Especial Outsiders – Ciclo de Cinema Independente Americano 2025

EquipaMarço 17, 2025

A quarta edição do Outsiders – Ciclo de Cinema Independente Americano, no Cinema São Jorge, em Lisboa, apresentou uma subida considerável no número dos espectadores. Uma comunicação forte, uma programação de excelência e uma identidade única conseguiram cimentar o ciclo organizado pela FLAD – Federação Luso-Americana num dos grandes momentos do calendário anual de cinema em Portugal. Exibindo alguns dos melhores exemplares recentes do cinema independente americano, a Tribuna testemunhou in loco outras realidades raramente capturadas pelo cinema de Hollywood, tendo ficado demonstrado que, por vezes, a linha entre o sucesso de bilheteira e o desconhecimento está apenas no marketing e na distribuição. O Outsiders contou com a presença de Paul Harrill, realizador de Something, Anything e de Light From Light, que de forma carismática deu uma masterclass e respondeu a dois Q&As no final da exibição dos seus filmes. A sessão de abertura ficou a cargo de Thelma, protagonizado por June Squibb, um excelente retrato da terceira idade em jeito de comédia, tendo o encerramento trazido à sala Manoel de Oliveira o filme Ghostlight, um dos melhores exemplares do cinema independente americano em 2024. Para 2026 já está confirmada a 5ª Edição do Outsiders, e a Tribuna do Cinema lá estará para acompanhar, com toda a certeza!

 

*

 

Thelma (2024) Josh Margolin

Assistir a Thelma é como viajar no tempo para um certo cinema do início do século XXI, em que o slapstick e a fusão entre thriller e comédia eram prato do dia. Josh Margolin vai buscar June Squibb, 93 anos, e Richard Roundtree (o Shaft, entretanto falecido em 2023), 82, para protagonizar esta aventura em que Squibb é vítima de uma burla telefónica procurando recuperar o seu dinheiro. O grande mérito do filme é a forma como olha para a terceira idade, neste caso já avançada. É certo que Thelma se trata de uma comédia (e Fred Hechinger, o neto, é delicioso), mas este é um daqueles raros filmes em que a malfadada “mensagem” tem algo de interessante para dizer. A mortalidade em geral, mas em particular a dos actores de cinema, condenados a papéis secundários de avozinho que tantas vezes condenam finais de carreira precoce (veja-se Gene Hackman), aqui numa aventura épica repleta de simbologia geriátrica. Por outro lado é curiosa a abordagem à família da protagonista: classe média alta abastada de Los Angeles em contracorrente com o que hoje em dia é preferencialmente filmado, um neto que não estuda e não trabalha, mas que ama e cuida da avó, os seus pais controladores e obstinados, as casas, os caríssimos lares de idosos. Tudo isso é tratado com a linguagem despretensiosa que o tema merece, perfilando um retrato hoje em dia cada vez mais raro, trazendo até para o pote uma certa visão sobre a perda de “masculinidade contemporânea”. Não há como escapar: Thelma é um filme manifestamente refrescante, por vezes hilariante, de belíssimo efeito e de baixas consequências à superfície, mas que por baixo escondem tantas camadas. Por outro lado, não é muito mais do que a sentida homenagem do realizador à sua avó. E qual é o mal?

David Bernardino

 

Quando ser cheesy não tem mal nenhum, muito menos outsider. Thelma é o epítome da leveza de quem encara o envelhecimento como uma benção, num mundo onde a faixa etária sénior se solidifica cada vez mais pela irreverência e pelo desfrutar do tempo que resta. Assim, e em homenagem à sua avó, o realizador Josh Margolin mistura sátira com suspense, thriller com comédia e vingança com espalhafato. Thelma é sobretudo um filme para quem se disponibiliza a perder a compostura, a seriedade e a obrigação das aparências de adultos, aniquilando fretes e desabrigando-se da maturidade que a vida vai impondo. Thelma não é bem um regressar à infância, é fazer em velho o que não se fez em novo. É também um filme que sabe rir da vida, mas sobretudo da morte. Assumindo desde o início que apela à emoção, o despretensiosismo de Thelma culmina na veterana June Squibb a fazer dela mesma, num desenrasque eloquente e pungência genuína. A razão de Thelma existir remete para a vida real da avó de Margolin quando se decide vingar de um esquema fraudulento que a vitima em 10.000 dólares. O technothriller está instalado e num clima de retaliação, é no triciclo de um amigo que vive num lar que Thelma se apoia e iniciam juntos uma jornada de redescoberta. De roadmovie a retiredmovie vão estas duas personagens que lutam contra o descalabro físico da idade e os seus sentimentos de obsolescência. A sensação de nos tornarmos arcaicos de mente em corpo vetusto é tão pungente porque é honesta e credível no contexto do filme, mas também porque o elenco mais velho provavelmente soube expressar tão veridicamente esses sentimentos. Thelma é um filme cujo desejo inato é tornar possível a Missão que parece impossível, entrando Thelma em contacto com o seu Tom Cruise interior. Ao meu lado estavam sentados homens e mulheres que não conseguiam parar de rir e acredito que essa é e deve ser a única forma de encarar este filme. Apesar da sua pureza e ingenuidade, o truque dos “velhinhos fofos” é reaproveitado para que se abordem questões de saúde mental, da demência à depressão, dos transtornos à solidão. E nem nos lamentamos pelo tema principal da aceitação da morte nunca ser suficientemente aprofundado, não perturbando mas também nunca evitando a suavidade dos risos que o envelhecer permite e a forma como a idade nos ensina a relativizar os esquemas e as fraudes a que somos constantemente sujeitos, quer sejam monetárias ou sentimentais.

Rita Cadima de Oliveira

 

Thelma é acima de tudo o show de June Squibb, atriz que, do alto dos seus 95 anos, é verdadeiramente um tesouro nacional. É uma raridade ver uma atriz desta idade participar numa longa-metragem, ainda para mais como protagonista. Neste filme, uma comédia com o seu quê de ação, a titular Thelma é vítima de uma burla telefónica. A sua teimosia leva-a a procurar os vigaristas, com a ajuda do amigo Ben (o original John Shaft, Richard Roundtree, no seu último papel). Arranjam um bólide, i.e. uma scooter elétrica para mobilidade reduzida, e seguem estrada. Vem-nos à mente o obstinado Richard Farnsworth e o seu cortador de relva em The Straight Story, do recém-partido David Lynch. Ao longo de Thelma, as gargalhadas são muitas, desde as piadas recorrentes sobre Tom Cruise às peripécias divertidas que a nossa heroína enfrenta – se bem que sempre tão comedidas que por vezes apetecia que a trama envolvesse um maior nível de perigo. Josh Margolin percorre uma linha ténue entre o brincalhão e o maldoso, com alguns momentos de humor às custas dos vários idosos que populam o filme. Enfim, um filme simpático com uma June Squibb fantástica.

Pedro Barriga

 

Ingrid Goes West (2017) de Matt Spicer

Seria fácil fazer um filme constrangedor e embaraçoso sobre a obsessão millenial com redes sociais, mas felizmente Ingrid Goes West não se afunda nesse pântano. É um espelho tragicómico da era digital, sim, onde a vida se constrói entre hashtags e ilusões de perfeição; mas é conhecedor do que critica, inteligente quanto ao que ridiculariza, e relativamente empático com quem retrata. Ingrid, moldada por uma Aubrey Plaza em pico de forma, não é apenas uma stalker: é o produto de um mundo onde a identidade se mede em likes e seguidores, onde a validação instantânea é confundida com amor e onde a solidão se esconde sob filtros.

O filme é aguçado na forma como explora o papel das redes sociais na vida das jovens mulheres, mostrando-as como ferramentas de autoexpressão, construção de intimidade e reforço de laços, e ao mesmo tempo como plataformas viciantes, ilusórias e corrosivas. Mas mais do que um sermão pueril sobre os perigos do digital, Ingrid Goes West é, no final de contas, uma reflexão sobre a nossa necessidade desesperada de escaparmos à solidão, de sermos vistos, reconhecidos e, acima de tudo, amados.

Carla Rodrigues

 

Através da comédia negra Matt Spicer faz olhar sério sobre a doença mental, o stalking e a projecção. Aubrey Plaza parece ter nascido para este tipo de papel: o que vulgarmente chamaríamos de psicopata e que é produto de uma obsessão talvez geracional com as redes sociais. As redes sociais são aqui apenas um catalisador de personalidade, transformando Ingrid Goes West numa espécie de filme de terror do ponto de vista, aqui não do assassino, mas do stalker. As inseguranças, as lágrimas, as compulsões, as loucuras que caracterizam Ingrid (Plaza) encontram paralelo nas mais inesperadas pessoas, do cibercrime à perseguição, muitas vezes ao lado das vítimas. À superfície de tudo isso temos uma pequena comédia coesa e por vezes até irresistível que joga com os vectores de influência nas relações dos millennials, seus amigos e festas, uma Elizabeth Olsen segura e um Billy Magnussen positivamente detestável.

David Bernardino

 

Em tempos de influencers, quem tem seguidores é rei. Em tempos de consciencialização para a dependência e crescente obsessão dos jovens com as redes sociais e a perfeição estética que lhe é inerente, Ingrid Goes West aparece-nos para desbravar os maus caminhos de quem influencia e de quem se deixa influenciar, mostrando-nos que algo vai mal nesta obediência digital. A moral desta história é tão previsível quanto preocupante e quiçá nunca seja suficiente elaborar dissertações sobre a forma corrosiva como a vida na internet nos anda a impedir de fazer vida fora dela. Apesar de uma narrativa incoerente, a incongruência de Ingrid Goes West é necessária para sublinhar o ridículo de quem prega sobre lifestyle e do peso e significância que esta amostra populacional digital tem na vida de desconhecidos. Por outro lado, Matt Spicer chega a pegar neste assunto como uma emergência social que exige reflexão e melhor sensibilização, lamentando-se a forma ingénua e algo optimista como retrata situações compulsivas e transtornos mentais que poderiam ter sido explorados de uma forma menos leviana mas mesmo assim suficientemente perturbadora e alarmante.

Rita Cadima de Oliveira

 

Gasoline Rainbow (2023) de Bill Ross IV & Turner Ross

Gasoline Rainbow inicia a sua jornada cinematográfica como roadmovie, seguindo a viagem de cinco amigos em direcção à costa do pacífico numa carrinha com faróis disfuncionais e uma imensa sensação de desencaixe e não pertença social. Finalizado o percurso escolar médio, Micah, Nathaly, Nichole, Tony e Makai são a representação plena dos medos e inseguranças de cinco juventudes que procuram alguma compreensão e empatia, mas estando condenados a muitos encontros e respectivos desencontros. Todos eles sentem dificuldade em assumir as responsabilidades da vida adulta, não encontrando recompensas nos esforços e sacrifícios que a tradicional sociedade americana os impele a fazer. Não sabendo lidar com a pressão, criam entre eles um relação equitativa de dependência e independência, tornando-se empreendedores sociais, onde o mote do “amor e uma cabana” passa a “amizade e uma Van”. Porém, e como até no mel pode haver um fel, ao invés de lhes cortarem as pernas, cortam-lhes os pneus e este filme passa de forma exorbitante a coming of age. A viagem deixa de ser feita com rodas, e é no reaprender a andar com pés (e pouca cabeça) que estes miúdos continuam fugir da realidade, encontrando quase sempre uma maior crueldade. Exaltados pelos sentimentos de perda, luto e desarticulação ou conformidade normativa, é ao som de Metallica e Guns ‘n’ Roses, vestidos de Misfits e tatuados com o logo desta banda, comendo pizzas aos desbarato e regados a Coca-Cola e outras drogas, que se empenham numa roadtrip onde se prefere sobreviver com pouco a viver com muito. Gasoline Rainbow não é um filme sobre o recomeçar, é sobre começar do zero. Entre descobertas e perdas, eis que surge a questão: é mais fácil escapar ou aprender a lidar?

Rita Cadima de Oliveira

 

Kathy, I’m lost“, I said, though I knew she was sleeping
I’m empty and aching and I don’t know why
Counting the cars on the New Jersey Turnpike
(…)

Amar o outro junto ao fim do mundo (esse End of the World para onde todos caminham). Gasoline Rainbow tem um olho muito apurado sobre as suas paisagens americanas, e uma sensibilidade muito generosa e curiosa para com as suas personagens. A tempos algo cansativo com os seus recursos indie, formais e narrativos, mostra uma vontade muito grande em sentir o solo das suas viagens, tanto geográficas quanto espirituais. Nesse sentido, a estrada daqueles cinco adolescentes começa em força (uma aceleração sem protector de vento sobre o microfone, os cavalos na noite, a chegada ao lago de sal), perde-se pelos seus lugares amplos, até ao mar, e reencontra-se no abraço mais sentido. O fim de tempos de juventude e imprecisão.

Miguel Allen

 

Something, Anything (2014), de Paul Harrill

Ciente do orçamento reduzido da sua primeira longa metragem, Paul Harrill constrói um drama sensível sobre uma mulher em transição no Tennessee. Something Anything vive nos silêncios das relações das suas personagens emocionalmente densas, como que expondo as teias semi universais das relações amorosas, de amizade e profissionais. Peggy, arquétipo da mulher casada, mas infeliz, agente imobiliária em desencanto com a sua profissão, procura mudar de vida alterando até o seu nome num interessante acto simbólico onde a perda é um espectro silencioso. Infelizmente pouco é filmado dentro da densa narrativa que funciona como tela para o movimento do filme. Peggy não se expressa da melhor forma, confundindo-se o seu underacting com uma certa falta de algo para dizer. Quando questionada pelas amigas sobre se estaria a tomar as decisões certas, como se fugindo daquilo que dela se espera enquanto mulher, Harrill tem a inteligência suficiente para não apaparicar o espectador com moralismos simplistas, antes mantendo num limbo o discurso afirmativo que nunca, e bem, aplica no filme. Something Anything não precisa disso – as teias emocionais falam por si. Isso acaba por ter o seu contrapeso: um desfilar narrativo minimalista que pouco ou nada arrisca. O grande mérito do realizador em Something Anything, e também em Light From Light, será antes a forma como filma uns Estados Unidos longe das habituais câmaras de Hollywood, dos espaços fechados, das lógicas cinéticas do cinema comercial produzido na costa Este e Oeste daquele país. No Este do Tennessee o ritmo é diferente, as estradas, as relações, os símbolos, e não deixa de ser refrescante ver esta América tão castigada e ignorada na sétima arte.

David Bernardino

 

Um quase roadmovie que nos narra a tímida jornada de Peggy numa viagem mais espiritual do que física, na tentativa de regeneração e de redescoberta pessoal. Something Anything é muito tudo e muito nada, dizendo tudo com muito pouco. É um filme muito lento mas também é no seu parco budget que se revela descomprometido e independente, sem pretensões de aprovação. Nele sublinha-se a sua falsa simplicidade, dada a densidade e complexidade das relações entre as personagens, ficando sempre muito por dizer mas sendo a mensagem passada por aquilo que nunca se diz. E o silêncio é para Paul Hurrill uma bonita forma de expressão. A beleza deste filme reflecte-se no pesar e constante lamento de um vínculo emocional cujo timing é certo mas a pessoa é a errada, levantando questões sobre a maturidade do corpo mas não a da alma. Something Anything é vagaroso na tomada de decisões que o presente nos força a tomar, sabendo previamente que irão condicionar e influenciar o futuro. Contudo, para que todo este cenário se verificasse plausível e verossímil, exigia-se um elenco mais dotado e competente e uma análise mais aprofundada das questões ligadas ao casamento, à parentalidade e à maternidade, e a todas as dúvidas e medos que estas matérias originam nos relacionamentos. A escassez e superficialidade do desenvolvimento destes assuntos levemente abordados, levam ao distanciamento do espectador, que não consegue criar um elo com Peggy nem desencadear conexões com a narrativa.

Rita Cadima de Oliveira

 

Light From Light (2019), de Paul Harrill

A segunda longa metragem de Paul Harrill (convidado especial nesta edição do Outsiders) é uma clara evolução em relação a Something Anything, não deixando de lado os temas, a espiritualidade e o bucolismo característicos do realizador. A perda volta a ser tema central, explorando a fronteira da linguagem do terror e do drama, focando-se numa investigadora de paranormal amadora que procura descobrir se a casa de um viúvo está habitada pela presença da sua falecida mulher. Mais uma vez o mérito está na atmosfera campestre deste lado B dos Estados Unidos raramente filmado pelas grandes produções: carta de amor ao Tennessee, aos seus habitantes, às suas profissões e às suas relações. Shelia (Marin Ireland) trabalha num balcão de aluguer de automóveis, o seu filho reflecte sobre a ida para a faculdade e início de um namoro que estará condenado ao futuro desencontro, Richard (Jim Gaffigan) trata de um viveiro de trutas nas montanhas. As personagens de Harrill são intrinsecamente reais, tal como os seus receios, crenças e espaços. A densidade psicológica de Shelia permite descortinar uma autoprotecção, projectada no seu filho, motivada pelas desilusões do passado, a que se juntam as idiossincrasias descritas por Richard sobre a sua relação perdida. Um filme de desabafos e suspiros, habilmente minimalista para o bem e para o mal no seu modesto orçamento, num belíssimo efeito emocional.

David Bernardino

 

No Q&A, o realizador Paul Hurrill responde a um membro da público que o título Light From Light provém de um credo que se rezava, aos domingos, na Igreja Episcopal que frequentava na sua infância no Tennessee. O mistério desta expressão tão espiritual, confere também um aspecto visual e estético a este filme, sendo implicitamente uma recordação de um momento de plenitude que marcou a sua vida. É assim que Light From Light nos introduz aos perigos e falácias da memória, transportando-nos para as consequentes alucinações que levam um viúvo, Richard, a procurar em Sheila, respostas para as cargas sobrenaturais sentidas em casa após a morte da mulher. A sensação de uma presença transcendente não faz necessariamente de Light From Light um filme de fantasmas, relembra-nos sim que a perda e a dor fazem do presente mais assustador do que o passado. Para Hurrill, os traumas físicos tornam-se aparições e os traumas da mente reproduzem-se em assombrações. A ilusão do sonho deixa de ser uma fantasia e passa a ameaça constante e, por isto, Richard procura em Sheila uma resposta ao mistério da morte mas sobretudo uma esperança na continuidade da vida.

Rita Cadima de Oliveira

 

Ghostlight (2024), de Alex Thompson e Kelly O’Sullivan

O luto será sempre um tema difícil de trabalhar em cinema. Normalmente balizado por narrativas familiares semi lineares, flashbacks, revolta e redenção não se pode dizer que Ghostlight tenha descoberto a pólvora dentro desse subgénero dramático, mas o seu grande mérito será não se limitar a ele. Produção de orçamento limitado, este será um de muitos filmes que escapam ao grande público por motivos puramente comerciais que sufocam o cinema independente americano. Uma família desconectada sem glamorizações para grande ecrã ver, o teatro como local de regeneração, a linha ténue entre o realismo social e a ficção. É também um filme sobre os “homens da velha guarda”, como a dada altura o protagonista Dan (uma das melhores interpretações de 2024 é aqui de Keith Kupferer) se auto intitula. Os “pais” incapazes de verbalizar perante a tragédia, que não “gostam de falar sobre isto”, que não “têm o hábito de ir à terapia”. Alex Thompson e Kelly O’Sullivan, dupla de realizadores que é igualmente um casal, mergulham fundo na personalidade do protagonista, mas também nos meandros da sua relação que é revelada na narrativa passo a passo, acrescentando as peças do puzzle com elevada sensibilidade e mestria. Um filme que começa nas obras e acaba em palco, com Shakespeare, em crescendo climático apalpando as idiossincrasias da meia idade. Simples assim e maravilhoso, um dos melhores filmes recentes vindos da América do Norte que teria tanto a ensinar aos “indies” indicados aos grandes prémios da indústria.

David Bernardino

 

Pesarosa e desgastante é a dor de quem tem de dar continuidade à vida depois da morte e Ghostlight toma a forma da raiva e do desespero das pessoas que não conseguem encarar o desaparecimento daqueles que amam. É na incompreensão da perda e nas dificuldades do processo de luto, que Alex Thompson e Kelly O’Sullivan, de forma subtil e graciosa, fazem uma homenagem à tragédia de Romeu e Julieta, mas sobretudo a quem não desiste de fazer Teatro mesmo com escassez de recursos. É na introdução do drama familiar de Dan, Sharon e Daisy, que abalados por uma tragédia pessoal, descarregam, em graus distintos, frustrações e raivas por onde passam. Lidar com a morte, reformular a vida e reaprender a viver é o o maior desafio e tal como em Romeu e Julieta, também Ghostlight verifica disputas pessoais e rivalidades emocionais. Aqui, a terapia e o aconselhamento psicológico tomam a forma de encenação, concedendo a outros corpos e outras personagens a coreografia da vida e o lirismo da esperança, representando em palco a força e o vigor que não se consegue ter fora dele.

Rita Cadima de Oliveira