Ao sexto dia do LEFFEST ’24 fixámo-nos em propostas da Selecção Oficial. A expectativa maior recaía naturalmente no novo trabalho do veterano David Cronenberg – cineasta acarinhado por vários tribunos e presença assídua neste Festival (esta é a 5ª vez que se encontra entre os convidados, tendo já presidido ao júri na edição de 2017). The Shrouds foi visto por vários membros da equipa, tendo agradado tanto a Hugo Dinis como a Bruno Victorino, que deixaram os seus testemunhos. A outra proposta, de entre os filmes Fora de Competição, a que assistimos também traz caras conhecidas do grande público. Jesse Eisenberg volta à realização com A Real Pain – um dos títulos mais sonantes do ano, que promete dar que falar na award season – contracenando com Kieran Culkin, também ele a gozar de uma onde de sucesso pós-Succession. Predicados insuficientes para Rita Cadima de Oliveira e David Bernardino que, pouco convencidos, rumaram a outras paragens e a dois filmes Em Competição. Black Dog, realizado pelo prolífico chinês Guan Hu (13 filmes em 20 anos de carreira) foi a escolha de David, que se deixou encantar por este drama de redenção, e insólito road movie, focado na transformação humana de um ex-presidiário que trava amizade com um cão. Já Maldoror, 8ª longa de ficção do belga Fabrice du Welz, foi a opção de Rita, que ficou impressionada com a aspereza e pujança deste thriller sobre a história real do escândalo judicial em torno do serial killer e pedófilo Marc Dutroux. Tudo para ler neste artigo.
The Shrouds de David Cronenberg – Selecção Oficial, Fora de Competição
A representar mais uma entrada nos cineastas da sua geração a fazerem filmes mais ou menos autobiográficos (Schrader, Spielberg, Coppola, Iñárritu), Cronenberg examina a morte da mulher sob um prisma tipicamente seu. Do ponto de vista introspectivo, Cronenberg vê-se muito mais como um Schrader, atormentado por um passado sob escrutínio, do que um Spielberg, o auto-coroado eterno rapaz prodigioso. Em The Shrouds, Vincent Cassel é um “produtor de filmes industriais” cuja morte da mulher levou ao investimento num negócio de cemitérios nos quais é possível visionar os cadáveres decompostos dos entes queridos. Cronenberg coloca-se na posição de guarda de cemitério ou de defensor da cripta quando um conjunto de encapuçados profana as sepulturas, incluindo a da mulher. A forma como a investigação criminal aqui decorre assume contornos pós-modernistas ao estilo de Vineland ou Inherent Vice de Pynchon, repleto de teorias da conspiração e personagens cuja ligação à realidade é, na melhor das hipóteses, ténue, o que concede desde logo um tom necessariamente humorístico à trama. Cassel tem uma assistente virtual movida a inteligência artificial que o vai sabotando enquanto se transforma em coala, um concunhado perdido nos confins da sua própria paranóia, e uma cunhada atraída sexualmente por teorias da conspiração. A perda e o pesar de Cronenberg podem não ter curas ou soluções, e a prova disso é a derradeira cena de The Shrouds, mas, ainda que omnipresente, a dor nunca é o destino final.
Hugo Dinis
O realizador canadiano parte de uma premissa relativamente simples, e profundamente cronenberguiana, para construir uma hilariante comédia negra que lhe permite navegar pelo infindável oceano das suas obsessões existencialistas. Karsh (Vincent Cassel, claramente avatar de Cronenberg, ainda que não intencional) é o proprietário de um franchise de cemitérios ultra modernos onde é possível visualizar, através de um ecrã embutido na lápide, os vários estádios de decomposição do corpo ali sepultado. Sempre na fronteira entre a paródia à assepticidade progressiva do mundo contemporâneo (imagens digitais, múltiplos ecrãs, arquitetura, IA) e o absurdismo que a premissa do filme alavanca e as teorias da conspiração consolidam, interessa fundamentalmente a Cronenberg lidar com o luto provocado pelo desaparecimento do corpo da pessoa amada. E o sucesso de The Shrouds está precisamente na forma como o cineasta é capaz de conjugar o humor com a reflexão profunda acerca da organicidade do corpo humano, da interferência da tecnologia na mediação táctil da experiência humana, seja em vida, no sexo ou na morte.
Bruno Victorino
Black Dog de Guan Hu – Selecção Oficial, Em Competição
Filme chinês filmado nos arredores do deserto de Gobi, Black Dog parte das imensas paisagens imponentes e solitárias para focar a sua lente em Lang, um ex-recluso, outrora estrela de rock local, que regressa à sua cidade rural, procurando recomeçar a sua vida. A cidade e espaços circundantes retratam uma das grandes crises chinesas: a propagação descontrolada de cães vadios. Black Dog procura o retrato íntimo desta realidade através da ligação do protagonista a um destes cães. Lang está inevitavelmente numa fase de renascimento em que as probabilidades parecem estar todas contra si, e ao invés de procurar um caminho evidente para a sua redenção perante a comunidade, o filme de Guan Hu percorre antes a reconstrução interior do seu protagonista, através das pequenas idiossincrasias deste bizarro cenário onde os cães dominam a paisagem. Relembrando por vezes Perfect Days, de Wim Wenders, o silencioso protagonista percorre o cenário, majestosamente filmado em widescreen, num épico que oferece uma inesperada lupa sobre estes animais. A utilização ainda de animais reais (ainda que use CGI em raras cenas distintas), que não se limita a cães, atribui a Black Dog uma certa linguagem que se aproxima do cinema documental, voyeurista e impressionante. Com tantos cães é até difícil entender de que forma é que Guan Hu conseguiu filmar certas cenas. Por outro lado temos o envelhecer da cidade durante a ausência do protagonista. O envelhecimento das famílias, a decadência de uma cidade rural esquecida, prestes a ser demolida, a preparação para os Jogos Olímpicos de Pequim 2008 e a necessidade de ter as ruas limpas (e livres dos seus habitantes caninos). Está tudo lá, neste retrato estóico de uma China esquecida que tem tanto de western como de realista.
David Bernardino
A Real Pain de Jesse Eisenberg – Selecção Oficial, Fora de Competição
Após a IIª Guerra Mundial, a América recebeu e acolheu inúmeras nacionalidades europeias, que viram neste enorme pedaço geográfico uma cura e renovação para a causa judaica. A família dos primos Benjamin e David não foi excepção. Após a morte da avó Dory, os primos reúnem-se para uma derradeira viagem de homenagem à matriarca, partindo para a Polónia em sua honra e memória. É na herança física e cultural, no património familiar e no legado humano que ambos se inspiram para esta jornada de partilha. Jesse Eisenberg, que actua e realiza, consegue entregar um filme analítico, sem falhas e sarcástico, mas extremamente seguro, não conseguindo ser suficientemente arrojado. Tudo nele é expectável e prevísivel, da banda-sonora às as animadas cenas de reviravolta quando as velhas tensões da dupla ressurgem, que por vezes soam forçadas. Tendo sempre como pano de fundo a história da família, A Real Pain acaba por explorar pouco a dor, seja a do luto, a da perda, a da memória ou da saudade, ficando sempre pela superficialidade a navegação em conceitos e emoções ligados à morte, à melancolia e à depressão.
Rita Cadima de Oliveira
Jesse Eisenberg assume a realização, e metade do protagonismo, que partilha com Kieran Culkin, deste soul searching drama acerca de dois primos que decidem visitar a Polónia, de onde era originária a sua avó, que emigrou para os Estados Unidos, após ter sobrevivido ao holocausto. O filme é bem intencionado e bem executado de uma forma geral, mas não consegue escapar ao selo naïf, educacional e autocrítico da experiência que é visitar o local onde as maiores atrocidades alguma vez cometidas pelo Homem ocorreram. Os momentos de comédia e drama são insistentemente interrompidos por esse raciocínio pedagógico, apontado sobretudo para um público americano em luta interior com as suas raízes e a experiência migratória. Kieran Culkin demonstra, mais uma vez, que é um actor de capacidade acima da média, mas Jesse Eisenberg não consegue, outra vez, sair do estereótipo nerd antissocial que justifica a sua vida “aborrecida” pelo facto de ter que crescer e ultrapassar certos traumas. Culkin será o oposto disso, o primo excitante em luta com a sua própria herança e privilégio. A Real Pain traz a lição bem estudada e é um filme claramente com uma missão. Isso retira-lhe todo o espaço para respirar e crescer emocionalmente, tornando-se antes frio e ensaiado. A banda sonora de piano clássico, imensamente invasiva, também não ajuda a afastar uma certa aura de pretensão cultural e, mais uma vez, educacional que o filme deseja ter. A Real Pain é um daqueles filmes absolutamente razoáveis, de belo efeito, mas, como o seu protagonista, está manchado pela sua total ausência de risco e sentido de descoberta.
David Bernardino
Maldoror de Fabrice du Welz – Selecção Oficial, Em Competição
Fabrice Du Welz constrói uma ponte entre um caso verídico de desaparecimento e rapto na Bélgica, em 1955, com uma ficção sobre as malévolas teias do crime organizado. Apesar desta premissa comum, Maldoror é uma verdadeira chama que ilumina o género, como thriller clássico, intenso e no qual o crime vem apetrechado de corrupção, caves de terror, tortura e disfunções no sistema policial. A isto soma-se uma família siciliana emigrada na Bélgica, cuja descendente casa com Paul Chartier, o anti-herói e polícia idealista. É no passado de Paul que vemos as projecções para o seu futuro, principalmente quando o espectador se familiariza com o passado delinquente do jovem e da ligação do seu pai à máfia. O recém-polícia pretende fazer as pazes com a sua não tão longínqua infância, recuperando a dignidade e virtude pela vigilância activa a um suspeito do inquietante desaparecimento de duas crianças. O frenesim mediático sem precedentes, o ambiente hostil e a população tensa e perturbada com o rapto servem de mote e rastilho para um filme denso e caótico, mas sobretudo para um excelso desenvolvimento de personagem, onde Paul se vê confrontado com a enfermidade do sistema judicial, embarcando sozinho numa odisseia contra o meio onde se move, optando pela solidão na caça ao homem, em busca da justiça e lutando contra a descrença de que é vítima pelos seus pares, levando-o ao abismo e à obsessão. Maldoror é um filme áspero e pesado, cujo ritmo é movido pela culpa, injustiça e crueldade das personagens. Fabrice du Welz soube priorizar o carisma de Anthony Bajon, dando-lhe espaço e tempo para mostrar o quão sombrio, incómodo e perturbador um thriller ainda pode ser.
Rita Cadima de Oliveira