Garden State: 20 Anos entre os Subúrbios e as Soundtracks

Carla RodriguesAgosto 16, 2024

Há filmes que ficam conosco, não apenas pela história que contam, mas pelo momento da nossa vida em que nos encontram. Garden State é, para mim, um exemplo desses filmes. Lançado em 2004, a estreia de Zach Braff como realizador foi uma espécie de marco cultural para uma geração de jovens adultos que tentavam encontrar o seu lugar no mundo. O vigésimo aniversário do filme parece-me uma boa altura para refletir sobre o seu legado e a influência que teve na minha vida — e, provavelmente, na vida de muitos millennials como eu.

Quando o filme saiu, eu tinha uns turbulentos 18 anos e, cinematograficamente falando, estava mergulhada até aos olhos na minha fase de filmes de terror. A  minha adolescência foi alimentada por uma dieta constante de Pesadelos em Elm Street, Sextas-Feiras 13, Halloweens, e qualquer outro filme de terror, mais ou menos rebuscado, que conseguisse encontrar no clube de vídeo. Sustos, sangue e tripas eram o meu pão com manteiga. Se hoje em dia me orgulho de ser eclética nos meus gostos cinéfilos, na altura era mais rígida. Gravitava para o terror, para o obscuro, para o bizarro. Mas, para minha sorte, houve um pequeno filme indie que me ajudou a abrir a mente e as expectativas para outros géneros – cinematográficos e musicais.

O primeiro encontro

Na altura em que vi Garden State no cinema pela primeira vez, estava naquela fase estranha entre o fim do secundário e o início da vida adulta. Já tinha entrado na faculdade, mas sentia-me à deriva. Não me sentia encaixada no que esperavam de mim, não gostava do curso, e flutuava sem grande direção na espuma dos dias, sem saber o que ia ser de mim ou o que queria fazer amanhã. O futuro era ao mesmo tempo uma coisa nebulosa e iminente, e o presente parecia um balão vazio em que não tinha a certeza de nada. Senti que o filme falava diretamente desse sentimento. Senti que falava um pouco para mim.

Para além de realizar o filme, Zach Braff interpretou o protagonista Andrew Largeman, um ator em dificuldades que regressa à sua terra natal, nos subúrbios de Nova Jérsia (o dito Garden State), após a morte da mãe. A segurar as pontas da vida com a ajuda dos antidepressivos que tomou desde que se lembra, Andrew é um indivíduo dormente, desligado das suas emoções, do seu passado e do seu futuro, sem um sentido de direção claro e a precisar de um abanão.  Pareceu-me familiar. Para mim, via nele a minha angústia ainda adolescente e a sensação de estar perdida apesar — ou talvez por causa — da liberdade que supostamente vinha com a vida adulta.

Garden State

Para além desse efeito de espelho, o que tornou o filme especial para mim foi a banda sonora. Naquela altura da minha vida, ouvia quase exclusivamente punk ou – lamento dizê-lo – nu metal. Não me interessava muito pelo indie rock alternativo da altura. Lembro-me perfeitamente de adorar Fever to Tell, dos Yeah Yeah Yeahs, mas a minha aventura para fora da zona de conforto musical ficava-se por aí (e nem era assim um esticão tão grande, elementos de punk não faltam nesse álbum).

Mas a banda sonora do Garden State foi uma revelação. Introduziu-me  — a mim e a inúmeros outros — a artistas como The Shins, Iron & Wine e Frou Frou. O meu pai já me tinha tentado pôr a ouvir Nick Drake e Simon & Garfunkel, mas foi o Zach Braff que acabou por me convencer. As músicas, escolhidas a dedo, não eram só pano de fundo; eram parte integrante da narrativa do filme. Cada canção refletia o estado emocional de Andrew e, por extensão, o meu. Ouvi a banda sonora centenas de vezes sem enjoar. Estava em repetição constante enquanto eu navegava pelo pavor existencial que parecia acompanhar a minha entrada na vida adulta (e que, na verdade, nunca me abandonou). Foi uma porta de entrada escancarada para explorar géneros musicais diferentes e começar a construir uma identidade mais exigente e eclética.

A sinergia entre a música e o filme foi a grande conquista de Braff. Conseguiu criar um filme que não era apenas uma história — era um sentimento, e a música foi fundamental para alcançar este efeito. Não foi só porque Braff escolheu boas músicas (que eram), mas porque as usou de uma maneira cirúrgica e eficaz. O uso de Don’t Panic dos Coldplay (antes de serem pindéricos), na cena de abertura, In the Waiting Line dos Zero 7, durante uma festa cheia de jovens a procurarem sentir algo, com a ajuda de substâncias, e Let Go, dos Frou Frou, nos momentos finais do filme — estas músicas não eram só uma parte da banda sonora, elas eram a banda sonora de um despertar emocional.

E que dizer da cena em que Andrew e os amigos, sob chuva copiosa, berram para um abismo ao som de Simon & Garfunkel? Não tenho vergonha de dizer que a catarse desse momento me fez andar com os meus amigos aos berros num mato perto de onde vivíamos, a tentar captar o sentimento de libertação que o filme transmitiu.

Pronto, afinal tenho alguma vergonha. Mas em 2004, o meu cinismo (ou exigência, vá) ainda não me fazia ver esta cena como, ao mesmo tempo, pretensiosa e vulgar. Pareceu-me genuína. Uma catarse poética.

Garden State Simon & Garfunkel

Para o bem ou para o mal, Garden State tornou-se o emblema de um determinado tipo de filme indie. Era doce, mas não demasiado meloso; melancólico, mas não constantemente deprimente. Abraçava a estranheza da vida e não tentava oferecer grandes soluções. Em vez disso, sugeria que talvez, só talvez, encontrar a música certa, o momento certo, e as pessoas certas poderiam ser os ingredientes para melhorar um pouco as coisas.

Mas, claro, com o tempo, vem a reflexão, e nem toda tem sido positiva. Desde 2004 que o público, de forma geral, tem virado as costas a este antigo indie darling. O que dantes parecia fresco e cru parece agora forçado e indulgente. Falou-se de como o filme se apoia demasiado no cliché da “manic pixie dream girl” com a personagem de Natalie Portman (apesar de, a par com Eternal Sunshine of the Spotless Mind – que saiu no mesmo ano – possivelmente ter sido um dos primeiros filmes a criar esse arquétipo), e como a sua estética indie, outrora original, se tornou num lugar-comum. E, sim, olhando agora com olhos mais velhos e críticos, consigo ver essas falhas.

No entanto, parece-me importante lembrar o contexto em que o filme foi lançado. Em 2004, Garden State foi uma lufada de ar fresco. Falava a uma geração que, pela primeira vez, estava a enfrentar o peso total das responsabilidades adultas enquanto ainda se sentia um pouco infantil ou sem direção. Pode não ter envelhecido na perfeição, mas as emoções que refletiu pareciam genuínas, e é por isso que se cristalizou na minha memória como um retrato acertado do que foi, para mim, ser uma jovem relativamente à deriva em 2004.

Não voltes onde já foste feliz

Embalado pelo sucesso de Garden State, Braff quis, compreensivelmente, replicar a magia. Em 2014, lançou Wish I Was Here, um filme que, em muitos aspetos, tentou ser um sucessor espiritual de Garden State. Mas qualquer coisa estava diferente. Braff já não era um jovem ator com algo a provar. A angústia que alimentou Garden State tinha-se suavizado e era agora algo menos urgente. Wish I Was Here tentou capturar a mesma mistura de melancolia e esperança, a mesma combinação de luta pessoal e humor quirky mas a receita provou ser impossível de replicar. Sem surpresas – num momento diferente da vida, Braff já não foi capaz de injetar a mesma sinceridade no filme. E, quando o sucesso de Garden State dependeu quase exclusivamente disso, o novo projeto acabou por parecer forçado e artificial.

Braff ainda quis pôr o foco na banda sonora, com artistas como The Shins (os repetentes) e Cat Power, mas não teve o mesmo impacto. Talvez porque o contexto musical tivesse mudado, talvez porque as cenas que acompanhavam as faixas não tinham a mesma convicção, ou talvez porque o tipo de honestidade emocional que Garden State capturou já não fosse novidade. Seja qual for a razão, Wish I Was Here pareceu-me mais um exercício de nostalgia, demasiado pretensioso e indulgente, do que um momento cultural.

Wish I Was Here serviu como um lembrete de que não se pode voltar atrás no tempo. O charme de Garden State está ligado a um tempo e um lugar específicos, tanto na vida de Braff quanto na nossa – os jovens perdidos que se reviram no Andrew Largeman. Tentar recriar isso uma década depois ia ser sempre uma tarefa quase impossível.

O Que Resta em 2024?

Aqui estamos em 2024, vinte anos depois do lançamento de Garden State. O que é que o filme tem para nos dar agora? Para quem viu no momento certo, continua a ser um marco nostálgico. É uma recordação de um tempo em que a vida parecia tanto aterrorizante quanto cheia de possibilidades. É o filme que introduziu muitos de nós à ideia de que os filmes podiam ser mais do que apenas entretenimento — podiam ser experiências, reflexões, espelhos, bandas sonoras das nossas vidas.

Garden State

Para novos espectadores, Garden State não terá certamente o impacto que teve para aqueles de nós que o viram em 2004. O mundo mudou, e também os tipos de histórias que contamos sobre a transição para a vida adulta. Mas acho que ainda há algo de valioso estampado na película. Os temas do filme — de se sentir perdido, de procurar uma conexão, de tentar descobrir quem se é — são intemporais. A execução pode estar enraizada no início dos anos 2000, para o bem ou para o mal, mas as emoções são universais.

E depois há a música. Mesmo que o filme em si não ressoe com novos espectadores da mesma forma, a banda sonora continua impecável. Ainda tem o poder de emocionar, de evocar um sentido de saudade e esperança que parece tão relevante hoje quanto há vinte anos.

Olhando para trás, e assumindo que é uma perspetiva muito pessoal, Garden State foi mais do que apenas um filme — foi um momento. Capturou as esperanças, medos e incertezas de uma geração à beira da vida adulta. E às vezes, perceber que o que estamos a sentir é normal e que afinal não estamos sozinhos pode ser um alívio. Ver outra pessoa a lidar com as inseguranças do início da vida adulta faz com que os nossos conflitos internos pareçam um pouco menos assustadores. Tornou-se um símbolo de uma era, um eco dos sentimentos de quem procurava significado, propósito e conexão num mundo em constante mudança. Atualmente, o filme pode parecer meio ingénuo, um pouco delicodoce, quase a roçar o irritante com os tiques quirky das personagens tão alternativas. Mas será culpa do filme ou culpa minha? Afinal, já não tenho 18 anos.

 

Carla Rodrigues

 

Carla Rodrigues