Os dramas de cariz familiar e social foram o foco dos visionamentos da nossa equipa, no sétimo dia do LEFFEST ’24. Da Índia ao Japão e da Itália à Roménia, todos os filmes a que assistimos colocam indivíduos em diálogo com as estruturas em que estão inseridos, partindo das especificidades culturais de cada país para refletir a universalidade da condição humana. Com nenhuma classificação negativa, este terá sido porventura o dia mais satisfatório para os membros da Tribuna do Cinema. As críticas a All We Imagine as Light (por Pedro Barriga e Miguel Allen), Vermiglio (por Rita Cadima Oliveira), Super Happy Forever e The New Year That Never Came (ambas por Hugo Dinis) são o atestado dessa satisfação.
All We Imagine as Light de Payal Kapadia – Selecção Oficial, Fora de Competição
O tão aguardado regresso da Índia ao Festival de Cannes, ocorrido em Maio deste ano. All We Imagine as Light é a estreia de Payal Kapadia na ficção, um filme delicado, claramente influenciado pelas suas origens no género documental. Segue a vida quotidiana de três mulheres que trabalham como enfermeiras num hospital de Mumbai. Anu, uma mulher hindu que namora em segredo com um homem muçulmano. Prabha, uma mulher casada cujo marido trabalha no estrangeiro há vários anos. E Parvathy, uma viúva na iminência de ser despejada de casa. Mumbai é como que a quarta personagem do filme, uma cidade caótica através da qual estas mulheres se deslocam – seja de comboio, metro, autocarro ou a pé. Um lugar em constante movimento que funciona como representante da atual sociedade indiana, que insiste em colocar obstáculos nos caminhos destas três mulheres. Desempenhos meigos e subtis e imagens belíssimas aliam-se para formar um filme verdadeiramente tocante.
Pedro Barriga
A Grande Cidade, amor e anseio por Mumbai. Seguindo as notas errantes de Emahoy Tsegué-Maryam Guèbrou, um filme de grande afecto pelas suas três mulheres (três tempos da mulher indiana), contado através dos olhos tristes de Prabha (Kani Kusruti). Três histórias de ausência, e o retrato sentimental de uma cidade e das suas gentes. Tudo no filme nos parece intrinsecamente ligado aos espaços urbanos daquela ampla megalópole, chuvosos, densos e sobrecarregados, de cerne fragmentário. Mas é com inteligência e sensibilidade, que Kapadia adapta, no terceiro acto, o discurso do filme a uma nova paisagem. O desenlace anuncia-se mais esparso, mais vagaroso, desenhado a partir das ondas de um mar insondável. E uma redenção será afinal possível pelo “regresso” daquele corpo estranho, masculino, que nos chega, perdido, de outros lugares, de outros dias. Se o filme segue talvez uma estrutura algo ancorada na sua narrativa, o valor das suas histórias, o encanto das suas imagens, ou o gosto dos seus sons, não deixam de nos comover.
Miguel Allen
Vermiglio de Maura Delpero – Selecção Oficial, Em Competição
Maura Delpero revela uma grande sensibilidade e subtileza na sua segunda longa-metragem, contemplando a natureza cruel e austera do norte de Itália, neste slow burn que abarca a disrupção religiosa, a ruralidade, a perda e o luto. É num vale montanhoso que reside uma numerosa família, onde pai, mãe e oito filhos convivem diariamente com uma guerra distante mas também omnipresente. Vermiglio, a remota aldeia, vê na chegada de Pietro, um desertor, alguma lufada de ar fresco e renovação. Mas a lenta acumulação de pormenores sobre as personagens compensa realmente o ritmo lento que deliberamente é atribuído à narrativa. Os desempenhos, um pouco monótonos no início, transformam-se em retratos muito mais interessantes, pormenorizados e psicologicamente detalhados desta família tão pobre como imensa. É pelo incutir na narrativa de uma série de revelações, que esta se vai tornando emocionalmente penetrante e surpreendente. Maura Delpero aborda as questões sociais da rusticidade, as relações entre pais e filhos, a devoção e a fé, numa estrutura extremamente refinada, tanto linguística como estilisticamente, por meio de um argumento coerente e homogéneo. Ocasionalmente, o zelo no tratamento dos segredos morais faz-nos lembrar A Hidden Life, de Terrence Malick, mas também The Devil’s Bath, de Severin Fiala e Veronika Franz. No fundo, Vermiglio é um drama de compasso lento, emocional mas ricamente detalhado em segredos desta família, onde cada membro parece desempenhar uma função específica: seja a do ensino, da fé, da continuidade genealógica, do trabalho no campo e da gestão do lar. Devendo-se sublinhar a forma explícita, precisa e astuta como Maura Delpero aborda este período discriminatório e de objectificação do sexo feminino em funções laborais mais altas assim como na impossibilidade das mesmas darem continuidade aos estudos. Como bónus, Delpero decora a cinematografia com natureza, sendo bastante contemplativa na inserção da fauna e da flora, mas sobretudo na representação visual da montanha italiana que é tão deslumbrante quanto o uso da luz natural na fotografia.
Rita Cadima de Oliveira
Super Happy Forever de Kohei Igarashi – Descobertas
No que diz respeito a meditações sobre a perda dos nossos entes amados, Super Happy Forever irá certamente convidar comparações com Aftersun. A paciente e delicada terceira longa de Kohei Igarashi oferece uma envolvente balnear semelhante e um notável olho para a identidade visual construída com base em planos, cenas e composições que fundem a natureza, e em particular o mar, com a solidão e o desespero humano. Sano é um homem destruído pela dor da perda da mulher, a revisitar a estância de férias em que a conheceu na procura de todo e qualquer vestígio dela, a caminho de um longo processo de auto-destruição. Igarashi oferece primeiro a amargura do depois para mais tarde substituir pela doçura do amor de verão. A mulher em causa é Nagi, uma dócil jovem com queda para a fotografia que passa férias sozinha depois da amiga a ter deixado. A atração de Sano por Nagi é caracteristicamente desajeitada e morosa, pautada por momentos de silêncio e cumplicidade, mas Igarashi lança um olhar cuidado e apaixonado a simples caminhadas, refeições e conversas. A ligação entre ambos surge mediada pela personagem de An, uma camareira vietnamita que confessa estar no Japão apenas para ganhar dinheiro, mas que replica o Beyond The Sea, de Bobby Darin, que Sano liga instintivamente à figura da mulher falecida. A ambiguidade da figura de An é usada por Igarashi para construir algo mais do que apenas um elo de ligação, e a forma como Super Happy Forever termina é disso exemplo, conferindo à narrativa uma dimensão adicional. A história de Sano e Nagi conhece dimensões que não surgem aqui por inteiro, mas Super Happy Forever é uma meditação metódica sobre o antes e o depois de uma história de amor.
Hugo Dinis
The New Year That Never Came de Bogdan Mureşanu – Selecção Oficial, Em Competição
Tal como em Capitães de Abril, The New Year That Never Came é um filme que relata o derradeiro dia de um regime. Contudo, ao invés de colocar o foco na revolução gestante, Bogdan Mureșanu cria um retrato multifacetado do próprio regime de Nicolae Ceaușescu e do grau de decomposição a que tinha chegado. Para isso, New Year procura centrar as circunstâncias de seis personagens, desde a actriz secundária no teatro municipal que mantém uma relação com o seu encenador, à idosa ex-partidária do regime que agora vê as autoridades a planearem a demolição da sua residência, passando pelo jovem que procura atravessar o país na esperança de desertar. O propósito, para Mureșanu, não passa tanto por unir os seus destinos, mas sobretudo para dar a conhecer até que ponto estavam condicionados pela asfixia e absurdidade do regime em si. Muito embora grande parte de New Year esteja dedicada a uma contextualização aturada do quotidiano das personagens, uma fatia importante da eficácia do desfecho está no insólito das suas preocupações finais perante a queda de uma forma de vida. Para isso muito contribuem as narrativas em torno da substituição de uma actriz acabada de fugir do país num programa de exaltação a Ceaușescu no ano novo, e do desespero de um pai que procura reaver uma carta ao pai natal em que o seu filho escreveu que o seu desejo natalício passava pela morte do ditador. Todas as avenidas vão dar ao infame discurso de Ceaușescu na Praça do Palácio, pelo que o cariz crescentemente rocambolesco da trama, ao som do Bolero de Ravel, convida a esta dança de fim de tempos, magistralmente conduzida por Mureșanu.
Hugo Dinis