Gertrud, de Carl T. Dreyer, e Lilith, de Robert Rossen (1964) – Dois Retratos Inquietos

Eduardo MagalhãesAbril 18, 2024

1964 marca a despedida de Carl Dreyer e Robert Rossen do cinema, com os dois a centrarem os seus derradeiros filmes numa figura feminina. Não podendo falar numa proximidade estilística ou literária entre os dois realizadores, há, no entanto, uma vontade mútua de reinvenção da sua arte, um afastamento de preconceitos narrativos, enfim, uma afirmação na tentativa. Se for preciso um flashback porque não usá-lo? Ambos vinham de uma década algo amarga e tumultuosa. Dreyer não filmava desde 1955 e o financiamento teimava em não aparecer, o que não deixa de ser paradoxal conhecendo o percurso prolífico de outros realizadores da Escandinávia social-democrata. Por sua vez, Rossen, após a glória oscarizada dos seus primeiros filmes, serviu de alvo fácil para a House Committee on Un-American Activities devido a certas simpatias políticas. Obrigado a escolher, continuou a trabalhar, apesar da constante má fortuna com que as suas obras seguintes foram recebidas, excetuando, obviamente, “The Hustler” (1961). Logo, é evidente que os dois aproveitariam ao máximo qualquer oportunidade. Ao ver estes derradeiros filmes é imperioso assinalar que nada foi deixado ao acaso.

Parece-me que quer com “Gertrud” no caso de Dreyer, quer com “Lilith” no caso de Rossen, estamos perante dois artesãos pacientes no apuramento, ou até sublimação, de uma linha de raciocínio. A primeira vez que escutamos os nomes das personagens é na interrogativa. Dreyer abre o seu filme com “Gertrud… Gertrud?”, já Rossen adensa a neblina da mulher enigmática e só quase a meio da fita alguém vocaliza: “Lilith? Lilith?”. Aqui não há respostas fáceis ou difíceis, só diferentes formas de encarar o tempo e o espaço.

Há na tradição literária, uma tendência a entender as palavras de romancistas e poetas dedicadas a mulheres como ou muito boas ou muito más.  As designações de mulher-anjo e mulher-demónio surgiram como inevitabilidade face às sensações de Pureza e Morte que, respetivamente, os versos e ademais linhas suscitavam. Todavia, podemos ler nas mesmas proposições uma forma comum de impassibilidade. Veja-se a virgindade de Maria ou a indecência atribuída a Maria Madalena que constituem fortalezas perante o exterior, reconhecidas à distância por todos. Acima de tudo, duas e uma mesma forma de Amor pois não existem tipos diferentes. Logo, não percamos tempo em fáceis catalogações. Entendam-se Gertrud e Lilith como profetas dessa unicidade, o Amor, encontrada no primeiro caso e destruída no segundo.

I – Gertrud: Amor Omnia

Comecemos pelo único momento onde quase não vemos Gertrud, de resto quase dona absoluta da integralidade do filme. O poeta Gabriel Lidman, antigo relacionamento de Gertrud, vai ser homenageado num jantar de gala promovido por diferentes personalidades, entre elas o futuro ministro Gustav Kanning, marido de Gertrud. Também presente está o jovem pianista Erland Jansson, amante de Gertrud. Rufar de tambores irrompe do cimo de uma escada, vozes masculinas começam a cantar, com a câmara a acompanhar, primeiro em panorâmica, depois em travelling, o movimento do grupo que se vai aproximando da mesa principal onde se encontram o poeta e o político. Pequenos cortes vão-nos mostrando reações dos ouvintes e outras pessoas a cantar. Há uma harmonia que irradia pela sala, em parte conferida pela simetria e luminosidade, e também pela claridade das palavras cantadas. Após pequenos discursos oficiosos, a sala torna a cantar e o grupo sai. Cabe agora a vez ao político, a câmara desliza à procura da protagonista, parando quando esta solta um suspiro. Agoniada, Gertrud sai. Não mais voltamos a este lugar.

Num filme essencialmente constituído por diálogos à porta fechada, confidências entre amantes e reflexões tristes mais que discussões, a cena transata oferece uma confortável bonomia. Todavia, para uma história como esta que valoriza a intimidade, tudo o que vimos é encenação. Dir-se-ia que quase todos sorriam e cantavam como manequins.

A perturbação de Gertrud não é necessariamente imputável ao propósito da cerimónia ou à recordação dos sentimentos que a uniram ao homenageado, mas à mascarada em curso. Neste aspecto, a ramificação sinuosa do enredo, que não deixa de estar focada na vida amorosa da protagonista, escapa à mera malaise burguesa de alcova. Esta cena, tão elevado artifício, era afinal inútil, e, por sê-la, mais forte é a alfinetada. Explico, toda a geometria euclidiana em polida mise-en-scène ou a candura das vozes e rostos estão lá como açúcar em pó em cima de um bolo. Sacudimos e não perdemos nada. Dreyer, o artista, cultiva a dúvida, o tormento, a inquietação.

O determinismo é cruel sina. Gertrud teve sempre de “escolher maridos” (sublinhando o plural). Sim, este é um filme em que uma lúcida protagonista desconstrói o mesmo romantismo que toda a vida acarinhou. “Se me amas, tens de o dizer”, assim confronta Gertrud o mais novo dos seus amantes para uma certa estupefação deste. O poeta, o político e o músico são fantasmas, na medida em que nenhum crê no Amor que Gertrud idealiza. Logo, a partilha é impossível. O que fazer? Limitar-se aos papéis de esposa ou de amante?

Em conversa com o seu amigo Axel, que podemos ver como tabelião do seu génio, Gertrud denuncia o livre-arbítrio, tem-no em baixa consideração. A elegância do seu discurso revela que procurou equilibrar o destino, “fatum” horaciano, com as suas decisões. Separou-se do poeta, casou-se com o político e assumiu o caso extraconjugal. Todas elas ações resultado da digestão inexorável do presente e tomadas em consciência do que isso resultaria. Porém, há uma necessidade de ultrapassar esta vida metódica, assim como uma ansiedade que nem o mais disciplinado dos estóicos consegue esconder. “Tive um sonho. Corria nua pelas ruas, perseguida por cães. Acordei quando me alcançaram.”

Gertrud, a personagem e o filme, reúnem elementos de outros filmes e “heroínas” de Dreyer.  Pense-se na solidão espiritual da mulher e na tremenda força do que se diz. Os olhares absortos dos actores que evitam o contacto visual, preferindo cada um desenhar um arco que pode ou não pode conduzir à íris do interlocutor.  Também não conseguimos ficar indiferentes a uma certa leveza infantil, quase um choro soluçado, com que alguns personagens se lamentam, a fazer lembrar o velho ancião em “A Palavra” (Ordet, 1955), ou a bruxa em “Dia de Cólera” (Vredens Dag, 1943), e aqui o poeta Gabriel ao acentuar as suas mágoas.

Há ainda a forma inconfundível como Dreyer compõe o espaço. Nunca na prisão Bressoniana haveria lugar para tanta construção elaborada ou para uma luminosidade quase fluorescente. Aliás, mesmo tendo presente uma certa predileção em confinar as suas protagonistas (Joana d’Arc na Paixão, Anne em “Dia da Cólera”), Dreyer nunca abdica do Barroco. Desde a primeira hora com “O Presidente” (Præsidenten, 1919), que arabescos surgem nos cenários carregando a tal ansiedade do destino, qual dimensão sem resolução. Aqui, as estátuas, os quadros, as cadeiras, os espelhos, todos surgem em jeito de baixo contínuo face aos duelos a duas vozes que vamos assistindo entre Gertrud e o homem que a dado momento a acompanha.

Não creio que se possa falar na dúvida como constante na obra de Dreyer. As personagens não se questionam no sentido de incerteza. Se os filmes anteriores a Gertrud contém elementos que a princípio desafiam um qualquer racionalismo: vampiros, bruxas, loucos e milagres, não são eles que perturbam o meio onde as personagens se movem. Talvez a perturbação seja orgânica ao próprio meio, ou, pior, parta de nós mesmos. A reclusão, a loucura, a conformação, ou a hipocrisia serão, então, diferentes veículos para a saída.

Curioso que todos os interlocutores de Gertrud sejam artistas (estou a contar a política como forma de arte) e ela própria, antiga cantora de ópera, também o é. Na transição dos séculos XIX para XX época em que o filme se passa, encarava-se a arte como grande força impulsionadora de movimentos, libertadora de preconceitos e mentalidades. Neste filme, os artistas são demasiado fracos (ou demasiado humanos) para agirem. Não confrontam nada, em privado apenas lamentam, em público refugiam-se na pontificação e citação ocasional: “Uma alma sincera não precisa de esconder os seus sentimentos”.

No fim, no quarto de Gertrud, que daria um estranho contraponto ao quarto de David Bowman em 2001: Odisseia no Espaço, já tudo foi ultrapassado. Fica um testemunho, uma boa arrogância de alguém que viveu com a teimosia do Amor como estrela orientadora: Amor Omnia (o Amor é tudo). Ao espreitar no umbral do infinito, “todas as memórias serão esquecidas, todo o fogo se apagará”. O que resta? Não importa. Cada um encara a vida à sua maneira. Gertrud escolheu o Amor, uma metafísica sem o ser. Sem demonstrações nem verificações, portanto, negação de ciência. Não se fale também em arte de amar, visto que o artista não é a sua arte. Fica uma beleza sem importância e que boa forma de não ter importância é o cinema.

II – Lilith: Além do Êxtase

É difícil falar de “Lilith” sem falar do mito que lhe dá o nome. A figura de Lilith surge em diferentes contextos mitológicos e teológicos, com destaque para a tradição cabalística judaica, onde seria a mulher criada antes de Eva e feita do mesmo material (terra) que Adão e não de uma parte deste último. Diferentes tradições apontam-na como incitadora de conflito, quer como motivo de disputa por Caim e Abel, ou como provocadora de Eva. Logo, cedo adquiriu contornos de demónio. Sedutora de homens, mulheres e crianças, Lilith teria de viver enclausurada ou no abismo, à margem de qualquer comunidade, para que o seu talento de profanação e insídia não ganhasse forma.

Neste filme, Lilith é paciente num instituto psiquiátrico, raramente saindo do seu quarto. Numa interpretação brilhante, longe e perto da santa e ninfeta que Preminger criou, Jean Seberg dá corpo a uma personagem que se sustenta em sucessivas rondas de cativação e inquirição dos seus interlocutores, estando à cabeça, Vincent, veterano de guerra e terapeuta em formação. Numa comparação algo truculenta, um dos médicos descreve a sua esquizofrenia através de exemplos animais, nomeadamente pelas aranhas que tendo a doença tecem teias altamente assimétricas.

Se, com o tempo, o drama romântico envolvendo paciente e médico tornou-se algo gasto e previsível, o filme de Rossen por seguir à risca o mito acaba por escapar a tal sentença. Aliás, os únicos momentos fracos do filme correspondem à forma insípida na abordagem à vida de Vincent fora do hospital e sem Lilith. De resto, o talento de Rossen é suficiente para agravar a crescente confusão na mente do terapeuta. Transições e montagem criativas, o contraste entre as grades do hospital com as torrentes de água e pontos de luz do reflexo, até a forma como o realizador nos dá a mão em prenúncios esclarecidos (o foreshadowing) para enfrentarmos esse nevoeiro efervescente resultado das maquinações de Lilith.

No início, referi que a primeira vez que alguém se dirige a Lilith pelo nome é já numa fase adiantada do filme. Lilith espreita o seu reflexo na água, avança pela bruma e sussurra: “You call me Lilith”. Tal não é acidental, dizer o seu nome é prova de contacto, de intimidade, logo a deixa apetecível para atirar o feitiço. Daí à consumação há um longo episódio, quadro repleto de imaginário de um Amor antigo, envolvendo cavaleiros, lanças, anéis e, lá está, o “demónio” a encantar crianças. Por instantes, somos convidados a justapor a paixão sincera com o impulso latente da profanação.

Este filme não servirá como narrativa clássica, todo o romance e ciúme degeneram numa última parte confusa e difícil, em que o lado cru das perturbações mentais sobe à tona. Lilith da mitologia desce à condição de Lilith mulher doente. Seberg não desilude na forma gutural com que projeta esta segunda e verdadeiramente única face. Já as explicações e desfechos numa resolução algo imediata (o irmão de Lilith, a mãe de Vincent) transformam o filme num caso lógico, frio e mecânico, para, de seguida, regressarmos ao início como num desenho de M.C. Escher. Talvez se exigisse uma continuação da linha poética sem esclarecimentos, procurando a ambiguidade ou segunda leitura noutra vertente, culminando numa conclusão que vincasse a destruição neste ambiente recluso. Muitas são as lendas e mitos que encerram com a expulsão ou implosão dos seus protagonistas, “Lilith” não é exceção, apesar de ficar um sabor amargo sobre como lá chegámos.

Para fechar, socorro-me de fragmentos de uma letra de Leonard Cohen bastante ilustrativa do espírito de alguns momentos do filme. O cantor vai narrando num misto de desprezo e comoção os diferentes destinos de homens que se perderam de amor por uma mesma mulher:

“I showed my heart to the doctor

He said I’d just have to quit

Then he wrote himself a prescription

And your name was mentioned in it.

 

Then he locked himself in a library shelf

With the details of our honeymoon

And I hear from the nurse that he’s gotten much worse

And his practice is all in a ruin.

(…)

An Eskimo showed me a movie

He’d recently taken of you

The poor man could hardly stop shivering

His lips and his fingers were blue.

 

I suppose that he froze when the wind took your clothes

And I guess he just never got warm

But you stand there so nice in your blizzard of ice

Oh please, let me come into the storm.”

Depois de expostas todas as “perdições”, a canção termina com o cantor a trautear um “lalala” choroso e raivoso, abrindo para interpretações. Entender o Amor sempre levou a grandes estados de espírito, faça-se metafísica ou loucura, não ficamos indiferentes.

*Os dois filmes foram exibidos no cinema Nimas (Lisboa) como parte do ciclo “For Ever Godard”

Eduardo Magalhães