Especial Motelx 2023 Dia #5 – The Exorcist; Pensive; Superposition; A Semente do Mal; Detective vs Sleuths

Ao quinto dia o Motelx 2023 teve 2 grandes destaques. Primeiro a sessão de celebração dos 50 anos de The Exorcist, precisamente no ano do falecimento do seu realizador William Friedkin, em cópia restaurada, que nos relembrou o quão bom é este filme que marcou e continua a marcar o género de terror. O segundo destaque vai para a estreia europeia de A Semente do Mal, filme de terror clássico do português Gabriel Abrantes em sessão absolutamente esgotada que surpreendeu muito pela positiva. Vimos ainda Pensive, o primeiro slasher vindo da Lituânia, o thriller dramático sci-fi dinamarquês Superposition e o thriller de acção over the top de Hong Kong Detective vs Sleuths. As nossas críticas:

 

The Exorcist (1973), William Friedkin

50 anos depois da sua estreia, O Exorcista continua a ser uma referência para a maior parte dos apaixonados do género. Sendo baseado no romance homónimo de 1971 do guionista, William Peter Blatty, e inspirado em relatos reais, The Exorcist é ainda considerado um dos filmes de terror mais assustadores de sempre. É memorável e por isto venceu Óscar de Melhor Argumento e de Melhor Som, tendo também sido indicado para outras oito categorias incluindo Melhor Filme, em 1974. Num período histórico algo conturbado (anos 70) e no qual ainda muito se invocava à sociedade puritana, casta, recatada e virtuosa, William Friedkin aborda, de uma forma audaciosa e displicente, temas algo púdicos para um mundo socialmente comedido. Desta forma, Exorcista foca-se em temperamentos atípicos sem explicação médica; psiquiatria; exorcismos; limites da fé; superstição vs. ciência e estranhos acontecimentos são um mote para um filme bastante completo e complexo desde o esmerado guião, à escolha meticulosa do elenco, ao rigoroso trabalho de som e à primorosa cinematografia que retrata o verdadeiro ambiente do horror físico e psicológico.

 

 

Rita Cadima de Oliveira

 

O clássico de terror de William Friedkin faz 50 anos, tendo direito a exibição especial no Motelx, em versão restaurada. Revendo a obra continua a ser impressionante a forma como consegue agarrar e intrigar o espectador. Ao invés de simplesmente aceitar o sobrenatural, o verdadeiro mérito d’O Exorcista está na forma como se coloca no lugar do espectador comum, questionando o fenómeno inexplicável que está a apoderar-se da jovem e inocente Linda Blair, no papel de Regan, apenas justificado por uma doença mental de difícil, ou impossível, diagnóstico. O filme é um excelente slow burn, com um desenvolvimento de personagem maravilhoso, em particular a mãe desamparada interpretada por Ellen Burstyn e o padre em crise de fé, interpretado por Jason Miller. Temos ainda direito a policial à mistura, com o carismático Lee J. Cobb (imortalizado por 12 Angry Men) no papel de um detective que tenta descortinar o que se estará a passar na casa onde uma jovem de 12 anos sofre de uma doença misteriosa, atada à cama. Claro que o aquilo que fica para a história d’O Exorcista são os arrepios das cenas de possessão, o body horror, e o exorcismo em si, mas ironicamente não é isso que faz dele um grande filme, podendo até desiludir quem espera uma catarse de horror de maior escala. O que faz d’O Exorcista um grande filme é precisamente a sua atmosfera, o seu pano de fundo, a sua construção. Fantástico.

David Bernardino

 

A Semente do Mal (2023), Gabriel Abrantes

A Semente do Mal é a mais recente longa-metragem de Gabriel Abrantes, realizador português com residência norte-americana. Mereceu uma sala Manoel de Oliveira completamente cheia no Cinema São Jorge. Após o delírio visual de Diamantino, obra que lhe concedeu o prémio da Semana da Crítica em Cannes, Gabriel Abrantes envereda pela primeira vez num filme de terror clássico que baila a tempo inteiro com vários tipos de mistérios: as origens familiares, a paternidade, casas antigas e seculares, a dicotomia portuguesa do campo vs. cidade e, sobretudo, com velhas crenças populares sobre bruxas e superstições. A busca intensiva e arrasadora de Edward pela sua família biológica, leva-o e à sua namorada, Riley, a Portugal, mais concretamente, a uma fascinante casa no Norte de Portugal onde irá conhecer o seu irmão Manuel e a sua mãe, há muito procurados e desejados. Empolgado, Ed vai finalmente compreender a sua essência, as suas origens, o lugar de onde veio e até mesmo quem realmente é. Mas como nada é o que parece, no desenrolar desta aproximação sanguínea, Riley começa a desconfiar dos inúmeros segredos e cenários desajustados que vai presenciando. Na sua primeira incursão pelo terror, Gabriel Abrantes poderá não revelar um domínio total ou até mesmo toda a segurança necessária para trabalhar com o género, porém, nesta obra, evidencia inúmeros desígnios de que poderá continuar a criar projectos neste âmbito. Em primeiro lugar, Anabela Moreira apropria-se do filme com uma caracterização terrivelmente assustadora, num papel extremamente desafiante e monstruoso. A vibe fantasmagórica e misteriosa é acedida por Gabriel Abrantes e transposta para o espectador, concedendo-nos um ambiente permanente de pavor e aversão. Do início ao fim do filme, denota-se estímulo argumentativo, compasso certo e apropriado aos momentos mais tensos e uma cinematografia claramente estudada e repensada de forma a nada se tornar demasiadamente exagerado.

Rita Cadima de Oliveira

 

O português Gabriel Abrantes faz incursão no cinema de terror, e que bela surpresa foi. Com uma linguagem cinematográfica facilmente internacionalizável (o filme é, aliás, falado em inglês na sua maioria), não será de admirar que A Semente do Mal (Rosemary’s Baby é clara inspiração para Abrantes) encontre o seu caminho além portas. Trata-se de um filme de terror clássico que segue um jovem americano, acompanhado pela sua namorada, que viaja para Portugal em busca do seu irmão gémeo e mãe que nunca conhecera. Temos direito a mansão na floresta, cenários que piscam o olho a Cries and Whispers de Bergman, cave misteriosa e uma Anabela Moreira fabulosamente caracterizada no papel de matriarca idosa, coberta de plásticas e obcecada com a juventude eterna. Tudo em A Semente do Mal é bem executado e consciente do género em que se insere, sendo filme de entretenimento puro e duro, com pequenos apontamentos de comédia aqui e ali que ajudam a aumentar o desconforto com o bizarro que acontece nesta mansão. Com um clímax satisfatório, A Semente do Mal é refeição completa para quem procura um bom filme de género e entra facilmente no pequeno lote dos bons filmes de terror portugueses, ao lado de Coisa Ruim ou Faz-me Companhia.

David Bernardino

 

“A Semente do Mal”, primeira incursão de Gabriel Abrantes pelo reino do terror, não inventa a roda, mas tem os pergaminhos muito bem estudados. Tanto a abordagem narrativa como a estética são bastante clássicas, assentando num mistério familiar, de contornos sobrenaturais, que nos leva de jump scare em jump scare até à revelação e confronto finais. Pelo meio, são utilizados todos os motivos que já vimos em inúmeros filmes do género (a porta que range, os sons assustadores no escuro, o sonho dentro do sonho, a pessoa de fora que percebe tudo e a pessoa que desvaloriza, etc…), mas é inegável a competência e precisão com que Abrantes os emprega. A atmosfera, conseguida através de uma cinematografia de contrastes elevados, uma banda sonora devidamente estridente e o compromisso total dos atores, é irrepreensível. Já o mesmo não se pode dizer da componente mais “diferenciadora” do filme, isto é: a sua camada humorística. Ainda que produza momentos divertidos, o excesso de self awareness nem sempre joga bem com a ambiência de terror. O desequilíbrio tonal gera algumas quebras de ritmo e deixa a sensação, pela insistência em certas piadas, de se tratar sobretudo de uma defesa para as debilidades do guião. Uma prática comum na cultura popular da atualidade – injustificada num filme tão pouco pretensioso – que não pareceu, em todo o caso, preocupar os espectadores que esgotaram a sala Manoel de Oliveira, no cinema S. Jorge, e que a ela corresponderam, com gargalhadas sonoras, nos momentos-chave. Por aqui, apraz-nos constatar que a inventividade de “Diamantino” não foi um engano e que Abrantes tem, a par de versatilidade, a capacidade de dar bom uso às suas referências cinematográficas.

Gil Gonçalves

 

Pensive (2023), Jonas Trukanas

Pensive de Jonas Trukanas é o primeiro slasher lituano cuja premissa é inspirada num momento interactivo entre o realizador e uma estátua de Cristo Pensativo (figura religiosa típica dos países do báltico), feitas pelos Dievdirbys (artesãos de madeira lituanos). A obra transporta-nos para a festa de formatura de uma turma de liceu que, na inocência da idade, possuem todo o desejo de uma despedida louca dos tempos escolares mas também uma imensa falta de organização e disciplina para reservar um local apropriado para o efeito. Aqui entra Marius que convida a turma para uma cabana cuja venda é da responsabilidade da sua mãe, agente imobiliária. “Sejam caçadores, não presas”. É este o último conselho que ouvem de uma Professora. Chegados ao local, os jovens iniciam o churrasco, ligam o som, preparam o álcool e a festa alinha-se. Os ânimos exaltam-se e a falta de discernimento começa a tomar conta do grupo. Dois jovens começam a arrastar para o centro da festa as estátuas de madeira que estavam num monólito. Até que o (assim tão não) inesperado acontece e o rumo da noite começa a tornar-se macabro. Todo o ambiente folklore, repleto de bichos da noite e nevoeiro é trucidado pelo aparecimento de um misterioso homem mascarado, com uma faca em punho. Começa o assassinato em série e a luta pela sobrevivência. Jonas Trukanas consegue realizar uma obra eficaz quase até ao fim. Os jovens escolhidos para interpretar os finalistas criam uma estimulante conexão com o público dado o carisma forte que possuem. Os espectadores interagem e entusiasmam-se, contudo, o desfecho é sempre expectável e o factor surpresa é nulo. Por outro lado, a parte sonora não foi devidamente trabalhada, não acompanhando a acção nos momentos mais oportunos.

Rita Cadima de Oliveira

 

É o primeiro slasher provindo da Lituânia e o resultado final é positivo. A fórmula é a clássica: grupo de jovens adolescentes saídos do secundário vão celebrar para uma cabana na floresta, mas existe um assassino psicopata nas redondezas. Pensive segue bem o seu caderno de encargos slasher, nunca fugindo à derivação. Existem pequenos romances e amizades, um pano de fundo de caracterização de personagem q.b. para que o assassino, que tem uma máscara e mata à catanada, comece a sua matança. Infelizmente o tom é demasiado irrealista (nunca um grupo de 20 jovens foi tão impotente perante 1 único indivíduo), o argumento demasiado simplista, um vilão com uma backstory praticamente inexistente, enfim, tudo contribui para que Pensive seja só mais um, cumprindo a sua função.

David Bernardino

 

Superposition (2023), Karoline Lyngbye

Karoline Lyngbye estreia-se nas longas-metragens com Superposition, um filme co-produzido pela Dinamarca, Suécia e Finlândia. Como tem sido apanágio dos últimos anos, da Europa do Norte espera-se o tradicional folk horror, com uma cabana não junta à praia, mas junto a uma floresta decorada por um ambiente remoto, silencioso e bastante isolado. Stine e Teit representam o típico casal moderno, intelectuais, com poder social e económico e, sobretudo, donos de uma confortável vida urbana em Copenhaga com o seu filho, Nemo. Apesar de todos os aspectos aparentemente positivos e a situação de privilégio social ser por ambos assumida, estes partem para um refúgio sustentável numa floresta Sueca onde irão reflectir e, acima de tudo, comungar uma vida mais terrena e menos superficial. O foco do casal é, primariamente, reacender a chama algo apagada no seu casamento, mas também a redescoberta de si mesmos não só como seres unos, mas também como pares. Até que um dia, Nemo, por momentos, desaparece na floresta e, no reencontro com Stine, a criança visivelmente transtornada insiste que ela não é sua mãe. É aqui que a obra se interliga com o fenómeno da física quântica, denominado Superposition, que representa o princípio da superposição, isto é, a combinação de dois fenómenos físicos distintos mas de natureza idêntica, que coexistem como parte do mesmo evento. Ou seja, Karoline Lyngbye introduz um fenómeno científico na sua obra, criando um filme pretensioso mas altamente cativante. A estética do folk terror traz um ambiente de suspense e ansiedade ao espectador que sente a agonia e a angústia daquele confronto familiar em forma de espelho. Todo o ambiente cinematográfico do filme é rigoroso e acertado, sendo irrepreensível toda a sua estética que tem tanto de harmoniosa como terrorífica.

Rita Cadima de Oliveira

 

Filme dinamarquês a concurso para melhor longa de terror europeia no Motelx, não se poderá dizer que se trate de um filme de terror, mas antes um exercício sci-fi conceptual onde um casal que faz um retiro nos bosques com o seu filho começa a questionar a sua realidade. Além do conceito que vai beber directamente a filmes como Coherence ou Dead End, numa claustrofobia ao livre, existe um drama relacional a explorar entre o casal, com uma sobreposição feminista num filme que tem dificuldade em equilibrar a voz dos seus dois protagonistas. Fica um sabor amargo. Por um lado, o conceito de ficção científica é intrigante o suficiente para capturar o espectador, mas é explorado por demais superficialmente em detrimento de um drama algo vulgar e já demasiado repisado. Superposition quis ser um filme do seu tempo, acabando por não ser bem coisa nenhum, acabando por sacrificar aquilo que tinha de melhor: o seu conceito de universos paralelos.

David Bernardino

 

Detective vs Sleuths (2022), Wai Ka-Fai

A produtora Milkyway Image, fundada em 1996 por Johnnie To e Wai Ka-Fai, é responsável por alguns dos filmes mais interessantes saídos de Hong Kong, principalmente quando assinados pela parceria entre os dois realizadores. Em Detective vs Sleuths, Wai Ka-Fai aventura-se a solo e, apesar de se sentir a falta de Johnnie To, o resultado é um mirabolante crime film, com uma assinalável ambição formal em sucessivos setpieces de ação que ficam na retina do espectador. Como o título indica, o filme de Wai Ka-Fai retrata a guerra nas ruas de Hong Kong entre polícias e vingadores, na tentativa de solucionar crimes associados a assassinatos em série, com um traço satírico vincado e reviravoltas narrativas ao virar de cada esquina.

Bruno Victorino

 

Produzido em Hong Kong, Detective vs Sleuths é um thriller de acção com toques de comédia over the top inspirado nos policiais chineses dos anos 80 e 90. Um detective brilhante retirado que sofre de esquizofrenia continuou a trabalhar continuamente ao longo de décadas em casos de homicídio nunca resolvidos e de repente vê-se a braços com uma investigação em corrida contra o tempo para encontrar um grupo de assassinos que está a matar precisamente os suspeitos desses homicídios. O resultado é aquilo que se espera: um filme de acção cheio de curvas e contra-curvas com muitos tiros, one-liners, humor e sangue. Não traz nada de novo, mas cumpre com afinco aquilo a que se propõe não sendo uma perda de tempo.

David Bernardino