A jornada da Tribuna do Cinema no LEFFEST ’24 segue forte, procurando abarcar as diversas secções do Festival, usufruir da variedade temática da sua programação e, claro, dar conta de tudo ao leitor. Eis o que vimos nos dias 3, 4 e 5 do festival.
Emilia Pérez de Jacques Audiard – Selecção Oficial, Fora de Competição
A confiança e ousadia com que Emilia Pérez é executado não corresponde à forma desequilibrada como é recebido. Emilia Pérez tenta ser tudo, em todo o lado, ao mesmo tempo. Insere-se e afirma-se em demasiados géneros e subgéneros: do musical ao videoclip; do thriller ao crime; do drama à telenovela. As personagens baseiam-se em arquétipos semiconstruídos numa constante sedução e erotismo, que acredita servirem para manter o espectador envolvido, mas apenas o traumatiza. Jacques Audiard recorre de forma forçada a uma certa simbologia, querendo aparentar que domina as causas das bandeiras que faz esvoaçar, acabando por tornar Emilia Pérez num filme desagradável tanto em termos estéticos como temáticos. O realizador acusa alguma cobardia e desdenho no tom reaccionário que pretende ter sob o pretexto de audácia, mas acaba por se tornar incoerente. Os números musicais são completamente deslocados, as coreografias desproporcionadas, mas é sobretudo nas más interpretações das personagens que tem o seu calcanhar de Aquiles. A montagem é tão irregular que torna as imperfeições ainda mais evidentes, mais concretamente na forma como é prejudicado pela iluminação berrante e no mau uso da cor. A crueldade do filme, a sua cobardia e desdenho revelam alguma perversidade no argumento, nada tendo de humano ou empático, mesmo que haja uma falsa tentativa de o ser. A par disto, a teima num foco reacionário acaba por tornar Emilia Pérez num filme sem identidade, com pouca eficácia no argumento e incompetente em quase todas as suas vertentes.
Rita Cadima de Oliveira
Por onde começar com este Emilia Pérez, um híbrido musical com drama de narcotráfico mexicano e identidade de género, que parece querer chegar a todo o lado? Inicialmente parecemos estar perante um thriller criminal, adepto dos temas sociais quentes do nosso tempo, mas Emilia Pérez rapidamente mostra ao que vai: Zoë Saldaña, advogada que vive na sombra do seu chefe por razões de género e raça, canta e dança suspirando por dias melhores. Os dias melhores chegam na forma de um barão de um dos maiores cartéis de droga do México, que pretende mudar de sexo. Jacques Audiard aplica uma execução sofrível à sua mirabolante narrativa, que mais parece um desfilar de estereótipos insuflados e invertidos do que algum resquício de estudo de personagem, ou melhor, a famosa “desconstrução”, que o filme julga ter. Os seus momentos musicais são absolutamente sofríveis, pouco inspirados, forçados, monocórdicos, a roçar a vergonha alheia e a procurar uma provocação emocional baratucha, ao estilo da telenovela mexicana. Por baixo desse tiro ao lado que foi enxertar um musical neste papier mâché de géneros, até parece existir uma ideia de filme minimamente interessante, mas tudo é tão executado pela rama, em busca da mais elementar superficialidade moral (o assassino impiedoso, barão da droga, renasce como mulher e ganha, de repente, noção de moralidade, redenção e acção social?!) que fica complicado encontrar posição na cadeira para nos encolhermos. E o que dizer das interpretações? Selena Gomez é indescritivelmente má, fingindo-se de mexicana sem conseguir incorporar qualquer emoção de forma minimamente credível. Zoë Saldaña torna-se na figurante cantora que embarca na farsa, e Karla Gascón limita-se a encabeçar o estereótipo de ambas as suas personagens. Emilia Pérez é dolorosamente mau, uma piada de mau gosto, uma acrobacia. Não será certamente um filme.
David Bernardino
La Prisonnière de Bordeaux de Patricia Mazuy – Selecção Oficial, Fora de Competição
La Prisionnière de Bordeaux é o filme mais recente de Patricia Mazuy, cineasta desconhecida para mim até este festival, que lhe dedicou uma poderosa e recompensante retrospectiva. Este estreará em Portugal pela mão da Leopardo no início do ano; Bowling Saturn, o penúltimo, sairá em algumas salas portuguesas no próximo dia 21, pela distribuidora The Stone and The Plot.
La Prisionnière é um filme de colisão, uma colisão suave e perfumada, mas de facto um encontro imprevisto entre o “realismo social” e o melodrama: um filme que acompanha duas mulheres, esposas de prisioneiros, que travam uma amizade no centro de visitas da prisão e abre com shots do tecto espelhado de uma florista, à medida que Isabelle Huppert escolhe rosas ao som de uma balada indie pop – este é um filme interessado em ângulos além do frio e metálico retrato social, na verdade que procura logo rejeitar essa redução a um filme-tipo. Nas palavra de Mazuy, é também como “um conto”, e os elementos de uma espécie de fábula, princesa-rica-princesa-pobre (a personagem de Hafsia Herzi muda-se de um bairro social para a mansão – quase um castelo – da personagem de Huppert) entrelaçam a moldura de uma narrativa doce e em potência optimista, ainda assim nunca condescendente, um equilíbrio possível apenas pela grande profundidade psicológica e ética das suas personagens.
Huppert (Alma) tem o seu marido, um cirurgião, na prisão há algum tempo, com mais seis anos pela frente. Herzi (Mina) foi cúmplice de um assalto que levou o seu esposo à cadeia, ambos e ambas “prisioneiras” do mesmo estabelecimento em Bordeaux. Mina vem de muito longe, e falha uma visita no dia em que Alma, que mora perto, sozinha num casarão, decide a inusitada “acção moral” de a convidar para um almoço, depois se quiser para ficar, e enfim que traga as crianças também. Aquilo que poderia ser uma comédia de roommates tem sempre um céu nublado de augúrio por cima: não se começa simplesmente a viver com uma desconhecida, e as coisas podem correr mal tanto para uma como para outra. O filme é óptimo: Mazuy não falha, e voltaremos em profundidade aos seus filmes na nossa retrospectiva; um argumento e uma realização inteligentíssimos sempre, uma montagem aguçada, um filme também de grandes actrizes.
Rafael Fonseca
Rendez-vous avec Pol Pot de Rithy Panh – Selecção Oficial, Em Competição
Em 1978, três jornalistas franceses são convidados, pelo recém-instaurado governo do Camboja, a visitar o país e a entrevistar o seu líder, Pol Pot. O objetivo do convite é evidente: testemunhar esta nova utopia e, claro, difundir a sua existência em França. Não são precisos muitos dias para que a ilusão se desvaneça e revele uma realidade verdadeiramente opressiva. Um filme sobre o confronto entre a propaganda dos regimes ditatoriais e o papel fundamental do jornalismo. Um thriller político que encontra um bom equilíbrio entre a obra de autor e o filme comercial. Rithy Panh mistura ficção, imagens de arquivo, e reencenações com bonecos e miniaturas. O realizador não apressa a narrativa, garantido tempo suficiente para que os personagens – e os espectadores – tenham toda a informação que necessitam antes do titular encontro com Pol Pot. É um rendez-vous com um vilão que parece saído de um filme de James Bond. O rosto ocultado por sombras, em cada sala um animal de estimação diferente.
Pedro Barriga
Reas de Lola Arias – Descobertas
Reas, de Lola Arias, é um filme de uma clareza e nitidez de visão absolutamente assinaláveis. Nos confins de Buenos Aires, Arias apresenta-nos uma prisão em jeito de docudrama, mas muito para lá da representação da realidade de um documentário convencional. A vida na prisão de Arias é manifestada pela entrada de Yoseli, uma mulher condenada por tráfico de drogas, que logo é abordada por um conjunto de prisioneiras para que com elas possa constituir “família”. Neste contexto, Reas aporta personagens reais, cuidadosamente construídas através de pequenos gestos e diálogos, a uma estética estilizada e vivaz, apenas levantando o véu da artificialidade dos procedimentos em curtos momentos (quando Yoseli se esquece de uma deixa, ou quando Ignacio nos informa que todo o cenário prisional agora é usado para produções cinematográficas). Yoseli serve sobretudo como esponja para todas as personalidades poderosas e únicas aqui em evidência, mas também como ponto de referência para início e fim de viagem. Nela, Arias coloca uma câmara de um humanismo notável, com um ponto de vista profundamente abolicionista face ao sistema prisional argentino, mas também com um olho à oportunidade de celebrar os momentos de conexão comunitária no cárcere. A sequência final, composta pela despedida emocional de Yoseli, e sobretudo pelo olhar balnear ao futuro de cada uma das prisioneiras, é de uma candura e de um coração inapeláveis. Reas é honesto, bem-humorado, fica no ouvido e merece repetição.
Hugo Dinis
Reas é a intersecção magistral que separa o real do fictício. Filmada numa prisão Argentina, esta ficção musical apresenta-nos a vida prisional de uma Buenos Aires real e imaginária, de mente aberta, na qual convivem mulheres dóceis e brutas, cis e trans, queer e hetero, loiras e morenas, magras e gordas, mas sobretudo reclusas de longa data e recém-admitidas, todas elas maquilhadas, com traumas e pujantes bagagens emocionais. Estas mulheres e Nacho cantam, dançam, encenam, reencenam e actuam, num musical híbrido que tem tanto de rude como de charmoso. Reas, sem ser um filme pretensioso, vai pretendendo empoderar o colectivo apesar de, por vezes, apenas contribuir para trazer à tona a decadência e o miserabilismo da clausura. É um filme sobre a performance da autenticidade e da penitência mesmo que, de vez em quando, se denote na realizadora Lola Arias algum amadorismo técnico. Os melhores objectos de estudo de Reas são a sua profundidade física e a sua densidade emocional, que se anexam à reflexão e reabilitação comportamental das reclusas e que parecem ser expostas numa bonita instalação artística no pátio desta prisão, nos seus espaços comuns e nas celas cujas paredes estão em desfalque de tinta mas não de amor e música.
Rita Cadima de Oliveira
Oh Canada de Paul Schrader – Selecção Oficial, Fora de Competição
Talvez não seja propriamente surpreendente que um homem que esteve anos a dormir com uma arma carregada debaixo da almofada, cujo pai o obrigava a chegar à igreja uma hora antes da missa, para não perder o lugar, e cuja obsessão pela morte e pela penitência se tem vindo a tornar evidente, ao longo de uma extensa e brilhante obra cinematográfica, venha agora, nas suas derradeiras horas, lançar um filme explicitamente obcecado pela penitência na face da morte. Para Paul Schrader, Oh Canada levanta a noção de uma consciência atormentada pelo passado e pelo julgamento inerente à morte. “When you have no future, all you have left is your past”, diz Leonard Fife, um Richard Gere atormentado pela agonia do cancro terminal. Na convivência com a morte, a instrospecção consciente de Schrader não lhe revela um cineasta brilhante e um homem corajoso, como aparentemente Leonard Fife é universalmente reconhecido. Schrader vê antes um homem fraudulento, escondido atrás das mentiras e das traições pessoais, em penitência não só perante a própria mulher, mas sobretudo perante o julgamento final e divino. O contraste entre a docilidade formal, uma banda sonora delicodoce de Phosphorescent, a memória representada por imagens a preto e branco, e a granulado, e a violência autofágica de Fife, no seu leito de morte, a sujeitar-se a si e aos que rodeiam ao seu impiedoso exame de consciência faz de Oh Canada um filme dolorosamente pessoal, a espaços difícil de assistir, e um exercício rigoroso e implacável.
Hugo Dinis
Oh, Canada é provavelmente o filme mais essencial de Paul Schrader. Richard Gere interpreta um realizador de documentários de cariz social que, numa entrevista, percorre alguns dos segredos da sua vida. Formalmente o filme de Schrader é um absoluto deleite. As cores, a montagem, os olhares, as metáforas, as justaposições e fusões de personagem (e imagem da personagem), a fusão das memórias com a realidade, os devaneios… tudo é executado ao milímetro por um realizador em ponto de rebuçado (78 anos), como se de um artesão se tratasse. Já narrativamente não se pode dizer o mesmo. A vida do protagonista, os seus segredos e dinâmicas interpessoais, não são matéria suficientemente… interessante para carregar o filme, mas antes servem como suporte para a verdadeira estrela que é precisamente a execução. Ausente de catarse e repleto de estoicismo, Oh, Canada estará talvez condenado a ser um filme menor na filmografia do realizador no que toca a popularidade, mas irá certamente encontrar um nicho de apreciadores no espectador mais interessado nos pequenos subterfúgios da linguagem cinematográfica. Burro velho não aprende línguas. Mas às vezes também não precisa…
David Bernardino
Paul Schrader nunca nos pareceu tão vulnerável e sensível (e ao mesmo tempo tão indisciplinado e incoerente), ao ponto de fazer uma ficção sobre a desmistificação de uma figura mitológica. Oh, Canada é um breve comentário que exala reflexão sobre temas como a arte, a memória, o arrependimento e a mortalidade. Nos seus breves 95 minutos de duração, a narrativa é prejudicada pela sua forma cruzada, não cronológica e insuficientemente explorada. Richard Gere é Leonard Fife no seu leito de morte. Jacob Elordi interpreta a versão mais jovem desta personagem, saltando de uma relação para a seguinte, perdendo-se pelos vários caminhos erróneos que toma, o que provoca a diminuição do impacto emocional e temático no espectador. Apesar dos bons desempenhos de Richard Gere e de Jacob Elordi, o último filme de Paul Schrader pedia mais tempo, mais detalhe, um guião mais completo e uma narrativa mais elaborada. Oh, Canada não é mais do que uma tranquila e pacífica meditação sobre a vida, a morte e as fronteiras emocionais e físicas que transpomos. No fundo, o filme é tão calmo que se chega a questionar se estará mesmo a tentar dizer alguma coisa.
Rita Cadima de Oliveira