A estreia de Megalopolis nas salas portuguesas propiciou uma homenagem da equipa da Tribuna do Cinema a Francis Ford Coppola, na forma de um Dossier. Animados pela inevitável revisita de algumas das mais emblemáticas obras do realizador – tão impulsionada pela necessidade individual da escrita dos textos, como pelas leituras das redações dos colegas – resolvemos rematar as discussões internas com a composição de um ranking dos seus 10 melhores filmes. Mais que o corolário das nossas preferências pessoais, ou que a procura de um consenso artificial, este foi um pretexto para prolongarmos a estadia numa das mais peculiares, versáteis e inspiradas filmografias da história do cinema. O ponto de chegada de uma aprazível viagem, que agora partilhamos com os nossos leitores.
Duas menções honrosas :
Jack (1996)
Não é incomum termos experiências de sala a ver filmes que terminam com a vívida ideia de que nunca seriam feitos hoje em dia, por esta ou por aquela razão. Jack é o exemplo perfeito desta noção. Não por causa do clima político, pelo tipo de produção que é, ou sequer devido ao desinvestimento de Hollywood neste tipo de filme familiar. Jack é sobretudo um filme da sua era, necessariamente por ser inapelavelmente sincero e honesto ao ponto de nos desarmar. Seria fácil contar uma história destas com piscares de olho, desconversa e boas doses de ironia pós-moderna. Jack rejeita tudo o que não seja sinceridade e absoluto comprometimento com o contexto da sua personagem principal. Robin Williams é, de resto, a força vital de Jack, e um casting tão feliz precisamente por ter pautado toda a sua carreira pela mesma honestidade e compromisso com a autenticidade que Coppola. A visão crítica contemporânea, que desconsidera Jack como um simples veículo para a comédia estilo one-man-show de Williams, é, na verdade, o maior dos elogios ao absoluto comprometimento de um realizador desacreditado por muitos e em fase de integridade à venda. Jack, a personagem, não é simplesmente uma criança no corpo de um adulto, ou alguém cujos maneirismos apenas servem para cumprir deixas cómicas de inconveniência infantil. O corpo não corresponde. Jack é uma criança no verdadeiro sentido da palavra, do comportamento mais banal às preocupações “coming of age“. Mesmo quando utiliza a sua condição corporal de adulto para fazer coisas de adulto, Williams reforça sempre a sua criancice: quando vai ao bar de Fran Drescher, depois de uma zanga com a mãe, e amontoa amendoins e cerejas para comer, ou quando compra revistas pornográficas e se esquece do seu propósito. Coppola força sempre a honestidade e a lealdade à personagem, preso entre a preocupação da mãe (Diane Lane, em mais um excelente papel para Coppola) e a necessidade de crescer com um prazo de validade. Em última análise, é o desporto o grande aproximador social que liga Jack aos restantes colegas, e é a genuinidade da ideia de meninice que gruda Jack à desejada normalidade (“you will never be regular“, diz-lhe Bill Cosby). Um filme sincero, brutalmente comprometido, e, por isso, devastadoramente sério, mesmo nos seus momentos leves.
Hugo Dinis
Twixt (2011)
Hall Baltimore (Val Kilmer) toma os comprimidos que encomendara ao Xerife LaGrange (Dern), e a partir de então, tanto adormecido como quando acordado, Twixt move-se como que preso dentro de um sonho mau. Nada faz realmente sentido naquele lugar sem hora, e este “bargain basement Stephen King” parece evocar o Nosferatu de Murnau a par de Silent Hill (o jogo de computador…). O horror artificial das imagens sustenta uma metaficção – como confessado junto ao “GUILTY” de sangue – cujo auto-referencialismo explode na mais inarrável projeção de cinema sobre a gigantesca “tela” de um precipício. Um filme terrivelmente forreta no seu artifício – e de um obstinado gosto… camp, que, ainda assim, enfraquece o todo final – Twixt é o estranho projecto de um louco, tanto poético quanto feio. Talvez quiséssemos que as suas imagens fossem mais robustas, menos hesitantes entre a paródia e o onírico. E o desenlace será sem dúvida apressado e inconclusivo. Mas este é o filme que, ao estender a mão a um cinema popular e artesanal, liberta o digital de Copolla de todo o embaraço narrativo ou formal dos dois filmes precedentes, para abraçar uma mais sincera fragilidade. Twixt é um sonho para alcançar o Passado. E um sonho assombrado por imagens de tragédia. Deixem-me acordar.
Miguel Allen
_______________
10º The Godfather Part III (1990)
O mal amado da trilogia Godfather não deixa de ter os seus ilustres defensores. Serge Daney e João Benárd da Costa, por exemplo, consideram-no superior aos dois primeiros filmes. Terá sido apenas para serem diferentes e se afastarem da aclamação universal? Não nos parece. E é justamente através da oposição do terceiro capítulo da saga com o segundo e quarto classificados do infame top 250 do IMDb (The Godfather e The Godfather Part II, respetivamente) que encontramos os principais pontos de interesse. Com a tecla do melodrama bem mais carregada, The Godfather Part III demite-se plenamente da categoria de filme de prestígio onde os dois primeiros filme se inserem. Com uma diferença de 16 anos sobre o Part II, Coppola encontrava-se então numa fase completamente distinta da carreira, já bastante longe do período New Hollywood. Muito se escreveu sobre o trabalho menos conseguido de alguns atores ou mesmo do overacting de Pacino, mas Coppola opta por retirar toda a ambiguidade moral e glamour que ainda restava, em detrimento de um mergulhar profundo na tragédia e decadência de um homem/mito que se despede deste mundo em plena solidão e arrependimento. Contrariando os detractores, que o descartam e negligenciam, The Godfather Part III é efetivamente um fim justo para a trilogia de Michael Corleone, que ao invés de comprometer o trabalho até então feito vem enriquecer o retrato, abalando os alicerces e subvertendo o intocável estatuto dos dois primeiros filmes.
Bruno Victorino
9º Peggy Sue Got Married (1986)
Apenas um ano depois de Back to the Future (1985), de Zemeckis, Peggy Sue é um fiel diapositivo da forma como os anos 80 fomentaram na sociedade americana a criação de uma mitologia idealizada do passado, em particular do seu período pós-Guerra. Muito embora o Reaganismo promovesse a estética de um certo futurismo associado ao optimismo económico da dita libertação dos mercados, este também esteve sempre dependente de uma noção de retorno a um passado glorioso (visão até recuperada no contexto político americano actual). Mas enquanto que Zemeckis aproveita o retro-futurismo idealizado dos fifties para criar uma epopeia aventureirista, Coppola vê aqui a sua oportunidade para reexaminar o passado, fazer dele um reavaliar das circunstâncias e das opções que tomámos. Peggy Sue regressa à escola não tanto para reviver um período feliz, mas sobretudo para reafirmar a sua escolha marital, sob a forma do bonacheirão desatento e sonhador Nicolas Cage. Pelas circunstâncias do que sabemos do futuro, em particular dos filhos de Kathleen Turner, este é um exame de consciência que só poderia ter um resultado possível, ainda que Peggy Sue faça caso de revisitar os seus “old flames”, não mais apelativos do que a sua memória os aconselhava. Um doce reafirmar do presente num passado idealizado.
Hugo Dinis
8º Megalopolis (2024)
Um filme desconcertante e difícil de adjectivar, Francis atira temas para a mesa sem conexão ou coesão aparente, alienando talvez a maior parte dos espectadores com a dificuldade da sua descodificação à superfície. As personagens são meras metáforas e o visual excêntrico, sem qualquer restrição ou comedimento, que reinventa uma New York futurista com pele de antiga Roma, é ofuscante. A tudo isso juntam-se diálogos Shakespeareanos reproduzidos por uma série de actores cabeça de lista da presente Hollywood, representando arquétipos e símbolos sociais, históricos, enfim, uma série de coisas. Não é no entanto segredo que Megalopolis, simplificadamente sobre um arquitecto outrora renomado que tem uma visão impossível de concretizar, é uma metáfora autobiográfica para o seu próprio realizador, e a partir daí tudo o que era da sua complexíssima narrativa se torna inocentemente simples. A isca da ficção científica (time: stop!) não se concretiza, partindo Coppola para um refastelamento imagético dir-se-ia transcendental, a lembrar alguns momentos mais recentes de Malick incluindo Tree of Life. Mas o visual é também ele plástico, repleto de CGI e artificialidade fundida com efeitos visuais práticos e técnicas de camera criando uma imagem dir-se-ia virtual. É inegável que a sua difícil acessibilidade levou a uma produção infernal, um fracasso de audiências autofinanciado por Coppola, mas é precisamente a sua singularidade que faz de Megalopolis um filme tão único e fascinante, talvez até ternurento. Uma torre de Babel catastrófica que ficará nos anais das curiosidades históricas da sétima arte.
David Bernardino
7º Rumble Fish (1983)
Nuvens e reflexos solares passam em timelapse sobre Tulsa. Anuncia-se a inexorável marcha do tempo numa terra estagnada. Se a superfície de Rumble Fish aponta para um mero art film for teenagers (palavras do próprio Coppola), os temas abordados “denunciam” que o seu fundo contém a essência absoluta do cinema americano. Engarrafado numa small town onde os sonhos morrem antes de sequer germinarem, o jovem Rusty James (Matt Dillon) mascara os seus sentimentos de abandono em poses de hipermasculinidade, e a descrença num futuro viável na nostalgia de um mitificado passado de banditismo – anteriormente liderado pelo seu irmão, Motorcycle Boy (Mickey Rourke). A promessa da liberdade individual de outrora – personificada nos heróis errantes, em permanente fuga da civilização e da Lei – choca de frente com o presente decrépito do “meio pequeno”, o desolador futuro de integração nas normas da sociedade de consumo e o retorno anticlimático do seu paladino. Motorcycle Boy, que deveria restituir a juvenil anarquia desejada, é, afinal, o testemunho de um paraíso perdido chamado América. Como noutros projetos de Coppola, o emprego de uma mise-en-scène ostensivamente artificial é condição necessária para expor a verdade interior das personagens, a partir da qual emanará a verdade do seu (e do nosso) meio. É essa marca coppoliana, verificável a partir de One From the Heart – assente na aglutinação de diversos géneros cinematográficos e linguagem do teatro, na troca de realismo por simbolismo e personagens-tipo, e no experimentalismo formal – que torna único mais um confronto do cinema americano com o próprio mito que ajudou a erigir. Das imutáveis crises existenciais da juventude, e do “ser americano”, ao olhar situacionista (epidemia de heroína), todos os males parecem caber na redoma hipertemporal desta cidade-país. Porém, Coppola nunca foi cínico, e entre os variados desconsolos com os múltiplos presentes que viveu, nunca deixou de piscar o olho a um porvir esperançoso. Neste caso, oferece-nos um literal oceano de possibilidades, num plano final que (ainda que com uma escala consideravelmente menor) viria a rimar com o de Megalopolis, 40 anos depois.
Gil Gonçalves
6º Bram Stoker’s Dracula (1992)
Evocando as fantasias de Powell & Pressburger, uma sternbergorama que discorre, inconstante, entre um camp conceptual anos 1970 e a Gesamtkunstwerke de Wagner. Neste exercício de cinefilia aplicada de Coppola existe talvez um pouco de tudo, das sombras e encantamentos do Faust de Murnau ao pulp de Corman, do Ivan de Eisenstein aos Kurosawa tardios. Um filme rico da sua poesia algo grosseira, uma obra de ultra-romantismo através de uma investida curiosa pelo cinema de horror, ou talvez um conto de amor, eterno mas fugaz, a partir de ilustrações de desejo carnal num quadro sinistro. Ainda que identificado como uma transposição para cinema do texto de Bram Stoker, este Dracula de Coppola liberta-se do romance ao deslocar o seu centro narrativo do Conde (Gary Oldman) para Mina (Wynona Rider). Virgem victoriana, aqui tanto um símbolo de devoção amorosa como fonte de transgressão sexual, Eurídice com o seu titular Orfeu, pelo inferno terreno. Dracula antecipa a reflexão sobre o Tempo – a ilusória vida eterna e a morte, o amor e o fim dos nossos dias – que ocupa Youth Without Youth (2007), sendo, pela sua produção justamente mais faustosa, um filme formalmente mais conseguido. Abrindo com um prólogo que é um delírio – e provavelmente um dos maiores de Coppola -, é na sua delirante excentricidade gótica que o filme é mais fascinante – arrisquemos, arrebatador. Do suicídio de Elisabeta sob nuvens carregadas como rochas, àquele sangue que jorra, selvagem, de uma cruz de pedra, com céus nublados de vermelho rubro de onde nascem os olhos de Nosferatu.
Pelo seu trecho central, porém, Dracula demora-se demasiadamente ao seguir quatro estarolas que, com Van Helsing ao comando (um divertido Anthony Hopkins, mas enfim), correm à caça do Conde. Um período extenso de menor fulgor e uma trama demasiadamente ramificada, onde o casamento de Mina com o esforçado Jonathan (Keanu Reeves) na Roménia, ou o chaud-froid mal esquissado entre Mina e o Conde também não ajudam – a narrativa “por lampejos” sendo muito menos eficaz quando se tratam eventos mais prosaicos. E já no seu empolgante desfecho, após aquela cavalgada fantástica pela Transilvânia (curiosa incursão pelo western na panóplia de referências do filme), é com alguma apreensão nossa que a acção se concentra momentaneamente no corpo morto de um certo texano (que saberíamos de quem se trata, fosse isso minimamente relevante), e vira as costas ao vampiro, de garganta cortada, que se refugiara, moribundo, na sua capela românica. Bram Stoker’s Dracula não será, por esses seus delitos de trivialidade, o filme maior de Coppola. Mas será talvez aquele onde o seu génio se revela, espontaneamente, com maior evidência – naquele estarrecedor amor imortal, na sua pérfida alucinação sexual.
Miguel Allen
5º One From the Heart (1982)
One from the Heart, o nono filme de Francis Ford Coppola e o seu segundo musical (depois de ter adaptado “O Vale do Arco-Íris” em 1968), conta a história de um casal, Hank e Frannie, que, após uma relação duradoura mas em crise, decide separar-se numa noite em Las Vegas. Depois de se envolverem com outras pessoas, os protagonistas redescobrem o amor que sentem um pelo outro. Com um argumento superficial, totalmente filmado em estúdio e em sound stages para recriar Las Vegas, o filme destaca-se pela extravagância visual, por ultrapassar os limites do realismo e pela brilhante banda sonora escrita por Tom Waits e Crystal Gayle.
Em 1982, One From the Heart foi um desastre comercial (Coppola quase faliu ao investir o próprio dinheiro na produção do filme) e um fracasso junto dos críticos, que consideraram que a estética do filme não era suficiente para sustentar a superficialidade da história. Este fracasso mudou a carreira de Coppola, na medida em que obrigou o cineasta norte-americano a trabalhar em projectos menos ambiciosos e mais comerciais. No entanto, mais de quarenta anos depois, One From the Heart ganhou um estatuto de culto, sendo reapreciado como um filme ousado e visionário para a época e servindo de inspiração para outros musicais, como Moulin Rouge, de Baz Luhrmann, ou La La Land, de Damien Chazelle.
Francisco Sousa
4º The Godfather Part II (1974)
Um clássico incontornável, The Godfather Part II é, com frequência e justiça, referido como uma das raras sequelas que supera o original. O filme é uma viragem na obra de Coppola – ultrapassa o rótulo fácil de “saga de mafiosos” para se tornar uma exploração sombria da desintegração moral que o poder, tantas vezes, espoleta. Aqui, num conto de gerações, Coppola examina a transição de um certo idealismo quase robin hoodesco para um capitalismo selvagem, onde a lealdade à família se transforma gradual e impiedosamente em lealdade ao império. Mais do que um filme sobre a cosa nostra, Part II é uma reflexão sobre os sacrifícios e compromissos que moldam a ambição humana, mostrando que o preço da ascensão ao poder é, muitas vezes, a própria alma.
Carla Rodrigues
3º The Conversation (1974)
Uma curiosa obra-prima de cinema atonal “entalada” entre dois filmes monumentais, um projecto mais pessoal para Coppola viabilizado por duas encomendas muito bem sucedidas (os dois primeiros capítulos de The Godfather). Transportando o modelo clássico do noir americano para o clima de paranóia política que se expandia pelos Estados Unidos de Nixon, nos anos 70 (em plena Guerra Fria, e em antecipação do escândalo de Watergate), The Conversation retrata Harry Caul (Gene Hackman), especialista em escutas secretas. Concluída uma missão, Caul compreende que o casal que fora contratado para espiar corre perigo de vida, e o filme documenta o dilema moral do nosso homem: paranóico e misantropo, um cristão praticante que carrega a culpa de uma missão anterior, onde “causara” o assassinato brutal de uma família.
Um filme necessariamente insatisfatório na sua busca, mas “since when are you here to be entertained ?” A monotonia quase enigmática dos seus espaços contemporâneos, a interrogação discreta na figura de Caul. Pelas experiências sonoras de Walter Murch, um singular objecto perfeito composto de peças dissonantes. Aborrecido, seguindo aquele piano que quase nos embala, depois triste ou inquietante, até dois fortes “sustos”, seguidos de um martelar agressivo. Profundamente marcado pelo “seu tempo”, The Conversation encontra ecos evidentes na nossa realidade de hoje. A sua última cena será uma inquietante imagem da solidão de um homem na sociedade pós-moderna. Com uma quase implosão da antológica sequência final de Zabriskie Point (Antonioni, 1970), Harry Caul tentará, desesperado, reencontrar um abrigo a partir da destruição da sua própria vida material. O piano, e depois o saxofone. Os espaços que se esvaziam perante aquela “ausência” da câmara. E a figura desarmante de Hackman, feito Winston de Orwell, no canto do seu apartamento.
Miguel Allen
2º The Godfather (1972)
A potência da ficção aliada à representação do real, é assim que Francis Ford Coppola pinta um quadro sangrento de despotismo e avidez, cartões de visita da família Corleone, um núcleo familiar italo-americano, proveniente da região Sicília, que domina o crime organizado em Nova Iorque. Uma crónica meticulosamente descritiva e cronológica que abrange uma década de excessos (1945 a 1955), pautada por assassinatos e vinganças, mas cinematograficamente polida pela abundância de nascimentos, baptismos, casamentos e mortes que mascaram toda a influência desta família. Coppola é exímio a retratar relacionamentos familiares, mas sobretudo a trabalhar os traços de personalidade, os detalhes e as diversas camadas de cada personagem. Por outro lado, denota-se em Coppola a mestria na narrativa do crime como motor de sobrevivência, reunindo Marlon Brando, Al Pacino, Robert Duvall e Diane Keaton no mesmo palco. Sem nunca fugir ao uso e abuso do expressivo patriarcado de Vito Corleone na preservação da herança genética mafiosa, este filme demarca-se como alto representante do crime e das suas teias, mesmo que recorra a alguns clichés, tais como planos pormenorizados de caos, de sangue e de droga. No entanto, é no ensino e transmissão do poder e das suas competências ao filho mais novo de Vito, Michael, que Coppola potencia o apelido Corleone, deixando um legado imenso para a continuidade do interesse que esta família desperta nos restantes capítulos da saga.
Rita Cadima de Oliveira
1º Apocalypse Now (1979)
Olhei para ele, perdidamente arrebatado. A sua existência era improvável, inexplicável, e não menos perplexa. Era um problema sem solução. Era inconcebível que tivesse existido, que pudesse ter chegado tão longe, que pudesse ter permanecido – porque não desapareceu instantaneamente. “Um pouco mais para a frente”, dizia, “ainda um pouco mais para a frente – ao ponto de já não saber como voltar para trás…” Porquê Apocalypse Now? Ainda hoje, o seu manto das trevas paira, inquebrável, cobrindo-nos face a um contágio inevitável – deslumbramento imbuído pela loucura, por mais horrível que seja a viagem, por mais inóspito que seja o destino.
Cedo somos confrontados com a descida. Articulada com uma possante bateria, uma voz grave, como a de um pastor mavioso, vai exigindo responso: “This is the end, the end of laughter and soft lies…” à medida que tudo arde. Mais tarde, lá em cima, visões de valquírias em estranha camuflagem, decreta-se mais fogo. Um filme como uma nuvem furta-cor, ora nevoeiro, ora explosão, até à elevação mais recôndita – a palavra maldita. Sem escapatória, sucedem-se figuras virgilianas, cada uma mais perdida que a anterior. Kurtz! Eloquência em pérfidos relâmpagos e trovões. O que jaz na selva vietnamita? E além, muito além? Navegamos rio acima sobre o génio humano, escutamos o murmúrio da hora final e temos presente “The horror, the horror”. As valquírias continuam a rir-se.
Eduardo Magalhães