Nos confins de uma Índia cada vez mais amarrada pelo conservadorismo e pelo nacionalismo hindu, surge uma pulsão para a afirmação do coming-of-age feminino. Em particular, e pela boa amostra do ano passado com o All We Imagine as Light de Payal Kapadia, surge uma necessidade de compreender a experiência feminina no fechamento das válvulas sociais que a poderiam sustentar. Girls Will Be Girls, a primeira longa metragem de Shuchi Talati, aparece nessa tendência para a criação de uma interioridade feminina no sentido mais abrangente da palavra, especialmente no que diz respeito ao seu papel no contexto da identidade nacional. À partida, grande parte dos mecanismos convencionais do coming-of-age mais típico de Hollywood ou de Sundance estão garantidos: Mira (Preeti Panigrahi) é uma jovem de 16 anos que é, com a maior das naturalidades, a mais brilhante aluna da sua escola de elite; Sri (Kesav Binoy Kiron) é um rapaz recém-transferido para a sua turma, mas ainda que tenha vindo de uma escola estrangeira, é um aluno medíocre.
A clivagem entre o desempenho escolar de ambos será um dos motivos para o comentário social de Talati, mas surge essencialmente num primeiro prisma como farol para a criação do par improvável (ao estilo de um Ten Things I Hate About You). Mas enquanto que Sri não aparenta ser o tradicional bad boy que outrora foi Heath Ledger, Mira é alguém que parece transcender o próprio conceito de adolescente: tem uma relação estreita com a directora da escola, transporta consigo o título de “Head Prefect”, que parece consistir em gerir o que é afixado no quadro de notificações do campus, e está alinhavada para vir a fazer de directora no importante Dia dos Professores da escola, no qual os alunos assumem o papel de tutores por um dia. A sua vida transporta consigo um sentido de responsabilidade permanente que apenas é reforçado no seu quotidiano familiar. A sua mãe Anila (Kani Kusruti, de All We Imagine as Light) é omnipresente e contrasta com a relativa ausência do pai no seio familiar. Previsivelmente, a relação entre Anila e Mira é marcada por uma fragmentação empedernida. A presença de Anila na escola é quase permanente, mas é sobretudo a sua vigilância quanto às parcas movimentações sociais de Mira que convoca ressentimento. Anila surge, nos momentos mais envolventes da narrativa de Talati, como um elemento de necessária tensão, mas sobretudo ambiguidade.
Tendo em conta o isolamento de Mira, a sua ligação com Sri surge como qualquer paixão adolescente: com a naturalidade e o impacto de um relâmpago. Nesse sentido, importa também a Talati ilustrar o que aparentemente separa Sri dos seus pares, para lá do seu pedigree familiar (absolutamente ausente aqui, ainda assim). A experiência de Mira e das raparigas da sua idade é marcada profundamente pelo assédio e pelas crueldades da misoginia casual. Os rapazes procuram tirar fotos das saias das raparigas para depois divulgar nas redes sociais, perante a relativa indiferença da directora, e mesmo os pretendentes de Mira lidam com a rejeição na óptica do revanchismo bully. Para enfrentar essa realidade, também as figuras femininas que poderiam reverter o balanço social acabam por validar os comportamentos masculinos. A directora dá aulas a explicar o comprimento correcto das saias para as raparigas, enquanto que Anila conduz uma aturada entrevista a Sri para conhecer os seus motivos e alertar para a necessidade de manutenção de foco nos estudos, até porque, caso as notas de Mira sofram, é Anila que terá de responder perante o seu pai.
Para Talati, o ponto de vista de Mira é absolutamente inegociável. Os seus momentos de pequena auto-descoberta ou de grande noção própria, em particular ligados à sua auto-estima e educação sexual, são aqui vistos sem compromissos, ainda que novamente não muito distantes das convenções do coming-of-age tradicional. Nesse enquadramento, a personagem de Anila surge como o principal ponto de interesse. Não só a mãe é, aos olhos de Mira, o principal obstáculo entre si e uma saudável vida social e o seu ansiado descobrimento sexual, como a sua própria identidade, roubada de uma infância em convívio directo com o sexo masculino, convoca em Mira um sentido de substituição na sua relação com Sri. Na impossibilidade de fazer da casa de Mira um refúgio perante a tacanhez da sociedade, os amantes são forçados a fugir para as montanhas locais, roubando beijos e encontros crescentemente sexuais. Anila não só cumpre esse papel de tampão face ao que é verboten, como também levanta questões quanto às suas próprias intenções em relação a Sri, convocando uma expectativa de um triângulo amoroso ao estilo de uma Lolita invertida.
É nessa incerteza e na linha entre a convenção do coming-of-age que Girls Will Be Girls não só se torna mais complexo e convincente, como também procura fugir ao expectável. Veja-se aqui o desenlace motivado pela ocasião do tal Dia do Professor. Conforme previsto, Mira é colocada num papel de destaque face à organização escolar, mas a sua relação com Sri já havia assumido um papel corrosivo. Os restantes rapazes marcam uma Índia orientada para a repressão e para a manutenção de uma ordem social fundada na intimidação e, em última análise, na própria violência. Para Mira, o único refúgio é o seio familiar e Anila em especial. De tal forma que é a partir desse encontro, já após o consumar da relação entre Mira e Sri, que, para Talati, surge como imperativa a remoção da tal ambiguidade que existira antes entre Anila, Sri e Mira. Esta pulsão explicativa não enriquece Girls Will Be Girls, mas acaba por retornar a narrativa ao seu cerne familiar. Na sua essência, Girls Will Be Girls não é, nem nunca foi, sobre a relação entre os dois adolescentes, mas sim sobre Mira, a sua descoberta pessoal e a sua mãe. Para Talati, a sua identificação com as lições de Mira enquanto vistas pelos olhos de Anila é visceral e tão mais forte consoante a consegue fazer casar com uma vida social na qual se pede às jovens indianas que sejam tão excepcionais nos estudos quanto modestas na apresentação, bem como inerentemente responsáveis pelos próprios rapazes.