A XVII edição do Motelx chegou ao fim. Foram vários dias de cinema de género, do terror à acção, passando pelo thriller e pelo fantástico, que habitaram o cinema São Jorge, em Lisboa. O grande destaque desta edição do festival foi a presença do realizador Brandon Cronenberg, que deu uma masterclass e apresentou Infinity Pool, em estreia no nosso país, bem como Possessor e Antiviral, as suas outras duas longas metragens. O realizador, ainda jovem, deixou bem vincado com a sua retrospectiva que o seu futuro passará pelo cinema de género. Nós agradecemos. A sessão de encerramento esteve a cargo de Acid, disaster movie francês a piscar o olho ao blockbuster, apresentando-se como eco-terror em volta das alterações climáticas e da chuva ácida.
Na sessão de encerramento foram também, como é apanágio, entregues os prémios do festival. A curta metragem De Imperio, de Alessandro Novelli, foi o grande vencedor do prémio para a melhor curta portuguesa, curta de animação claustrofóbica que integrava o lote dos favoritos. O vencedor do prémio para melhor longa de terror europeia foi Superposition, da Dinamarca, um filme mais sci-fi que terror cuja vitória dividiu o público. Já a menção honrosa para longa de terror europeia foi para Hood Witch, um filme fruto do seu tempo que chama a atenção pela crítica às redes sociais. Ficaram fora dos laureados Smother e Raging Grace, provavelmente os dois filmes que melhor cumpriam o seu desígnio, bem como o surpreendente A Semente do Mal, de Gabriel Abrantes. O prémio do público foi para Irati, filme medieval de fantasia proveniente do país Basco do realizador Paul Urkijo Alijo que aparentemente se tornou autor de culto com Errementari, exibido em 2018 no Motelx. Ficou de fora Home For Rent, o filme tailandês que foi o favorito da nossa equipa.
Infinity Pool (2023), Brandon Cronenberg
Brandon Cronenberg, realizador canadiano, teve honras de destaque no Motelx 2023. Para além da merecida retrospectiva em formato de exibição das suas 3 longas-metragens – Antiviral, Possessor e Infinity Pool, o jovem realizador também deu uma masterclass bastante procurada por curiosos, apreciadores de cinema e profissionais do sector. Assumindo que o trabalho de Cronenberg se desenvolve num misto de body horror meets science fiction, é inevitável um constante encontro do espectador com situações de particular violência, hedonismo e horror. No que diz respeito a Infinity Pool, James (Alexander Skarsgård) e Em (Cleopatra Coleman) são um casal em pleno gozo de férias na ilha Li Tolqa, numa estância isolada, que procuram momentos imaculados de sol, praia e um q.b. de diversão. Quando conhecem a misteriosa e sedutora Gabi (Mia Goth) são guiados a aventurar-se fora do recinto luxuoso da estância e dão por si num local onde impera um regime militar draconiano, no qual os locais tentam sobreviver ao medo igualmente pelo seu uso. Tudo neste filme aparenta ser fictício. A monotonia do casal e o facto de ignorarem a crise conjugal que estão a viver, fazem com que a presença de Em os arraste cada vez mais para uma tragédia antecipada que se confirma num nefasto acidente quando regressam de noite ao hotel, sendo James levado para uma prisão. É neste local físico que restringe a liberdade que em Li Tolqa nunca existiu, que James percebe que, no país onde se encontra, a pena por homicídio é a morte. Mas como todos os sistemas têm a sua forma de contorno, também o de Li Tolqa pode ser contornado: a existência de um sistema de clonagem que implica a obrigatoriedade de se ver morrer em primeira mão. É aqui que se visualiza a imersão numa realidade em que o prazer de estar vivo e a morte são a mesma alucinação. Infinity Pool tinha tudo para ser o monstro gráfico e estético que é, efectivamente é um filme sangrento, tumultuoso e irascível. Bem acompanhado por um trabalho sonoroso meticuloso e conveniente. Porém, no que diz respeito ao character development, Cronenberg não aprimorou o que deveria ter aprimorado. Fica sempre a faltar algo mais à narrativa e, à medida que a história se desenvolve, as falhas e omissões vão-se denunciando, não se servindo o filme do bom elenco que tem. Parece que Cronenberg preferiu ser mais tímido nos momentos onde era mais necessário que tivesse elaborado e, por oposição, poderia ter sido mais recatado em momentos mais supérfluos.
Rita Cadima de Oliveira
Um dos destaques da 17ª edição do Motelx foi a estreia nacional de Infinity Pool do canadiano Brandon Cronenberg, sessão que contou com a presença do realizador. Esta sua terceira longa, que inicialmente fora concebida como uma pequena história, acompanha um casal durante as férias de verão. O destino é a ilha de Li Tolqa, um país paradisíaco sem falta de resorts de luxo. O complexo turístico fica isolado do resto da ilha, separado dos nativos por arame farpado. Estes turistas vieram para desfrutar de sol, praia e do melhor que a vida tem, não para verem pobreza. Mas podem sempre comprar um souvenir na loja do hotel! O dinheiro não compra a felicidade, mas em Li Tolqa o dinheiro compra a impunidade, uma lição que o protagonista James (Alexander Skarsgård) aprende durante uma escapadela ao exterior do resort. Em Li Tolqa, a lei dita que quem mata, morre. Crime e castigo, já dizia o outro. A questão é que Skarsgård aprecia o castigo, pois por uma choruda quantia monetária quem o sofre é um clone seu. Como não ficar viciado nas infinitas possibilidades que tal sistema penal oferece? Apesar da estreia em festival de terror, Infinity Pool está na verdade mais perto da ficção científica ou do “realismo mágico”, como declarou o realizador. São de lamentar as suas indulgências no que diz respeito à frequente violência gratuita. Para Cronenberg Jr. parece não bastar uma facada letal. A cena só termina quando as entranhas caírem ao chão. É uma postura provocante que tem origem mais na sua imaturidade, do que no desejo de estimular o pensamento do espectador.
Pedro Barriga
Acid (2023), Just Philippot
Acid foi a obra escolhida para o encerramento da 17ª Edição do Motelx. Trata-se de uma obra de eco-terror com uma metáfora patente: o apocalipse familiar consegue ser tão perturbador quanto o apocalipse urbano e das coisas materiais. Durante uma onda de calor e num mundo à beira do abismo, Selma, uma rebelde adolescente, filha de pais divorciados, vê-se obrigada a unir forças com o seu pai, Michal, homem de temperamento acutilante e Élise, a mãe conciliadora. Enquanto o drama familiar vive momentos tensos, também estranhas nuvens se começam a formar num céu que se torna assustador. O caos e a devastação em toda a França são provocados pelo derramamento da chuva ácida que consome vidas, habitações e meios de subsistência. Estando o pânico lançado, a tragédia pessoal desta família já desavinda é desafiada a tréguas quando o caos provindo da catástrofe climática, precipita uma aventura ritmada com vista à sobrevivência. Desta forma, Acid é quase uma moldura para a ira da natureza. Este apocalipse urbano é, por vezes, exageradamente trabalhado em termos estéticos e imagéticos, por oposição à quase perfeição da representação da tensão familiar, constantemente amplificada e bem representada por Selma e Michal. É neste cinzento e terrível cenário apocalíptico que a chuva, contrariamente à sua função fecundadora, se torna a destruidora da terra e de todos os que nela habitam.
Rita Cadima de Oliveira
A sessão de encerramento esteve a cargo de Acid, proposta da nova vaga de eco-terror assinada por Just Philippot, que coloca pai e filha em fuga de uma chuva ácida que tudo corrói, fruto das alterações climáticas. A originalidade é inegável e pesquisas superficiais não encontram outro filme centrado em chuva ácida, com excepção da curta metragem com o mesmo nome igualmente da autoria de Just Philippot, que serviu certamente de prenúncio para esta longa. Trata-se de um disaster movie no sentido clássico, com multidões a correr aos gritos, militares a organizar sobreviventes e um ou outro sobrevivente ocasional que se cruza com os protagonistas, muito lembrando, por exemplo, Guerra dos Mundos de Spielberg ou The Happening de Shyamalan. A execução é boa, notando-se bem o intuito comercial internacional desta produção francesa para o grande ecrã, mas não ao nível de um verdadeiro blockbuster, ficando a sensação de que acabámos de ver o episódio piloto de uma série que ainda tem muito para desenvolver, mas que acaba cancelada pela cadeia televisiva.
David Bernardino
Irati (2023), Paul Urkijo Alijo
Na apresentação de Irati, o realizador basco Paul Urkijo Alijo, avisa a plateia que não espere estar perante um épico de guerra nem de aventuras mas sim de um filme de amor. Embora a obra seja passada nos Pirenéus Ocidentais, ano 778, e o foco se esbata na história do País Basco, no preciso momento em que se reconquista a Península Ibérica aos Sarracenos, o filme é, sobretudo, a conjugação visual de um misto de esoterismo, mitologia, magia, expressionismo e misticidade. Eneko, filho do Senhor do Vale, retorna a casa já em adulto com vista a proteger a sua pátria dos avanços e tentativas de anexação de Velasco. O anti-herói faz-se guiar, nas profundezas da floresta, por uma enigmática jovem chamada Irati. Irati é, no seu todo, uma representação simbólica de vários elementos, apresentando-se o fogo, a água e o ouro como simbologias físicas que, na sua vertente espiritual, expressam significados mais profundos. Valores como a ambição, a avareza e a ganância são condenados mas também a abordagem à superstição, às lendas, às crenças e à bruxaria é levada para o campo do impiedoso e condenável. Apesar de uma cinematografia e estética irrepreensíveis, o elenco revelou-se algo amador, denotando-se alguma impreparação e inexperiência. Por outro lado, o filme acaba por se arrastar e tornar-se excessivamente longo e adormecido, tendo raros momentos desconcertantes ou de real terror.
Rita Cadima de Oliveira
Mad Fate (2023), Soi Cheang
Depois de Detective vs Sleuths, mais um filme da produtora Milkyway Image em exibição no Motelx, sendo de assinalar as semelhanças estéticas e a mesma preocupação com hiperbolizar o estado de demência da sociedade de Hong Kong. O mais recente filme de Soi Cheang acompanha um cartomante e um jovem com tendências homicidas que procuram, conjuntamente, fugir ao inevitável e malogrado destino. Conjugando habilmente humor negro, ação e terror, Mad Fate navega no limiar da loucura, a loucura dos seus protagonistas e a loucura da linguagem cinematográfica e encenação do cineasta de Hong Kong, que encontra sempre a imagem certa para manter o espectador perturbado mas constantemente preso ao ecrã.
Bruno Victorino