No terceiro dia do Motelx a equipa da Tribuna viu 5 filmes. O misterioso e desconcertante Good Boy, no qual um homem vive com uma pessoa que se veste como um cão; uma traficante de animais exóticos em Hood Witch; o terror imobiliário de Home For Rent; o zombieficado canibalístico de The Funeral; e por fim o filme de acção frenético e carismático vindo da Coreia do Sul com The Childe. Foi um dia positivo, de forma geral, mas continua a faltar um filme arrebatador que marcará esta edição do festival.
Good Boy (2022), Viljar Boe
Good Boy é um filme que compreende e cumpre a missão a que se propõe. Pega numa premissa louca, que podia facilmente descarrilar, e espreme-a ao máximo, doseando muito bem o humor desconfortável da primeira metade com o suspense de cortar à faca da segunda. Quando percebemos (relativamente cedo) onde a narrativa vai desaguar, sabe provocar e guardar ao máximo o ponto de ebulição, garantindo um payoff bastante satisfatório. A realização minimalista, a roçar o trabalho universitário, é totalmente intencional, contribuindo tanto para a sátira aos TV movies românticos como para a crueza dos momentos mais violentos.
Gil Gonçalves
The Funeral (2023), Orçun Behram
A estreia mundial de The Funeral, do realizador turco Orçun Behram, teve lugar no Motelx para uma sala repleta de curiosos. Nesta obra, um homem taciturno que tem como profissão conduzir uma carrinha funerária, vê a sua rotina abalada por um bizarro expediente: entregar o corpo de uma jovem, que foi brutalmente assassinada, à família que vive no leste do país. Contudo, é na primeira noite que os acontecimentos paranormais começam a surgir. Os grunhidos, aparentemente de alguém com asma, que se começam a ouvir, pertencem à morta que, embora sem pulso, é afinal uma morta-viva. Zeynep de seu nome, acorda do descanso eterno e necessita de ser alimentada por carne…humana. Camal começa por entregar o corpo às balas mas rapidamente percebe que o seu amor por Zeynep precisa de sustento e inicia uma caça ao corpo com vista a alimentar a sua Noiva Cadáver. Segue-se então um história recambulesca e vampiresca, tendo de sobra sangue, mortes, corpos putrefactos e alguns elementos da banda Slipknot. The Funeral é um filme bem executado, com um elenco superior, no entanto, o seu ritmo lento, parco em som e a fórmula já gasta deste canibalismo romantizado, tornam-no algo aborrecido e pouco diferenciador. Acabando por se tornar numa obra esquecível e pouco relevante no género.
Rita Cadima de Oliveira
O Motelx acolheu a estreia mundial do turco The Funeral, a história de um homem solitário que tem por profissão o transporte de cadáveres. Certo dia o cadáver de uma jovem não está assim tão morto. The Funeral é sobretudo um drama relacional, em ritmo lento, e apesar de ser um road movie algo aberto, o seu Mundo cinzento e depressivo atribui-lhe uma claustrofobia criativa. Este drama move-se dentro do body horror, zombie, canibalismo, serial killer e mesmo ocultismo, numa amálgama de géneros que até funciona bem. O que tira ímpeto a The Funeral é o seu ritmo (ausência dele), a sua apatia, o seu cinzentismo, optando o filme por tirar o entretenimento dele próprio em favor de uma carga dramática com a qual o espectador dificilmente se relacionará. Ainda assim é uma produção de género bem executada.
David Bernardino
Um guião paupérrimo, que vai adicionando elementos narrativos sem os ligar devidamente. Uma realização simplista e um ritmo injustificadamente lento, que roubam a ação de qualquer tensão (apesar da grande dose de carnificina). The Funeral desperdiça uma boa premissa, personagens cheias de potencial e até o eventual comentário político, que parece ensaiar em alguns diálogos, preferindo colocar todas as fichas numa história de vingança tão derivativa como deslocada de tudo o que começou por construir. Salva-se o design de som, que torna cada corte, cada mordidela e cada estalar de osso agradavelmente desconfortável. (Gil – 1 estrela)
Gil Gonçalves
Home For Rent (2023), Sophon Sakdaphisit
Home for Rent é um thriller de terror tailandês que mereceu uma sala esgotada no Motelx. Sendo inspirado em acontecimentos reais, esta obra aborda uma família proprietária de uma casa, cujos inquilinos, à procura de uma presa para sacrificar, revelam-se membros de um culto sombrio e esotérico. Esta obra traduz aquilo que deve ser conseguido num filme do género: um público claramente agarrado ao ecrã, atento, curioso e assustado. Sophon Sakdaphisit consegue manter o mistério com uma sonoplastia irrepreensível e um poderoso cast. Talvez o filme pegue em demasiados elementos do oculto, sendo fortemente simbólico por meio do uso e abuso de elementos cliché como livros, corvos, altares e preces, contudo, Home for Rent não é só mais um filme sobre seitas, este consegue ser místico e marcante, pecando só por ser demasiado longo e por explicar detalhadamente alguns acontecimentos que facilmente poderiam ter sido tornados pouco relevantes e até mesmo melhor resumidos.
Rita Cadima de Oliveira
Vindo da Tailândia, Home For Rent é o filme de terror assustador que a maioria do público espera de um festival como o Motelx, e não desilude no entretenimento que oferece. Uma família, casal e filha, vê-se forçada a arrendar a sua casa a duas mulheres misteriosas. Recheado de ocultismo e meninas assustadoras de cabelo preto comprido, como é apanágio do horror daquela zona do Mundo, Home For Rent começa muito bem, com uma hora de terror misterioso e arrepiante bem executado a um ritmo fantástico. Depois disso o filme quase deita tudo a perder ao fazer corte narrativo elíptico, tão em voga hoje em dia em filmes de ritmo estranhamente acelerado, para nos mostrar “o outro lado” da história. Perdendo-se o mistério, perde-se igualmente grande parte do interesse, mas ainda assim as personagens são cativantes o suficiente para manter o espectador interessado para um acto final que regressa ao presente e recupera tudo o que de bom o filme havia sido na sua primeira metade, com um desenlace de rara carga dramática para o género.
David Bernardino
Hood Witch (2023), Said Belktibia
Hood Witch está inserido no festival na competição Mélies D’Argent para melhor longa e teve a sua estreia internacional em Lisboa. O primeiro filme do realizador francês Saïd Belktibia é uma história de caça às bruxas, um tema já clássico no género de terror, recontextualizado para um cenário contemporâneo. Nour (Golshifteh Farahani) que ganha a vida com contrabando de animais exóticos e como curandeira vê a sua vida entrar numa espiral descendente depois de uma das suas consultas resultar num final trágico. O filme, que apresenta alguns pontos interessantes relativamente ao fanatismo religioso e à desinformação, torna-se numa perseguição desenfreada (e algo demorada) que rapidamente perde o gás e que recorre excessivamente à utilização das redes sociais como mecanismo para fazer a história avançar.
Francisco Sousa
The Childe (2023), Park Hoon-jung
The Childe começa por abordar a questão racional e o preconceito existente relativamente aos Kopino (ascendência metade coreana, metade filipina), mostrando-nos a vida de um jovem rapaz que amealha trocos como lutador de boxe em estádios ilegais nas Filipinas. Este míudo anda também à procura do seu pai coreano com vista a angariar uma quantia monetária que seja suficiente para a realização da cirurgia da sua mãe filipina que está bastante doente. Um dia, recebe uma mensagem aparentemente verídica do lado do seu pai, na qual lhe é exigido que voe para a Coreia do Sul para o encontrar. Desta forma, iniciam-se as hostilidades e é aqui que começa o filme e consequentemente todos os tumultos e desavenças que nele ocorrem. O que estará a fazer um thriller repleto de comédia e de acção no MotelX? Pancadaria, tiros, sangue, corpos e carros destruídos poderia ser a resposta. No entanto, The Childe é mais complexo do que a simplicidade que aparenta ser. É uma obra destruidora e que mostra a banalidade e frivolidade como a vida humana (não) é tida em conta pelos gangues e máfias asiáticas. The Childe é um quebra-cabeças, uma charada repleta de speed e adrenalina. É uma obra altamente violenta, rápida e a crueldade é coreografada de tal forma que o espectador não consegue decifrar quem é o verdadeiro protagonista da história, muito menos quem é o bom e o mau.
Rita Cadima de Oliveira
Filme de acção coreano, recheado de humor negro e personagens carismáticas, The Childe é aquilo que se espera de uma sessão da meia noite. Gargalhadas, tiros, sangue, perseguições, um argumento cheio de plot twists ridículos e deliciosos, não se pode dizer que exista propriamente algo de errado com The Childe, a não ser algum excesso de auto-consciência que nunca chega a ser exasperante, como acontece em filmes como Free Fire. O subtexto da máfia coreana e dos poderosos da cidade, um olhar sobre o submundo das apostas e lutas em ambientes duvidosos e o preconceito para com os kopinos (filhos de coreanos e filipinos) acrescentam camadas de interesse à acção frenética e estilizada que é apresentada na superfície.
David Bernardino
Uma mescla entre os filmes de ação americanos dos anos 80 e as paródias a esses mesmos filmes. Tem todos os elementos de ambos os casos, sendo que a pancadaria enquanto espetáculo funciona melhor que o lado farsante. As sequências de ação são coreografadas e editadas de forma competente e algo gory, desafiando muitas vezes as leis da física, como se quer. Os problemas começam quando os comic reliefs começam a tomar demasiado espaço. As piadas tornam-se excessivas e vão sendo repisadas, como se o filme precisasse constantemente de nos dizer que é tudo a gozar. Pior um pouco quando, em nome desse humor, massacra a narrativa com plot twists expositivos e desnecessários que o desfavorecem. Ainda que seja uma viagem empolgante, chegamos ao fim a perguntar com o que ficamos realmente, senão um anúncio de 2 horas à Mercedes.
Gil Gonçalves