Especial Motelx 2023 Dia #2 – Estranho Caminho, Smother, Vincent Must Die, Hostile Dimensions e Curtas ao Almoço #1

O segundo dia do Motelx trouxe propostas variadíssimas, com destaque para a reaproximação pai/filho em contexto pandémico do brasileiro Estranho Caminho, de Guto Parente. Vimos ainda o blend sci-fi/terror de Hostile Dimensions, o bucolismo do drama misterioso entre mãe e filha do austríaco Smother e para a sessão da meia-noite optámos por Vincent Must Die, o louco filme francês em que subitamente um homem vulgar se vê atacado por qualquer pessoa de forma aleatória. Eis o que pensámos:

Estranho Caminho (2023), Guto Parente

O mais recente filme de Guto Parente extrai os ingredientes de género das circunstâncias pandémicas e, fundamentalmente, do terror provocado pelas infrutíferas tentativas de aproximação entre um filho e um pai que vivem um relacionamento distante. David (Lucas Limeira) é um realizador de cinema experimental brasileiro radicado em Portugal, que vai ao Brasil apresentar o seu novo filme a um festival de cinema. Se o regresso às suas raízes poderia antever momentos de felicidade e reencontro, rapidamente percebemos que se verifica o contrário, uma espiral de acontecimentos progressivamente devastadores para o protagonista. Guto Parente conjuga em Estranho Caminho uma inventividade formal assinalável com o melodrama familiar, fazendo-se valer na montagem de elementos experimentais e de sobreposições de imagens, algo cada vez mais raro de encontrar no cinema narrativo filmado em digital. O volte-face final, como nos filmes de M. Night Shyamalan, não soa como um truque, ampliando e densificando o terror vivido pelo protagonista, mas, simultaneamente, garantindo-lhe a merecida catarse e paz de espírito.  

Bruno Victorino

 

Hostile Dimensions (2023), Graham Hugues

O filme de Graham Hughes apresenta-se no formato mockumentary/found footage, com webcams, telemóveis e câmaras de filmar, que segue duas realizadoras à procura de uma artista que desapareceu ao atravessar uma porta misteriosa para outra dimensão. A premissa do filme é interessante, movendo-se no sci-fi/mistério com apontamentos de horror, lembrando Triangle ou Coherence, e enquanto se mantém na inocência da sua primeira metade Hostile Dimensions funciona realmente bem. Infelizmente, à medida que o filme se torna mais ambicioso e aumenta o seu escopo é difícil ignorar a aura amadora entusiasta que o rodeia, ficando bem claro que Hughes é um realizador que ama e quer fazer cinema de género.

David Bernardino

Smother (Heimsuchung) (2023), Achmed Abdel-Salam

 

As trevas e o obscurantismo não terão de ser sempre representativos do terror. Por vezes, é na claridade e na sobriedade (ou falta dela) que reside o maior medo. Principalmente quando a realidade é clara e o confronto com a dor é mais visível e temeroso. Nesta obra repleta de hematomas físicos e psicológicos, sonambulismo e campos de girassóis, Achmed Abdel-Salam entrega-nos uma dissertação sobre o trauma e a memória numa continuidade desmedida de transmissão do passado fantasmagórico de uma mãe para uma filha, por meio de muita tormenta e tantas outras formas hostis. Breve nota para a abordagem exemplar de temas como o alcoolismo, o comportamento paranóico, a restauração do vínculo maternal e o consequente perdão. A cinematografia é eloquente mas dócil, contrastando com o pesaroso e amargurado enredo, fortemente marcados pela presença de Cornelia Ivacan e Lola Herbst.

Rita Cadima de Oliveira

 

Em competição para melhor longa de terror europeia, vindo da Áustria, Smother foi uma boa surpresa. Uma mãe em reabilitação de alcoolismo decide passar uma temporada com a sua filha na casa do falecido pai, no campo, onde ainda vive o trauma da sua falecida progenitora. O cenário é pastoril, as interpretações acima da média e a narrativa apresenta-se em formato slow burn, como se quer, desenvolvendo o mistério dramático da relação mãe/filha em busca de um desenlace, que existe sim, mas sabe a pouco. Smother precisava de mais ambição, de mais garra, de um clímax mais épico, acabando por se manter sempre liso, com um ou outro momento de apogeu narrativo que acompanham um drama acima da média.

David Bernardino

Vincent Must Die (2023), Stéphan Castang

 

Vincent Must Die é um thriller de elevada violência física, um drama que aborda o apocalipse civilizacional, não no aspecto destrutivo do mundo físico mas sim o dos humanos. Esta obra desenrola-se como metáfora para a insegurança, a desconfiança e o ataque gratuito, características e sensações que identificam e representam uma elevada fatia da sociedade actual. Vincent é um homem banal, arquitecto regular, sem grande aura e carisma, que é espancado por dois colegas de trabalho. A justificação para o acto bárbaro fica inicialmente no ar mas rapidamente se percebe que o novo vírus pandémico não atinge o quadro clínico dos humanos mas sim a vertente mental e psicológica, por meio de ataques físicos e desumanos. Vincent começa então uma fuga desesperada de forma a extinguir qualquer confronto com a brutalidade dos seus semelhantes pois é através da troca de olhares que a violência se instala. O filme tem um compasso acelerado e a abordagem ao tema é quase sempre feita de forma humorística e hilariante, podendo arrasar pessoas mais sensíveis.

Rita Cadima de Oliveira

Este misto de comédia negra e pandemia pós-apocalíptica francesa acompanha um sujeito comum que subitamente começa a ser atacado por pessoas de forma aleatória para onde quer que vá. A originalidade ninguém lhe tira (coincidentemente existe algo de Beau is Afraid nesta insanidade) e a interpretação de Karim Leklou relembra o comum “vizinho” que todos temos que de repente vê o Mundo virado contra si. A comédia negra e a violência algo extrema fazem deste Vincent Must Die uma clara proposta de cinema género incomum, oferecendo ao espectador um misto de sensações, do riso ao nojo, da raiva à compaixão, que irá sem dúvida encontrar o seu nicho e, quiçá, tornar-se filme de culto.

David Bernardino

 

Curtas ao Almoço #01: SectionX

A SectionX do MOTELX promete tirar a barriga de misérias a todos os que procuram experiências visuais mais experimentais e underground. Entusiasmados, visitámo-la para um festim de quatro curtas ao almoço.

Drizzle in Johnson, curta de animação canadiana de Ivan Li, foi a primeira e a mais surpreendente. Um fever dream psicadélico, tão aterrador quanto divertido, que recorre a diversos modos de animação para comentar, com raiva incontida, a desumanização do trabalho e a alienação social, por meio de body horror, estados alterados de consciência, sexo e violência. David Cronenberg (em ácidos) seja louvado!

Seguiu-se Morilddo norueguês Fredrik S. Hana. Um híbrido entre curta-metragem e videoclip, com uma vaga narrativa de busca por um livro místico, de poderes inimagináveis e perigosos. A estética lo-fi, associada ao imaginário de gothic horror e folk nórdico é eficaz a construir uma ambiência invernal e pesada, mas o metal da banda Kvelertak (algo deslocado do próprio videoclip) e a necessidade de aglutinar uma variedade desconexa de elementos visuais tornaram a experiência algo cansativa.

Para contrastar com o excesso visual, veio a curta do Reino Unido, South Florida Skyde Laila Majid e Louis Blue Newby. Numa primeira instância, mostra-nos o herói de BD Swamp Thing, em plano fixo, sentado na natureza, com um poema declamado em voice-over. De seguida, desconstrói a sua imagem e funde-a com elementos de fauna e flora do pântano, num exercício de edição longo e repetitivo, mas estranhamente hipnótico e aprazível. A banda sonora, um drone suave, é uma parte crucial desta experiência contemplativa.

A mais desafiante das curtas chegou no fim. Noisetrain, uma parceria belga e islandesa, encabeçada por Pol De Plecker, é um gélido teste à paciência do espectador. Dois passageiros de um comboio parado na neve saem para o deserto branco, para ir buscar (?) um terceiro passageiro que fugiu (?). O comboio arranca e assim começa a (excruciantemente lenta) viagem dos três homens pela paisagem inclemente. Uma viagem sem esperança, sem destino, sem sentido, sem fim. Se não houver significado, qualquer significado é possível, certo?

Gil Gonçalves