistentemente presente: é-o no estar em cena de Crista Alfaiate, no estar em cena de Cláudio da Silva, e dos restantes – mas esses, temos que destacar – é-o nas emulsões a preto e branco (e a cor, no ano novo em Banguecoque e nas margens do rio na sua última madrugada azul), no registo documental ou etnográfico, também, o homem do karaoke, as marionetas e os mestres de kung-fu, mas não quero equiparar as coisas: são as encenações os momentos mais belos. A pequena festa de aniversário em honra do jovem príncipe tailandês é um grande momento de Miguel Gomes, belíssimo. Bastaria esse, mas há muitos mais. Um adereço: o ramo de flores tropicais, as gotas de água no casaco à volta. O riso de Crista Alfaiate, por exemplo, uma e outra vez, (e que se repete, em rima e interrompido, em Edward, quando este é acusado pela embaixadora portuguesa de estar na China tendo outras intenções que não a fuga ao matrimónio).
O filme é muito bonito, carinhoso, paciente, até relaxante, nunca abrindo mão de uma melancolia que, estranhamente, nunca é pesada. Com o enlevo da banda sonora em Gomes, que é sempre excepcional, estou já de bom grado em viagem: por volta desta altura, uma longa sequência de pessoas em motorizadas, uma grande densidade delas, em câmara lenta, fazem lembrar o trabalho do cartoonista Guy Delisle a mostrar a vida das pessoas em Shenzhen (2010), com isto quero dizer: é impressionante – como também o fazem aquelas imagens assustadoras dos colossais prédios chineses. Pensei ao início que Grand Tour seria o filme mais difícil de Miguel Gomes, mas é talvez na verdade o mais acessível: qualquer leitor devia ir ao cinema experimentar.