Especial LEFFEST 2024 Dias #8, 9 e 10 – Volveréis, The Dead Don’t Hurt, My Favourite Cake, Os Enforcados, C’est pas moi

EquipaNovembro 18, 2024

Chegou ao fim, este domingo, mais uma edição do LEFFEST. Foram mais de 140 filmes, repartidos por 16 secções, com o ecletismo e qualidade a que, entre novidades e retrospetivas, este festival já nos habituou. As escolhas da Tribuna para os três últimos dias do festival recaíram sobre a Seleção Oficial, Em ou Fora de Competição, sendo 3 delas – C’est pas moi, Volveréis e The Dead Don’t Hurt – obras de realizadores convidados desta edição. Às novas propostas de Leos Carax, Jonás Trueba e Viggo Mortensen, juntámos My Favourite Cake, dos iranianos Behtash Sanaeeha e Maryam Moghaddam, e Os Enforcados, do brasileiro Fernando Coimbra. Fecha-se assim a participação da Tribuna do Cinema, com a certeza de um regresso na próxima edição.

 

Volveréis de Jonás Trueba – Selecção Oficial, Fora de Competição

Um casal madrileno de classe média e média idade – Al e Alex – decide colocar termo à relação de 14 anos assinalando a efeméride através de uma festa. O realizador Jonás Trueba faz-se valer das potencialidades narrativas deste ponto de partida para experimentar uma série de variações dramáticas proporcionadas pelas diferentes reações dos familiares e amigos à intrigante notícia, sendo que a densidade dos personagens é construída pelo acumular de repetições que as circunstâncias vão propiciando (Hong Sang-soo é inspiração clara). Al encontra-se a montar um filme realizado por si durante o desenrolar da história de Volveréis e a fronteira entre a ficção dentro da ficção e o próprio filme vai-se progressivamente esbatendo. Esta dimensão meta da narrativa garante alguns dos momentos mais marcantes de Volveréis, ainda que resvale por vezes em algum excesso de auto-reflexão. Através de uma abordagem rohmeriana, Trueba explora as nuances e tensões do casal, fazendo um uso prodigioso da encenação do dia-a-dia no apartamento onde ainda vivem e onde decorre grande parte da ação. Volveréis é um filme leve e divertido, atento aos pequenos detalhes do quotidiano, que traça um sensível retrato das capacidades de reinvenção do amor por intermédio da repetição.

Bruno Victorino

 

The Dead Don’t Hurt de Viggo Mortensen – Selecção Oficial, Fora de Competição

Neste regresso de Viggo Mortensen à realização depois de Falling, as intenções continuam as melhores, mas a execução nem tanto. Em conversa com Mortensen o realizador confirmou que o próprio foi a quinta escolha para interpretar o protagonista depois de uma série de peripécias, obrigando a narrativa a adaptar-se a um homem mais velho e o seu relacionamento com uma imigrante francesa no faroeste americano. Talvez pelo duplo papel de protagonista e realizador, a química entre Vicki Krieps e Viggo Mortensen parece ter sido a principal vítima. Enquanto um se distrai com a mise en scéne, a actriz teima em não sair do seu “boneco”, vindo a revelar-se, apesar de carismática, uma actriz de pouco alcance. O filme parece partir da ideia desta personagem feminina, mulher forte e determinada, feminista se o quisermos, construindo-se o filme a partir daí. É um western, mas podia não ser. É uma história de vingança, mas podia não ser. A estrutura não cronológica da narrativa também parece meramente decorativa, e o clímax será muito mais anti-climático do que estóico. É uma pena porque Viggo Mortensen consegue capturar belas imagens e trabalhar temáticas interessantes (ainda que muito superficialmente), mas o agora realizador tem muita dificuldade em encontrar o ritmo e ímpeto emocional que conseguiu em Falling junto de algum público.

David Bernardino

 

My Favourite Cake de Behtash Sanaeeha e Maryam Moghaddam – Selecção Oficial, Em Competição

Os realizadores iranianos Behtash Sanaeeha e Maryam Moghaddam elaboram a quatro mãos uma obra trágica, realizando com coragem e audácia um romance como statement político. Aquilo que o decora é a beleza da antiga Pérsia, atenuando o lado negro que actualmente a caracteriza. Aqui a revolução não é pública nem se faz nas ruas, mas sim na privacidade do lar, restringindo-se às suas quatro paredes. Behtash e Maryam desafiam a norma e questionam a autoridade por meio de diversas provocações, mas sobretudo quando quebram a rotina solitária de Mahin (Lili Farhadpour), encorajando a septuagenária a revitalizar a sua vida amorosa com o divorciado Faramarz (Esmaeel Mehrabi). Recorrendo ao uso e abuso do encanto das flores, da fruta, da música e do amor, este filme tenta ser um jardim bonito que é regado como eufemismo para um estado social feio. O interior da casa de Mahin é dilacerado pela solidão penosa da viuvez mas sobretudo por ter experienciado as duas fases do Irão: antes e depois da revolução islâmica. Mahim recusa o regime islâmico, nunca se rendendo a imposições na sociabilização mas é obrigada a adequar-se às regras do vestuário, abdicando dos decotes ousados para o hijab e a trocar os saltos altos pelos sapatos rasos. É na memória que o seu espírito jovem de outrora reside e é na resistência às restrições, mas também na adaptação às mesmas, que vai sentindo um senso de sobrevivência. Os desempenhos de Lili Farhadpour e Esmaeel Mehrabi são fortes apesar de nem sempre credíveis. Embora o desenvolvimento da sua relação pareça um pouco forçado e repentino, é precisamente na solidão que Mahin sente na sua velhice e na necessidade e desejo de companhia que este romance contribui para uma narrativa dramática mas não necessariamente para a sua eficácia em termos de crítica social. O resto do filme é composto por adições desnecessárias que acabam por prejudicá-lo, nomeadamente na inclusão de questões político-sociais adaptadas a uma aparente agenda dos Festivais. O cinema deverá ser sempre um manifesto mas não pode criar apressadamente um argumento para favorecer ou engrandecer um comentário político e excessivamente verbal. Para que a sua essência não se desvirtue, a mensagem deve elevar as preocupações humanas a uma narrativa espontânea e não coagida. O acto mais político dos realizadores acaba por ser a decisão de criar um filme sem aderir aos constrangimentos do regime, fazendo opções ousadas e que resultam numa cena interior profundamente humana e comovente.

Rita Cadima de Oliveira

 

Os Enforcados de Fernando Coimbra – Selecção Oficial, Fora de Competição

Os Enforcados é, segundo Fernando Coimbra, um filme que procura lançar um olhar ao outro lado do fenómeno da criminalidade no Brasil urbano, do ponto de vista dos perpetradores endinheirados por oposição àqueles que “não têm escolha”. O filme conta a história de um casal atirado para a gestão e colecta do jogo do bicho depois da morte de um dos mandantes. A decisão de centrar a personagem de Regina, a mulher por detrás de Valério, o herdeiro natural, convoca essa ideia de colectar um pensamento de alta sociedade no mundo do crime. Regina é manipulativa e paranóica, mas sobretudo vápida e fútil, procurando no tarot a sua visão de futuro na ambição de casal. A sua influência é de tal forma Macbethiana que Valério embarca numa espiral de violência e procura de controlo, transformando-o de forma inexplicável de um homem indeciso e satisfeito numa máquina de paranóia e derramamento de sangue. Embora o rocambolesco da trama faça a referência do tropo de casal criminoso em fuga, Os Enforcados parece sempre mais próximo da auto-paródia do que de um pretenso piscar de olho ao espectador pelo absurdo das ocorrências (é disso exemplo a cena de violência sexual, e a forma como esta é depois tratada, que dá lugar no crescendo das desconfianças aqui). Cedo o argumento coloca o foco no triângulo de Regina, Valério e o seu fiel ajudante Jobson, e trivializa um final necessariamente sangrento entre todos que embrulha tudo tão moralmente correcto como implausível no desenvolvimento das personagens. Por outro lado, esta ideia de reforçar o entendimento do mundo do crime urbano no Brasil enquanto domínio de uma elite endinheirada também cai por terra ao nunca sequer aludir ao impacto das acções dos envolvidos no mundo real. Os Enforcados acaba por se tornar muito mais num thriller estereotipado, sem rasgo nem ideia diferenciadora de fundo.

Hugo Dinis

 

C’est pas moi de Leos Carax – Selecção Oficial, Fora de Competição

Imperdoavelmente derivativo de Godard. Carax continua o mesmo adolescente de sempre e, como qualquer adolescente, terrivelmente concentrado sobre si próprio. O delito de parler de soi é aqui desmesuradamente infringido, num filme que se orienta, afinal, sobre um umbigo bem menos profundo do que o de JLG/JLG Autoportrait de décembre (Godard, 1994). Apesar da manifesta ambição de um objecto que se imaginou essencialmente críptico, muitas das imagens que o filme trabalha serão, simplesmente, demasiado literais – não exactamente uma fragilidade “nova” para Carax -, e a lição de história/cinema (Histoire(s) du Cinéma… la la la) que se propõe não é nem particularmente perspicaz nem formalmente audaciosa. Ainda assim, o pecado fundamental deste C’est pas moi (que nasceu de uma encomenda do Centre Pompidou para a já longa colecção Où en êtes-vous ?) será mesmo a descarada repetição que executa do trabalho em vídeo de Godard, um… plágio (?) que atinge níveis quase caricaturais (o filme abre ao som do grito de uma arara, imagine-se). No entanto, dois ou três momentos especiais justificam plenamente o exercício : o concerto da filha de Carax sobre a tempestade, ou a guerra vista “pela janela” do quarto. Mas sobretudo o finalíssimo, pós-genérico, que, ao nos devolver três cenas precisas da filmografia de Carax em sobreposição (Mauvais Sang + Holy Motors + Annette), surpreende, diverte, e nos relembra o valor que o seu cinema pode(ria) ainda ter.

Miguel Allen

 

Em C’est Pas Moi, Carax pergunta: Antes, quando maquinistas empurravam uma câmara pesada por carris a seguir um homem, parecia o olhar de um deus. Agora, quando um rapaz segue a sua namorada e a filma com o telemóvel, isto não acontece. Certíssimo. Como podemos recuperar o olhar divino? A questão é muito acertada e muito justa, e a resposta é evidentemente que não podemos. Carax sabe bem isto, nós sabemos isto, há já alguns anos. Para quem ainda não o fez, o luto pela imagem em movimento é uma parte indispensável para uma compreensão do cinema neste momento do terceiro milénio: é preciso aceitar que algumas coisas acabaram e que não vão voltar. Hoje, a imagem filmada é mais como aquilo que a filha de seis ou sete anos de Carax se queixa enquanto passeia com o pai em Paris: “Ele, ele estava atrás de mim, o tubarão! O tubarão estava atrás de mim, e tu não fizeste nada papá!”, descrevendo-lhe um sonho.

Mais que tocante, é de uma lucidez profunda que o filme termine com a voz sem corpo de David Bowie trazida de Lazarus, com a música digitalmente retirada, uma a capella do cemitério – a morte de Bowie foi com efeito um fim, marcou mesmo um antes e um depois de uma transição inelutável para algo ligeiramente pior do que aquilo que vivêramos até então, e que nunca viria a melhorar. É preciso ser perentório neste aspecto: esta talvez não seja a geração que verá a extinção da raça humana (ou talvez seja, e então mais se encurta esta história) – mas é a geração que verá, e já viu, o acelerado fim da imagem como sempre a entendemos, e numa escala maior a reestruturação severa dos paradigmas de comunicação que decorriam na vida de pessoas da idade de Carax, pessoas como nós, há alguns poucos anos. Caro leitor, tente recordar-se: quando Bowie lança Blackstar e morre em Janeiro de 2016, vivíamos precisamente o momento da década onde se tornava claro para nós que os anos 10 não trariam novas coisas, como talvez acontecera até aí, mas sim a consolidação de um progressivo colapso de tudo, na verdade o fim permanente de um futuro, a instauração do eterno agora onde desde aí habitamos. Foi precisamente aí, Janeiro: com o naufrágio do Costa Concordia quatro anos antes já pressentíamos que não vinha aí nada de bom, em 2015 estreava em Portugal Adieu au Langage, tudo isto Janeiros, Janeiro, o mês de novos começos, em que o testamento de Bowie nos deixou um aviso: tudo nos será retirado. E não foi assim? Mais uma vez, tente relembrar-se, leitora ou leitor, do verão de 2015, o último antes deste momento, o último com Bowie vivo. Eu tinha dezoito anos, e recordo-me bem de um verão pungente e presente, o último (em Março de 2016 o Instagram mudou a ordem cronológica do feed para uma primeira ordem algorítmica, e em Agosto lançou a função das stories, caso se continue a duvidar da significância desse ano), em estabelecimento com as iterações psicológicas finais da adolescência, fundadoras, ainda clementes, o prelúdio das sucessivas actualizações brutais que formam enfim a vida adulta. A vida adulta, claro, teria ainda Bowie, e levei isso a sério. Aos vinte e um dormia num quarto no Intendente com uma revista com o rosto de Bowie algures no soalho, e cirandava pelos arquivos da Cinemateca a ouvir If I’m Dreaming My Life, ou All the Madmen, ou 5:15 The Angels Have Gone, ou Candidate/Sweet Thing, ou The Hearts Filthy Lesson, ou Neighborhood Threat ou China Girl, Criminal World ou Modern Love (como Annette na passadeira, a correr depois dos créditos), Speed of Life, TVC15, The Secret Life of Arabia ou Drive-In Saturday.

E Carax, sentado no palco do Nimas, diz que no filme há a noção de uma gratidão para com o cinema (os subjectivos de Hitchcock…) e para com “vozes que o acompanham pela vida”. Porém, diz-nos, esta sensação de nostalgia não é algo de que goste muito. Prefere estar zangado ou furioso. Na cena de Holy Motors (2012) onde Oscar recebe a visita de um supervisor na limousine, o mais velho critica-o: “Essa nostalgia é um pouco sentimental, não?”, cortamos para um plano da viatura a conduzir à noite, penso que exactamente o plano que é usado em C’est pas moi. Preparava-me para o perguntar a Carax, numa entrevista que não chegou a ser possível concretizar. Sobre a zanga e a fúria, apontei em notas as suas palavras: “hopefully it propels me”. O filme, feito em casa com os seus cães e a sua filha, é sobre a sua “entrada no século XXI” a partir do século XX: é uma dor difícil de completar, e por isso eterno work in progress, as três palavras que abrem a média-metragem. Passa revista aos seus pares, os seus rostos a aparecerem no ecrã junto ao Sena. Este fez isto, este fez aquilo. Coppola, Polanski. Ainda estão vivos, uma circunstância que não dure talvez muito mais tempo, parece dizer-nos o subtexto de uma voz de Carax rouca e afectada, cheia de tosse, como em Le Livre d’Image de Godard, com imagens de refugiados saturadas e líquidas, levadas ao limite, como nas Primaveras Árabes dos ensaios de Godard – C’est pas moi um filme provavelmente muito assombrado, diz-nos Carax, feito já com o conhecimento da “programação” da morte de Godard em Rolle. O Q&A é difícil: perante um embate de questões de incompreensão, Carax chega até a citar Une Saison en Enfer quando alguém lhe pergunta o que quis dizer com dado momento: está lá, e não é possível explicar mais.

Rafael Fonseca