Estou Aqui, de Zsófi Paczolay e Dorian Rivière : Este Espaço Não É Um Hotel

EquipaAbril 14, 2025

Produzido e distribuído pela Terratreme, Estou Aqui estreou na passada Quinta-Feira em Portugal. Os críticos André Filipe Antunes e Rafael Fonseca estiveram presentes numa das sessões especiais, com o produtor, uma das protagonistas e os dois realizadores, com quem foi ainda possível ter uma conversa sobre a feitura do filme. Aqui seguem as suas críticas.

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Produto de um confinamento que já vai longe na memória, Estou Aqui, filme que esteve na última edição do DocLisboa, onde arrecadou o Prémio Escola para Melhor Filme da Competição Portuguesa, chega em 2025 ao circuito comercial como uma espécie de “cápsula temporal” de um local e de um espaço. Co-realizado por Zsófi Paczolay e Dorian Rivière, a proposta não se revela de imediato: os primeiros movimentos do documentário remetem-nos para um registo observacional, claramente situado na escola de Frederick Wiseman ou de O Professor Bachmann e a Sua Turma (2021), em que a câmara não intervém na ação retratada – no caso, a do dia-a-dia no Pavilhão Municipal do Casal Vistoso onde, entre 2020 e 2021, funcionou um pioneiro projeto de acolhimento de pessoas em situação de sem-abrigo durante a pandemia.

O interior do Pavilhão Municipal do Casal Vistoso

À medida que nos aprofundamos na obra, contudo, apercebemo-nos da ilusão, que se vai revelando na proximidade dos cineastas ao objeto do filme (que começou quando Paczolay e Rivière trabalharam como voluntários no projeto), e num ethos que depressa assume um cunho de intervenção cívica, não tão distante assim do cinema social de Ken Loach. Estou Aqui é um filme de causas (no bom sentido), que argumenta a favor de uma sociedade mais humana e inclusiva dos que são invisíveis, aqui concretizada na iniciativa do Casal Vistoso, que durante mais de um ano acolheu centenas de pessoas.

A realidade do centro naqueles meses em que o mundo se fechara —não estaria já fechado para aqueles utentes? — é retratada a partir de três pontos de vista: dois deles, Tiago e Plácido, chegam ao centro em situação limite, devastados pelos vícios e problemas de saúde e para quem aquele lugar representa uma última oportunidade de reinserção na sociedade; e o de Maria Teresa Bispo (“doutora Teresa”, como todos se parecem referir a ela), coordenadora que gere o dia-a-dia daquele projeto e as complexidades de dezenas de utentes à beira do colapso. Fá-lo com pulso firme, mas também com um nível de empatia e compaixão que são genuinamente raros. No ponto alto do filme, quando um voluntário lhe comunica ter apanhado um utente a consumir numa das casas-de-banho, admoesta o primeiro e declara a sua missão. “Estas pessoas estão no limite (…) é preciso compreendê-las”.

Uma das assembleias de reunião dos moradores com a equipa

O projeto não resistiu ao reabrir do mundo e à falta de financiamento e interesse em mantê-lo para lá do período Covid. A ideia de uma “utopia cercada” salta à vista na matéria do próprio filme, na paisagem do centro ladeado por prédios altíssimos, habitados por moradores hostis a acolher aquela gente (na breve conversa que se seguiu à sessão, Zsófi Paczolay contou ter-lhe sido arremessado um ovo de uma das janelas); a arquitetura oprime, sufoca, tira espaço. É um retrato de Lisboa, da contemporaneidade, quiçá da indiferença coletiva.

A realização da dupla de cineastas é segura, ainda que falte talvez um rasgo formal que distinga verdadeiramente o filme (trata-se, afinal, de um projeto que nasceu em contexto escolar, evoluiu depois para curta-metragem e, finalmente, para uma longa com o apoio da Terratreme). Talvez mais relevante, acaba por não explorar algumas das questões que levanta, acerca da participação e real objetividade do registo documental. Num dos momentos mais interessantes, já perto do final, Plácido, a caminho do hospital para receber um diagnóstico potencialmente grave, liga para o filho e, em francês, explica-lhe que não tem saldo no telemóvel, e para este lhe ligar quando quiser. Desliga e passa o telefone a Dorian Rivière, atrás da câmara. “Ao menos tenho aqui o Dorian, tenho um amigo”, diz. Talvez isso seja, por si só, suficiente.

André Filipe Antunes

 

Plácido faz a barba com Stefan

O site da ENIPSSA – Estratégia Nacional para a Integração de Pessoa Em Situação Sem Abrigo – diz-nos: “Os Núcleos de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo deverão ser criados, sempre que a dimensão do fenómeno das pessoas em situação de sem-abrigo o justifique”. Em 2020, foi algo assim que aconteceu no Pavilhão Desportivo Casal Vistoso, no Areeiro, sob a coordenação de Maria Teresa Bispo. As circunstâncias provocadas pelas quarentenas pandémicas dificultavam de forma emergente a situação das pessoas sem-abrigo. Com tudo fechado e as ruas vazias, havia sítios em que não se podia entrar, comida que não chegava e esmola que já não existia.

Criou-se neste complexo desportivo um modelo inédito de ajuda a pessoas em situação de sem-abrigo: aproveitando a existência do vírus Covid-19, existia uma triagem de saúde geral, que permitia depois dar um encaminhamento adequado no respeitante à saúde, que era apenas uma das vertentes, além da social, da psiquiátrica, do acesso à comida e higiene, e da criação de uma plataforma de auxílio para o momento depois da sua saída, em modelo housing first, com a garantia de acesso imediato a uma habitação sem pré-requisitos. No Pavilhão, todos eram aceites: não havia critérios para entrar.

Maria Teresa Bispo esclarece Tiago sobre os próximos passos depois de sair do Pavilhão

A comunidade que surge sob a orientação de Teresa Bispo engloba uma rede vasta de parceiros sociais e a ajuda de um grande número de voluntários. Zsófi Paczolay e Dorian Rivière, os realizadores de “Estou Aqui”, estavam em Lisboa quando eclodiu a primeira quarentena, e juntaram-se à rede a operar no Casal Vistoso. Passou bastante tempo até que pegassem numa câmara, contam-me, numa pequena conversa ao pequeno-almoço que tivemos no final do seu curto périplo por Portugal, agora para a estreia comercial do filme.

Os moradores do Casal Vistoso sabiam que os dois eram realizadores – Zsófi estava inclusive a meio do mestrado “DocNomads”, do qual faz parte uma passagem pela Universidade Lusófona – e as pessoas metiam-se com eles com aquelas coisas que se diz normalmente à malta do cinema: vocês deviam fazer um filme com estas coisas que se passam aqui. Foi um repto seguido. Depois de muitos meses de rodagem e montagem (o total filmado estimava as quarenta horas, diz-me Dorian), o filme chegou à sua forma final.

Tiago posa na frente do sinal do Pavilhão Desportivo

“Estou Aqui” gravita suavemente em volta de três pessoas: Tiago, Plácido, e a própria Maria Teresa Bispo – apesar de haver um mar de outras figuras: todos os participantes na comunidade. Estas três não são representantes de um “arco narrativo”. Tiago, por exemplo, sai do Pavilhão para uma casa própria, vai o filme a meio, para retornar em presenças elípticas ao longo do final. Aparece muito mais frágil e desencorajado do que quando saiu da comunidade; a autonomia, e a solidão, estão a deitá-lo abaixo. Plácido sofre de dores crónicas, de causa incerta, e depois de uma ida ao médico, ainda filmada, sabemos no final que faleceu pouco depois do fim das rodagens. Não há aqui desenlaces, pelo menos dos simples. São estes três os escolhidos para melhor desenhar este retrato, que é um retrato destas pessoas todas (Tiago, com confiança e disponibilidade lúdica para com os realizadores, aceita encenar uma chegada ao pavilhão como se de um membro novo se tratasse, para fazer a cena de introdução do filme), e um retrato deste projecto efémero – utópico – desconhecido certamente para muita gente e que existiu brilhantemente neste tempo e neste espaço. 

A filosofia que o edificou é esmagadoramente lúcida: a certo ponto, na cena que é talvez a mais impressionante do filme (também concorda o André) um voluntário queixa-se a Maria Teresa que um dos moradores tem sido repetidamente apanhado a consumir, na casa-de-banho, na camarata. “Todos eles consomem, todos eles têm armas”, responde-lhe a coordenadora, “e nós para essas coisas temos algumas regras”. No entanto, a existência dessas regras não se pode traduzir num ambiente de vigilância, de revista ou de policiamento. As regras existem, e a admoestação também, mas as coisas não podem chegar ao ponto de uma expulsão, por exemplo, porque expulsar alguém é pô-la de volta na rua sem resposta, e o programa não passaria de uma porta giratória. É uma explicação tremenda, de uma grande força e exortação. 

Na sessão no Cinema Fernando Lopes a que assistimos, Maria Teresa reforça connosco: estas pessoas podem ser viciadas em substâncias, e podem ter problemas de saúde mental, é certo: isso também pode acontecer “lá fora”, às outras pessoas. Aqui, o único denominador comum a todas é a situação de pobreza extrema; a máxima prioridade é dar-lhes resposta.

Plácido, com Dorian a filmar, passa a rotunda do Areeiro

Os moradores do Casal Vistoso confiaram em Dorian e Zsófi: os dois realizadores contam-me que filmavam tanto que a certa altura vê-los passar com uma câmara seria como ver outro voluntário passar com um carrinho de refeições: isto ajuda a explicar o ambiente de conforto com a câmara que vive no filme, e de que vive o filme, mas não se trata apenas de um conforto práctico. No fim, quando Plácido passa para a língua francesa, mesmo depois de desligar o telefone, falando só com Dorian no carro, a caminho do hospital, por efeito da sua dicção mais clara nesta língua do que na portuguesa, é como se tivesse voltado a uma plena “capacidade retórica”, algo que Maria Teresa aponta que há muitas pessoas em situação sem-abrigo que vêem erodida.

Num mundo onde o profundo desamparo existe, o auxílio directo ao outro é a mais ética das acções. Neste monumento de presença – como nos mostra o poster – neste campo de jogos que ficou vazio, Zsófi e Dorian sublimam ainda mais o gesto comunitário – permitindo a todos dizer que estiveram ali.

Rafael Fonseca