Oito anos depois de Blackhat, voltamos a ter um filme de Michael Mann nas salas de cinema. Um hiato tão grande quanto a expectativa em torno de um projeto que já andava a marinar desde os anos 90 do século passado. Isto porque, conhecendo a inclinação pessoal do realizador para a vertigem mecanizada dos automóveis – sempre traduzida em virtuosas sequências de perseguição – e para o retrato de uma certa forma romantizada (e destrutiva) de masculinidade – manifestada em taciturnos e obsessivos profissionais -, antevíamos encontrar, aqui, o terreno perfeito para a sua plasticidade formal. Restava saber o que faria Mann de uma narrativa biográfica – género tipicamente rígido, onde é fácil cair no conforto de uma estrutura padronizada -, especialmente num ano tão saturado de obras dedicadas ao mergulho nas personalidades de Grandes Homens da História (Oppenheimer, Maestro, Napoleon).
Dentro desse quadro, é precisamente na estrutura que encontramos os primeiros aspetos interessantes: uma progressão narrativa assente no diálogo entre o mundo interior do protagonista e o universo que o rodeia – para cuja construção contribuem a proeza técnica e o poder das imagens; a morte enquanto conceito agregador não só das relações entre as personagens, mas também dos diferentes temas do filme; uma estrita economia espaciotemporal – com a ação a decorrer quase exclusivamente no ano de 1957, numa Modena microcósmica e mais conceptual do que material. Ao centro, o nome Ferrari, que tudo absorve, e em torno do qual tudo orbita.
Após um vislumbre de passado, encontramos Enzo Ferrari in media res, quando o seu negócio já está plenamente estabelecido e o seu mito bem consolidado na esfera pública. Ele é o homem que se confunde com a Marca. A persona perfeitamente calibrada para as câmaras e microfones da imprensa. O astro ao centro de um universo hermético, que tudo liga e tudo dilui. Trabalho, religião e media existem em Modena (o seu reino idealizado) exclusivamente na medida da produção, idolatria e difusão da cultura Ferrari e dos seus ícones: os carros. Uma boa ilustração dessa simbiose ocorre na cena da Missa dos Trabalhadores, em que o padre, talvez mais inspirado pelo Manifesto Futurista do que pela Bíblia, faz um sermão sobre “a natureza do metal” e de como este “pode ser moldado e transformado, pela arte [dos trabalhadores], num motor com o poder de nos tornar mais velozes no mundo”, rematando que se Jesus Cristo tivesse nascido no século XX talvez tivesse sido um “artesão do metal”, em vez de carpinteiro. Esta calculada e permanente liturgia social acaba por sangrar para a esfera privada, onde a luz incandescente da Marca ofusca o lado humano e obscurece todas as relações de Enzo: um casamento de fachada reduzido a parceria comercial; uma não tão secreta segunda família, onde o nome Ferrari é um tabu legal e emocional (funcionando como vínculo filial apenas no plano mitológico); o relacionamento com a mãe limitado a mínimas preocupações sucessórias; uma proximidade gélida, resultadista e militarmente negligente para com a equipa de pilotos.
Mas há outras forças em jogo no âmbito pessoal e familiar. Não são a sociopatia ou a egomania que ossificam o coração deste marido ausente e industrial implacável, mas a dor e a aura de morte que em torno dele pairam. Sabemos, pelo que nos é dito, mas também mostrado, que Enzo Ferrari carrega o peso da morte de um filho e de dois amigos – estes, dois pilotos que perderam a vida “no seu metal”. Sentimo-lo nos poucos momentos de vulnerabilidade que nos são dados a ver a nós, espectadores, mas nunca ao resto do mundo – um monólogo no jazigo, memórias dolorosas na ópera, o peso de não ter conseguido salvar o filho da doença. A solução, que abre caminho à tragédia do herói, e dos que o rodeiam, é articulada pelo próprio: “Enzo, build a wall. Or else, go do something else.” Desligar os sentimentos para continuar a voar perto do sol, perseguir o sonho a todo o custo para sobrevoar os cacos deixados pela dor da perda.
O caos pessoal é ensaiado num melodrama relativamente convencional, mas convincente – onde Penélope Cruz e a sua Laura Ferrari brilham mais alto, na figura de uma complexa, carismática e astuta mulher, que foge aos clichés de donzela submissa ou de harpia votada a destruir o marido para o castigar – mas é nos momentos de maior sossego que as personagens realmente ganham profundidade e substância. A visita alternada de Enzo (na única vez que fala abertamente sobre tudo o que sente) e Laura (que se limita a contemplar e chorar, num sorriso maternal) à campa do filho é um bom exemplo, mas há um outro que é magistral – a sequência da ópera. Uma performance do dueto “Parigi, o cara”, de La Traviata, entrecortada pelas memórias de Enzo, Laura, Lina (a amante de Enzo) e Adalgisa (sua mãe), que cruza a alegria do passado com a tragédia do presente. Recordações dos momentos em que aquelas pessoas partidas se sentiram inteiras, alternadas pelos rostos dos atores em chiaroscuro, quais retratos de Caravaggio. Uma perfeita simbiose de sensações a emular o poder evocativo da música, a sua possibilidade de fuga e conjuração de imagens, tão humana como estas personagens agora nos surgem.
E por falar no fulgor das imagens, que dizer das sequências de corrida? Dá vontade de atirar, entre golfadas de ar, que são tudo o que esperávamos de Michael Mann e um pouco mais, referindo o deslumbre visual, cinético e escapista da forma. Mas tentemos fazer-lhes mais justiça. O seu valor começa nas sensações de risco, vertigem e terror que suscitam. Seja nos close ups dos capacetes dos pilotos, ou nos planos gerais em que vemos pontos vermelhos no meio da inóspita natureza, nunca sentimos qualquer segurança naquelas máquinas barulhentas e supersónicas. Mesmo que o filme não referisse todos os pilotos que morreram sob o signo de Ferrari, e que não tivéssemos a constante comparação entre a equipa Ferrari e um pelotão de soldados a caminho da guerra (com direito a cartas de despedida às mulheres e tudo), a trindade metal, velocidade e som é, talvez, a mais concreta manifestação da proximidade da morte que ensombra todo o filme. A um tempo a noção visceral de perigo e a cola temática entre o caráter defensivamente amoral de Enzo e a pulsão de morte (embebida na cultura de idolatria e vitória a qualquer custo) que forjou e instigou nos seus corredores. Uma pulsão que terá o seu aristotélico clímax na tragédia da Mille Miglia…
Conhecendo-se ou não o acontecimento histórico, o momento do infame acidente será duplamente chocante. Pelo grotesco cenário, claro, mas também pela forma como transforma narrativamente o contigente em necessário, justificando o propósito trágico deste filme. Retroativamente, sentimos que este ponto de não retorno é não só verosímil, como a consequência lógica para a corrupção moral de Enzo Ferrari, que já destruíra as suas relações pessoais e deixara em suspenso as vidas dos seus familiares; que quase liquidara o seu negócio, devido à obsessão com o mundo das corridas; que criara e incentivara uma cultura de desrespeito pela vida, desde que a vitória fosse alcançável. Por outras palavras, coloca as falhas de caráter do protagonista como causa direta de um Mal supremo, que lhe suscitará primeiro o temor, depois a compaixão que até aqui lhe faltaram. É só da morte consumada que a vida pode ressurgir, e numa moderna Modena onde tudo gira à volta da produção de velozes máquinas assassinas, não é de penas incandescentes, mas de rubro metal amassado e carbonizado que a moral renasce das cinzas.
O abalo da mortandade faz Enzo e Laura tombar em si próprios, o cansaço de anos de raiva e dor encontra-os, por fim, abrindo espaço à negociação e conciliação. Laura desvincula-se do negócio, libertando-se da ligação emocional com a qual a dor não terminaria. Enzo aproxima-se finalmente do seu filho ilegítimo como um verdadeiro pai, dando-lhe a conhecer o irmão morto – ou seja, partilhando a sua vulnerabilidade, a sua fonte de dor, a sua vida. Mais tarde, sabemos, reconhece-o publicamente e nomeia-o sucessor de um negócio que ainda hoje existe e prospera. A curta, mas possível redenção operada.
Ferrari acerta onde todos os congéneres de 2023 deixaram a desejar. Consegue um equilíbrio elegante entre a estética e a dramaturgia, desenvolvendo as personagens de forma credível, por oposição ao virtuosismo opaco e cínico de Maestro; cria, em todas as deslumbrantes sequências de corrida, o sentimento de verdadeiro e mortífero pavor que nunca chegamos a sentir na fastidiosa e processual possibilidade de fim do mundo de Oppenheimer; e imprime nuance, subtileza e complexidade ao ensaio crítico de um caráter controverso (nos antípodas da boçalidade caricatural de Napoleon). No mais clássico e, porventura, narrativamente linear dos seus filmes, até à data, Michael Mann reforça o seu lugar entre os grandes mestres do cinema americano contemporâneo. Esperemos que, contrariamente aos pilotos suicidas da equipa Ferrari, continue aí para as curvas por muitos e bons anos.