A Festa do Cinema Italiano termina domingo, dia 21 de Abril, havendo até lá inúmeros filmes para ver no Cinema São Jorge, Cinemateca Portuguesa, Cine-Teatro Turim, UCI El Corte Inglês e Cinema Fernando Lopes. Nesta segunda parte dedicada ao evento que traz a cultura italiana para Portugal, a Tribuna do Cinema viu O Rapto, de Marco Bellocchio; Profondo Rosso, de Dario Argento; Salon Kitty – O Bordel dos Nazis, de Tinto Brass e O Sol do Futuro e Caro Diário de Nanni Moretti.
Relembramos que a Festa do Cinema Italiano continua no Cinema Fernando Lopes, com o Ciclo Sem Censura – Sucessos do Cinema Italiano no Pós-25 de Abril até 01 de Maio. O Ciclo Sem Censura pretende ser uma celebração da ligação entre Itália e Portugal no que diz respeito ao cinema, à liberdade, e à liberdade para ver e fazer qualquer tipo de cinema. Os 4 filmes em exibição são: Feios, Porcos e Maus (Brutti, Sporchi e Cattivi) de Ettore Scola; Que Viva a Revolução! (Allonsanfan) de Paolo e Vittorio Taviani; Salon Kitty, O Bordel dos Nazis (Madam Kitty) de Tinto Brass e Malícia (Malizia) de Salvatore Samperi.
O Rapto (Rapito / Kidnapped) (2023), de Marco Bellocchio
Bem mais ambicioso do que aparenta, este é um projeto sem qualquer medo do ridículo em que indubitavelmente cai, aqui e ali. Não é muito fácil descrever ou criticar Rapito sem entrar em muitos detalhes. Isto porque além do titular rapto viver de um “porquê” (cujo mistério devemos preservar), funciona sobretudo como pretexto, didático e reflexivo, para responder a muitos “comos”. Ou seja, o verdadeiro propósito de Bellocchio não é tanto extrair o potencial dramático do caso Edgardo Mortara (ainda que o faça sem pudor), mas sim propor uma análise alargada do passado e presente de Itália, baseada na relação dos seus cidadãos com o Poder – que se manifesta em forças coletivas que os ultrapassam, como a Família, o Estado e a Igreja. Por muito que a atabalhoada forma do filme – com o seu ritmo aos avanços e recuos, histerismo dramatúrgico e uso muito questionável de banda sonora – nos possa distrair desta empreitada conceptual, é também ela que possibilita a organização e interligação de tantos temas, de uma forma raramente vista (ou mesmo conseguida) no drama de época “baseado numa história verídica”. Não se trata propriamente de caracterizar e catalogar os diferentes estratos sociais, mas dos impactos que os choques sistémicos entre esses mesmos organismos têm no indivíduo (enquanto pessoa jurídica e enquanto ser humano). É igualmente um dos raros casos em que, através de uma inspirada mise-en-scène, a Igreja Católica nos é apresentada com todos os traços de uma seita de fanáticos. Uma representação de elevado detalhe ritualístico e performático, de onde Bellocchio, através do poder da sugestão, consegue brincar com as nossas expectativas e compor um substrato de perversidade, baseado apenas no que esperamos da proximidade entre crianças e clérigos. Onde, por detrás do excesso melodramático – que parece mostrar todas as cartas e martelar todas as metáforas visuais possíveis – há a capacidade de lançar sementes para outras reflexões mais subtis, como as várias formas que a danosa noção de conversão adotou ao longo do tempo; a prisão mental de uma vida onde todas as escolhas e autonomia foram vedadas; a constante humilhação inerente a grupos sociais hierarquizados; a agenda de coletivos sobreposta aos interesses dos indivíduos que dizem representar e o sonho como dispositivo de realce de conflitos interiores, como escape de pulsões reprimidas pela consciência. Perdoemos, portanto, a Bellocchio qualquer ofensa formal que o tenha deixado cair em tentações mais telenovelescas. Em termos temáticos, estruturais e técnicos, o homem sabe exatamente o que faz.
Gil Gonçalves
Em Rapito vemos o veterano cineasta italiano Marco Bellocchio regressar ao tema que lhe é tão caro e que tem sido o foco fundamental da sua obra, o peso das instituições tradicionais italianas na experiência do indivíduo. No caso em concreto o realizador debruça-se sobre a Igreja Católica, ficcionalizando os factos verídicos associados ao rapto de Edgardo Mortara, uma criança judia de 6 anos que alegadamente teria sido batizada à revelia dos seus pais. Bellocchio vai intercalando a experiência individual de Edgardo, a sua endoutrinação junto do Papa Pio IX, com a análise mais macro das dinâmicas da segunda metade do século XIX entre o Vaticano e o Estado italiano, nomeadamente na relação sensível entre cristãos e judeus. Estamos perante um dos filmes mais acessíveis do cineasta italiano, uma grande produção que lhe permite almejar um filme mais épico do que normalmente associamos quando vemos o seu nome inscrito nos créditos. Tal facto, apesar da elegância da encenação e da pertinência do relato, que encaixa que nem uma luva nas preocupações habituais do cineasta, resulta num filme um pouco mais incaracterístico e impessoal quando comparado com filmes como, por exemplo, Gli Occhi, la Bocca, uma das suas obras primas.
Bruno Victorino
Marco Bellocchio terá sempre o dom da imprevisibilidade e da irreverência na forma como conduz as temáticas que lhe são tão caras. Desta vez, o realizador italiano cria um drama histórico e satírico, debruçando-se na história do rapto de Edgardo Mortara, uma criança hebraica que vivia com a sua numerosa família em Bolonha, Itália, e que em 1858, depois de ter sido secretamente baptizado por uma criada, foi retirado à força à sua família para ser educado como cristão. Neste filme, a luta da família pela libertação de Edgardo dos cristãos é uma alegoria para a vasta batalha política que opôs as forças democráticas e unificadoras de Itália à Igreja e aos seus dogmas. Não sendo um filme de terror, a narrativa acarreta momentos de violência, não gráfica mas uma violência que causa repugnância e certamente alguma repulsa ao espectador. Ao contrário de Edgardo, Bellocchio não se envergonha nem se esconde em lençóis, reconstruindo a história beligerante daquele período de uma forma precisa e assertiva, no entanto, recorre demasiadas vezes a uma excessiva teatralidade nos actos. A encenação é ardilosa, contudo, a dramaturgia inclina-se para um lado gradualmente melodramático ao invés de astuto, o que, por vezes, tende a provocar mais risos do que indignação no espectador, podendo criar alguma desconexão emocional com a intenção narrativa que Bellocchio realmente pretende transmitir. No entanto, urge assinalar as actuações convincentes do jovem Enea Sala como Edgardo e de Fausto Russo Alesi e de Barbara Ronchi como pais do pequeno Edgardo. Em síntese, os temas são claros: família, religião e política. Trilogia esta que vai sempre longe demais em exorbitância cénica mas da qual se esperava mais coordenação na conjugação das mesmas por parte deste mestre do cinema italiano.
Rita Cadima de Oliveira
O mais interessante no novo filme de Marco Bellocchio é provavelmente a caracterização desta Igreja que tudo pode e tudo manda na Itália de 1858, os seus espaços magistrais, as suas roupas, os seus ritos, os seus métodos. No entanto, é também isso que por vezes lhe confere um aspecto plástico e artificial, com recurso a um tratamento de imagem exagerado que lhe retira autenticidade (os momentos CGI algo descontextualizados ou a excessiva luminosidade de certas cenas). A narrativa central, o rapto de uma criança judia por parte da igreja católica, oferece alguns momentos fortes do ponto de vista dramático que cativam a audiência, mas é ao criar um paralelismo entre esse vector e uma sátira espiritual atabalhoada, com momentos de humor algo desajeitados, que O Rapto se desequilibra. O segmento final também não ajuda, com uma conclusão preguiçosa e redundante que infantiliza o espectador.
David Bernardino
Profondo Rosso (Deep Red) (1975), de Dario Argento
Filme charneira na carreira de Dario Argento, Profondo Rosso surge no prolongamento dos seus primeiros gialli, anunciando também as experiências mais espectaculares e cromaticamente tão ambiciosas das obras (mais estritamente) de horror que realizará de seguida. A partir de uma trama de investigação de giallo “clássico”, e ritmado por assassinatos brutais e sangrentos, singularmente bizarros, Profondo Rosso propõe definitivamente a ausência de uma lógica narrativa demasiado rigorosa, como se tornará uma constante no cinema posterior de Argento. Um filme que pretende efectivamente não ser “troppo (…) preciso, troppo formale” – para citar o protagonista (David Hemmings) na sequência de abertura -, tanto glacial quanto histérico, justo como insano. E sobretudo um filme onde Argento se diverte a espalhar, um pouco por toda a parte, as chaves do mistério, parecendo desafiar assim a atenção e entrega dos personagens, como do espectador.
Composições ousadas – em preto, branco, cinzentos e beges, e vermelho intenso – numa cidade de Turim nocturna, filmada a partir dos espaços desertos da Piazza C.L.N. Um cenário vasto, metafísico, saído de uma pintura de De Chirico, onde uma imponente escultura classicista (do rio Po) contrasta com o Nighthawks, de Edward Hopper, evocado ao centro do quadro (o “Blue Bar”). Os amplos espaços urbanos racionalistas, pesados e inquietantes, serão o contraponto de interiores sobrecarregados de informação e iconografia, parecendo codificar a desolação (e amargura) que o filme transporta em permanência. O desenlace surgirá na verdade a partir de uma outra arquitectura, uma moradia, cujo estilo Art Nouveau parece responder enfim aos segredos e desejos (à perversão?) dos personagens.
A busca obstinada por uma imagem enterrada na nossa memória, Profondo Rosso é um filme murado em torno de um cadáver. Procurar e perseguir, escavar e derrubar, para se encontrar, enfim, face a face com a morte. A verdade através de um espelho de espectros, o reflexo dos nossos desejos num abismo vermelho profundo. Profondo Rosso é uma fascinante variação (ou expansão dos temas) de Blow Up (Antonioni, 1966), filme com o qual partilha o protagonista, aqui sensivelmente no mesmo papel. Tudo será trabalhado dentro do habitual caldeirão hitchcockiano de Argento (completo com uma inesperada incursão de The Birds), mas a surpresa será mesmo o humor quase slapstick na relação entre Hemmings e Daria Nicolodi que, em contraste com o terror dos assassinatos, transporta o filme para campos mais bem humorados, quase hawksianos (com direito inclusive a uma newsroom em fervor).
Miguel Allen
Se o título de melhor giallo alguma vez feito não cair bem a todos (até porque este é um filme que se começa a desviar ligeiramente do género, em sentido estrito), menos discutível será a afirmação de que Profondo Rosso é a primeira jóia no catálogo de obras-primas de Dario Argento. O descarado gozo com que as macabras cenas de morte são concebidas – sempre acompanhadas do frenético prog rock dos Goblin e de um grafismo autoindulgente e voyeurista – cairia facilmente no mau gosto, não fosse a apetência do mestre italiano para uma mise-en-scène evocativa dos mais gélidos pesadelos, o seu prodigioso e influente trabalho de câmara (citado, por exemplo, por John Carpenter como influência maior para Halloween), capaz de nos fazer sentir observados de todos os ângulos possíveis, e uma montagem bem afiada para maximizar todos os efeitos pretendidos. Estes elementos, juntamente com um prólogo esotérico, iconografia de violência e um foco maior na ambiência do que na narrativa, são a antevisão da descolagem de Argento do território do pulp policial, rumo ao terror “puro” (e habitualmente sobrenatural) que marcaria a sua restante obra. Uma despedida que se faz em tom altamente jocoso, com diversas pistas para o crime a subverter a solenidade misteriosa do género, o humor venenoso dos diálogos entre o casal principal, ao jeito de Howard Hawks, e várias instâncias de comédia física, que lembram o cinema mudo de Chaplin e Keaton. Parte terror, parte screwball comedy, absoluto deleite sensorial.
Gil Gonçalves
Córnea. Esclera. Iris. Pupila. Sangue. Vidro. Machados. Sangue. Cortes. Bonecos terroríficos. Sangue. Um giallo de Argento, o clássico Profondo Rosso que na sua aparência alegadamente recatada consegue esconder os laivos obscuros da sua identidade: a de thriller sobrenatural, gótico e slasher, encobrindo de forma subliminar profundos planos de sociopatia e transgressão sexual. A premissa é simples e trivial mas o suspense é intenso e gradualmente sombrio. Um músico testemunha o assassinato de uma famosa médium e encontra na companhia de uma sedutora e desinibida repórter o interesse na procura pelo assassino. Nesta misteriosa demanda, repleta de intrigas e suspense, esta dupla vai contornando atentados contra as suas vidas por parte de um invisível assassino e causador da violência clássica e característica deste tipo de horror italiano. Esmagamentos, decapitações, afogamentos e queimaduras ornamentam o filme. É no uso intensivo da cor vermelha que Argento nos aproxima do macabro, neutralizando esta cinematografia sensacionalista com enfeites arquitetónicos e urbanos, equilibrando o compasso rítmico do filme, fazendo pausas através do contraste mais claro e límpido, caracterizado pela clássica pedra e as tonalidades das cenas diurnas. A cenografia da arquitetura apresenta-se como um elementos próprio do horror. Denota-se que Argento explora edifícios e a arte urbana como mecanismos do medo, evidenciando um diálogo entre o cinema e as artes visuais. O filme é estética, Argento é anti-ética.
Rita Cadima de Oliveira
Todas as componentes do giallo estão aqui, não fosse Deep Red um dos seus principais representantes, pela mão de um dos seus mestres. As cores fortes e vívidas, o mistério de assassinos e detectives, os objectos icónicos, as referências a outros cineastas (Hitchcock por exemplo), e a banda sonora alucinante e cinética que descreveria sem pudores como uma das melhores de todos os tempos. Mas o que torna Profondo Rosso um objecto tão único é a forma como equilibra o mistério com o humor e o namorico do seu par de protagonistas, por vezes transformando-se numa irresistível comédia romântica. Por outro lado, o filme de Argento oferece uma dose extra de trapalhada e tontice que encaixa no filme que nem uma luva. Um dos melhores dentro do seu género que contrapõe de forma interessante a seriedade de Suspiria.
David Bernardino
Salon Kitty (Salão Kitty – O Bordel dos Nazis) (1976), de Tinto Brass
Filme transgressivo e controverso, exemplar do chamado naziexploitation, Salão Kitty é mais um drama erótico de Tinto Brass, como outros que se fizeram na Europa nos anos 70, aqui com a particularidade de ir a um certo nervo tabu que coloca sob a lupa exploratória as perversões sexuais dos oficiais nazis na segunda guerra mundial. A fetichização deste tópico é de um gosto naturalmente questionável, mas que reflecte bem este período/movimento da história do cinema, em que a transgressão em tela era o objectivo. Ainda assim está muito longe do choque e devassa que se poderia antecipar, não se comparando a Saló ou outros no que a esse factor diz respeito. A realidade é que além do seu “conceito” existe de facto um filme que merece ser olhado. A realização de Tinto Brass está apurada, com planos de sensível composição, os seus zooms e movimentos de câmara pouco ortodoxos, principalmente nas várias cenas musicais que pontuam a narrativa deste bordel, onde os oficiais são espiados. Os jogos de espelhos, as cores fortes, as mortes violentas, dir-se-ia que a intersecção da estética do giallo, contemporâneo dos anos 70, está bem presente neste que será um dos poucos filmes exploitation com algum interesse cinematográfico além do olhar voyeur transgressivo.
David Bernardino
O Sol do Futuro (Il Sol Dell’Avvenire) (2023), de Nanni Moretti
– Su noi due, ci hai ripensato? Hai cambiatto d’idea ?
– Non Giovanni, non ho cambiatto d’idea.
Vai de muito morno a muito forte, muito subitamente. Aprile em 2023, não sem os seus graves faux pas: o circo húngaro é verdadeiramente foleiro, e, claro, Mathieu Amalric é insuportável. Pela cena das trotinetes, sob as exclamações irritantes de Amalric (não há pior do que franceses a falar italiano) e as réplicas de Moretti, numa cadência de teatralidade exagerada, eu já olhava para o relógio. E as sequências do “filme dentro do filme” lembravam-me perigosamente a versão televisiva de L’Amica Geniale (o que não é exactamente uma surpresa). Por então, as diferentes camadas de ficção, as diferentes ramificações narrativas, não me pareciam particularmente bem articuladas (veja-se a cena da piscina, ou o episódio na embaixada polaca). Mas o filme encontra-se pouco a pouco à medida que vai perdendo algum peso. A charneira sendo o longo (e tanto divertido quanto exasperante) “tiro na cabeça”, a partida anunciada de Paola relança a narrativa numa progressiva depuração, paralela ao desalento de Giovanni/Moretti, que torna tudo muito mais pungente. Um outro filme ainda, um musical imaginado, infiltra-se na montagem, Giovanni invoca a sua mãe (“morta 12 anni fa“). Brindamos a licor coreano, o circo que se desfaz, e, subitamente, a voz de Battiato parece elevar este Avvenire a um paroxismo sentimental particularmente inesperado. O sol do Futuro talvez resista afinal nos “e se” da História.
Miguel Allen
Caro Diário (1993), de Nanni Moretti
In vespa. Páginas cheias de um diário escrito pelas ruas despidas do Verão de Roma. Divagações sobre cinema, política, e Jennifer Beals. O diário íntimo enquanto retrato topográfico de uma cidade. O sol sobre “le case” de Garbatella e a praia de Ostia, onde morrera Pasolini. O primeiro episódio de Caro Diario é o Verão desocupado na metrópole, quando todos partiram para férias de mar. E será esse mar que enche o segundo capítulo do filme, Isole, com um divertido périplo pelas ilhas Eólias, tentando fugir (ou talvez não) ao frenesim da vida moderna. Um terceiro capítulo, já longe do Verão, levará esta odisseia muito pessoal a um muito hipocondríaco (mas justificado, veremos) estudo dos comportamentos da classe médica romana. Um brinde final ao espectador, na forma de um salutar e matinal copo de água (óptimo para os rins), a vida pelos seus episódios mais prosaicos. “In realtà il mio sogno è sempre stato quello di saper ballare bene.” E porque não começar ao som daquele baião de Silvana Mangano (voz de Flo Sandon’s), pela televisão, ao pequeno almoço?
Miguel Allen