A Festa do Cinema Italiano está quase a atingir a maioridade, tendo comemorado este ano a sua 17ª edição. A sua identidade já está tão vincada no panorama dos Festivais de Cinema Portugueses que é justo afirmar que é o acontecimento mais importante dedicado à cultura italiana em Portugal. Para além da sua sublime escolha cinematográfica, a Festa do Cinema Italiano oferece eventos musicais, literários, gastronómicos e artísticos, promovendo o namoro entre Itália e Portugal.
Este ano, em Lisboa, o festival realiza-se de 12 a 21 de abril, no Cinema São Jorge, no UCI El Corte Inglés, na Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, no Cinema Fernando Lopes e no recentemente reaberto Cine-Teatro Turim. Nos meses de abril, maio, junho e julho, a Festa do Cinema Italiano fará a sua extensão a várias cidades do país. A organização responsável pela Festa do Cinema Italiano é a Associação Il Sorpasso, com o apoio da Câmara Municipal de Lisboa, da Embaixada de Itália, do Instituto Italiano de Cultura de Lisboa e da Cinecittà.
Os críticos da Tribuna do Cinema tiveram a possibilidade de assistir a algumas estreias assim como a oportunidade de rever clássicos italianos. Seguem as nossas críticas:
After Work (2023), de Erik Gandini
After Work, de Erik Gandini, é um documentário que instiga a reflexão sobre o trabalho como fenómeno do século XX e XXI, analisando todas as suas vertentes de uma forma afiada e mordaz, através de uma visão raio-x e recorrendo ao uso do humor mas também do sarcasmo. After Work teria tudo para se ter tornado num filme politizado, mas escolheu ser um filme imparcial, que apresenta diversos lados, explorando as vertentes sociais, humanas, económicas e financeiras do impacto do trabalho no mundo, quer do lado do trabalhador, quer do lado do empregador. Ao longo da narrativa, este documentário consegue manter um fio condutor fluido, íntegro, informativo e bem construído sobre os prós e os contras do fim da sociedade laboral das nove às cinco. Para tal, Gandini visita os parâmetros físicos e sociológicos do conceito laboral e as respectivas constituições dos países que visita, mais concretamente da Coreia, dos Estados Unidos, do Kuwait e de Itália. O trabalho, na sua acepção laboral e profissional, o chamado ganha-pão, é tão crucial para a nossa identidade e realização pessoal que passou a ser inerente àquilo a que chamamos rotina. Em muitos países os seres humanos já não conseguem distinguir o eu social do eu trabalhador. Esta inexistência de distanciamento entre a pessoa e a sua profissão tem levado algumas empresas a desligar a electricidade a partir de um determinado horário de forma a que os trabalhadores sejam obrigados a deixar as máquinas e voltar para casa. O lado extremista da conexão com o trabalho mas também a inserção da Inteligência Artificial e dos equipamentos electrónicos como motivadores da nossa anulação e inutilidade na missão laboral é outro dos pontos fortes deste filme. Em síntese, Gandini faz questão de nos recordar que o próprio conceito de trabalho está, em muitos aspectos, a desintegrar-se. Dada a crescente digitalização e inserção robótica no quotidiano empresarial e industrial, perfaz-se um cenário em que a maquinaria está prestes a assumir a maioria dos empregos e a colocar-nos no desemprego. E a partir daqui? De onde irá provir a nossa subsistência? Saberemos usar o dia de uma forma apenas lúdica? Utilizá-lo-emos para apurar a nossa sabedoria ou seremos apenas seres confusos sem saber o que fazer?
Rita Cadima de Oliveira
Um olhar perspicaz, e acutilante, sobre como o trabalho tem impactado a chamada sociedade desenvolvida ao longo de gerações e ainda o faz até hoje, e o que aconteceria se o conceito de trabalho deixasse de existir. Dos Estados Unidos à Coreia do Sul, passando por Itália ou pelo Kuwait, After Work analisa a relação de diferentes países, sociedades, gerações e classes sociais com trabalho de forma objetiva, sem cair na armadilha preguiçosa de se focar em questões políticas. After Work antes prefere focar-se nos aspectos psicológicos da relação humana com o trabalho. Ao observar o trabalhador sul coreano médio vemos como a existência de alguém se pode resumir ao seu trabalho. Sem ele nada mais existe. Esse sentido de missão, que tem paralelo nos workaholics norte-americanos, encontra o seu oposto nos NEET (sigla inglesa que significa algo como sem trabalho, sem estudo e sem treino) em Itália que compõe um terço das novas gerações. Enquanto isso, no Kuwait, existe dinheiro sem realidade real de trabalho. O ponto mais interessante de After Work será, no entanto, a dualidade entre as classes sociais: enquanto as mais baixas procuram trabalho mas não gostam dele, as mais abastadas desejam manter esse tempo ocupado com “trabalhos” voluntários. Usando a malfadada expressão tão em voga hoje em dia este parece ser um documentário “necessário” e mais relevante do que nunca num momento em que a inteligência artificial se aproxima no horizonte, pondo em causa o conceito de trabalho como centro de vida que hoje conhecemos.
David Bernardino
Disco Boy (2023), de Giacomo Abbruzzese
Apesar da fórmula alegórica pós-colonial – tema actual, pertinente e algo recorrente sobre os refugiados que chegam à Europa (Europa, de Haider Rashid) – Giacomo Abbruzzese consegue dramatizar de uma forma engenhosa e cativante a árdua viagem que o bielorrusso Alexei e o seu parceiro Mikhail engendram para chegar a França. A tragicidade da fuga resulta na morte de Mikhail, que deixa Alex numa corrida contra a intempérie, não a temporal mas a do medo e da incerteza. Inesperadamente, Alex acaba por ser salvo pela sua própria força física, juntando-se à Legião Estrangeira em França. O aparente facilitismo desta situação motiva o herói, permitindo-lhe agarrar-se a uma vã e confusa esperança de uma nova identidade mas, acima de tudo, de uma cidadania francesa. Giacomo Abbruzzese consegue capturar em Franz Rogowski a culpa mas também a subjectividade, numa personagem com tão poucas falas, mas que transmite algo tão esmagador e sublime. A este drama soma-se outro, o de Jomo, um jovem nigeriano, que trava uma luta activista tão pacifista como bélica pela sobrevivência e durabilidade do seu povo, no Delta do Níger, estando igualmente disposto a morrer para defender os seus ideais. Estes dois jovens, esmagados pela dor do sacrifício e de uma luta algo vã, encontrar-se-ão, contra todas as probabilidades, deixando os seus destinos fundir-se em cenários algo míticos e fantasiosos que Abbruzzese utiliza como metáfora para a continuidade do atravessar de fronteiras e corpos, isto é, da transposição da vida e da morte. Disco Boy apresenta-se como um filme sobre a dança da morte, de vidas fisicamente tão distantes como aproximadas e unidas pelas circunstâncias da perda, da exploração e da opressão, culminando numa cena final irrepreensível, um movimento de dança corporal esteticamente ladeado por néones e música techno, após a ingestão de alguns copos de vinho bordeaux.
Rita Cadima de Oliveira
Milano – The Inside Story of Italian Fashion (2023), de John Maggio
Este documentário sobre ícones conceptuais que passou na Festa do Cinema Italiano 2024, situa-se de forma identitária e geográfica na clássica e conservadora capital da moda italiana, Milão, e cujo realizador, John Maggio, narra de uma forma sempre envolvente, o surgimento da moda italiana e da sua ascensão como fenómeno global, rivalizando com a sua adversária, Paris. Começando pelos anos 70, neste filme somos apresentados a uma aguçada mas cativante rivalidade entre os grandes mestres de obras estéticas italianas: Giorgio Armani e Gianni Versace; analisamos o quase certificado de óbito mas simultâneo e repentino renascimento da dramática marca Gucci, sob a liderança ousada de Tom Ford, nos anos 90; atravessamos a fase ugly chic da revolucionária Miuccia Prada e as quimeras sicilianas dos utópicos Domenico Dolce e Stefano Gabbana. É neste atelier devidamente apetrechado de criatividade que John Maggio explora os cenários de guerra compostos por tecidos, botões, bainhas, acetinados, cortes e recortes. Os testemunhos no filme são variados, e incluem as actrizes Frances McDormand, Sharon Stone, Helen Mirren, Lauren Hutton e o actor Samuel L. Jackson mas também arquivos fotográficas das divas do cinema. Milano The Inside Story of Italian Fashion é certamente um filme sobre cultura pop elaborado num nível bastante ritmado e colorido, que revisita tanto a ópera italiana como as praias coloridas da Sicília, dividindo, por vezes, a moda italiana entre o sul e norte, sendo a do sul mais leve, solto e policromático e o norte mais conservador, tradicionalista e monocromático. Dando voz ao experiente Giorgio Armani e recordando o saudoso Gianni Versace e outros criadores cujas trajectórias conquistaram o mercado da moda americana, em Hollywood, John Maggio mostra-nos a relação causa-efeito da moda com o cinema, moda italiana esta que ainda hoje domina a passadeira vermelha na maior parte das cerimónias cinematográficas do mundo.
Rita Cadima de Oliveira
Io Capitano (2023), de Matteo Garrone
Inserido na secção “Panorama Especial” da Festa do Cinema Italiano 2024, encontramos Io capitano. Com estreia mundial na última edição do Festival de Veneza, onde foi galardoado com o Leão de Prata para Melhor Realização, o novo filme de Matteo Garrone retrata dois adolescentes africanos que sonham com a Europa. Para Seydou e Moussa, o velho continente não tem nada de velho, mas sim a promessa de um futuro melhor. Estes jovens, otimistas e inocentes, embarcam então numa odisseia que, não tarda, se mostrará repleta de documentos forjados, extorsão, longas travessias no deserto, prisão e escravidão. O ator senegalês Seydou Sarr, neste que é o seu primeiro papel em cinema, confere um humanismo e sinceridade comoventes. Com o seu foco na atual onda de migração africana para a Europa, Io capitano é um filme importante, mas agoniante. As intenções de Garrone são boas, pelo que se lamenta que por vezes o realizador se aventure em torture porn.
Pedro Barriga
Palombella Rossa (1989), de Nanni Moretti
E, de repente, uma ideologia desapareceu… Uma forma de encarar a sociedade, de perceber o mundo, eclipsou-se. Sem deixar herdeiros, exceptuando no papel. “Palombella Rossa” oferece um jogo de pólo aquático inquinado para um lado, algo com o qual o Partido Comunista Italiano (PCI), bom entendedor das regras, sempre conviveu. No entanto, o jogo permite entender que há mais que a vitória ou a derrota. Não é isso que importa, nunca importou. No final, tinha-se a convicção numa ideia. Orientação em vez de conforto, convicção em vez da escolha “indecisa”. As táticas, os dribles, ou a marcação de penáltis lêem-se como manifestações políticas, apesar de a água da piscina começar a turvar as vistas.
Essa reflexão crítica, a famosa autocrítica dos comunistas, acabará a nível pessoal, por mais força que componha o coletivo, sempre por desaguar no leito das memórias pessoais, no período de formação, na maneira como a nossa mãe nos penteava o cabelo. Talvez, tenha sido isso que faltou. Entender a forma como a família nos permitia entender a linguagem (“Le parolo sono importante!”, “As palavras são importantes”!), a fraternidade (“Siamo diversi, ma uguali agli altri”!!, “Somos diferentes, mas todos iguais”!). Pesava mais isso, ter memória, do que correr obstinado como Jivago atrás de um conceito que se tornou miragem.
Pena que os jovens turcos do PCI estivessem a prestar mais atenção em como ganhar o jogo do que, conscientemente, perceber o que falhou e como resgatar a chama da convicção, algo que desapareceu do panorama político europeu. Em vez de verem Moretti, os jovens turcos do PCI embevecidos com estratégia política (Third Way), mudaram o nome, mudaram a identidade, de metamorfose em metamorfose até ao ponto de partirem o espelho e não mais se reconhecerem. Consolidava-se a amnésia que o filme tão bem aponta, que, de resto, contaminou os restantes partidos principais italianos. Logo, o filme que tinha um contexto específico de 1989, cedo se tornou universal neste nosso paradigma pós-ideológico. Enfim, ficam as “memórias das tardes de Maio”, se ainda formos capazes de recordar, correndo como o nobre Jivago.
Eduardo Magalhães
Una Vita Difficile (1961), Dino Risi
Dino Risi talvez não seja um dos nomes mais falados quando pensamos em grandes mestres do cinema italiano. Apesar do relativo sucesso da denominada commedia all’italiana, também não encontramos, nesse género específico, muitos filmes canonizados enquanto grandes marcos da história do cinema. Mas Risi, com Una Vita Difficile, prova-nos que, como se já não soubéssemos, os cânones servem precisamente para serem constantemente refutados. Inserido na Secção Retrospectiva O Outro 25 de Abril, que se refere ao ano de 1945, quando as forças aliadas protagonizaram a libertação de Itália das tropas nazis, Una Vita Difficile retrata esse pedaço da história italiana, valendo-se do burlesco para melhor atingir os seus fins. Mais do que os nazis propriamente ditos, Risi aponta a sátira fundamentalmente para uma determinada burguesia bacoca, submetendo ao questionamento permanente a ética e integridade do seu protagonista. O cineasta italiano alcança um equilíbrio perfeito entre a tragédia (social e pessoal) e a comédia, fazendo-nos refletir no meio de cada gargalhada.
Bruno Victorino