Usufruindo da vasta e multicultural oferta do LEFFEST ’24, fugimos, no segundo dia, dos Estados Unidos e embarcámos numa viagem que passou pelo Irão, Itália e China. Na visita ao Médio Oriente, encontrámos o urgente The Seed of the Sacred Fig, de Mohammad Rasoulof (cineasta exilado e convidado desta edição do festival), um thriller político que, entre o drama e o activismo, aponta o dedo ao regime, bem como aos atropelos aos direitos humanos que se vivem no seu país. Mais à frente, passámos por Nápoles para cumprimentar Paolo Sorrentino e assistir ao seu mais recente trabalho, Parthenope. Invariavelmente sobre a cidade e as suas gentes, este será porventura o seu filme mais alegórico e, arriscamos, pessoal: uma revisão dos temas e obsessões que têm marcado toda a sua obra, um olhar antropológico sobre os diferentes estratos sociais e humanos, mas também um sentido manifestar das tristezas e alegrias que a vida nos vai deixando, na jornada da juventude para a velhice. Finalmente, aterrámos na China (e na secção “Descobertas”), para assistir a Brief History of a Family, a primeira longa-metragem de Jianjie Lin, que constrói a tensão do seu drama em torno da progressiva imiscuição de um indivíduo estranho no seio de uma família nuclear. As notas desta viagem intercontinental, empreendida por 4 tribunos, podem agora ser consultadas aqui.
The Seed Of The Sacred Fig de Mohammad Rasoulof – Selecção Oficial, Em Competição
Iman é patriarca, pai, marido e juiz de instrução no Tribunal Revolucionário de Teerão. É no desfalque familiar que impõe à sua mulher e filhas, pela constante ausência e extrema devoção ao trabalho, que este chefe de família vai sentindo uma crescente rejeição e indiferença no seio familiar. Ao conduzir desta forma a sua narrativa, Rasoulof cria dois lados distintos, as personagens boas e as más, conseguindo que qualquer espectador se identifique e conecte com um dos lados da história. O realizador capta a ficção realisticamente, sendo pleno na transmissão de uma factualidade contemporânea que traz um elefante para a sala, tornando a atmosfera desconfortável e perturbante. Consequentemente, a implosão e a explosão são dois momentos de destruição mas em formato invertido e é precisamente este duplo formato de obliteração que Rasoulof adopta para englobar temáticas importantes da sociedade iraniana: a dualidade entre a espera privada e a pública. O que somos em casa e quem somos na rua é assumidamente distinto num Irão conservador e retrógrado. Passo a passo, as normas sociais e as regras da vida familiar vão sendo suspensas, aumentando a tensão e a desconfiança, e originando maiores impulsos de violência quer dentro dos lares, quer nas ruas iranianas. À medida que se intensificam gradualmente os protestos políticos nacionais, onde o movimento revolucionário da mulher no Irão reclama reformas feministas, exigências e atenções, Rasoulof agrava drasticamente as acções de Iman, tornando a cinematografia superlativa no compasso e na inquietação. The Seed of The Sacred Fig consegue ser várias coisas, mas é sobretudo um drama documental dissidente, vertiginoso e extremamente complexo. A narrativa é furiosa e alia-se a um ritmo tão intenso que acaba por tornar o compasso deste filme numa fúria pouco contida, onde a parte melodramática se vai tornando desajeitada, barulhenta e algo novelesca. Durante quase três horas, o filme parece uma mistura trapalhona de thriller com génese documental, perdendo por vezes o ritmo e o equilíbrio, sobretudo quando se faz valer de um evento familiar dramático para representar um movimento sociopolítico revolucionário que não deveria ser reduzido a uma quezília familiar condimentada com surtos psicóticos e paranoicos. No fim, resta-nos uma história algo desajeitada, com uma encenação medíocre e uma alegoria pouco subtil na qual o sucesso e progressão da carreira de Iman é proporcional à deterioração da sua saúde mental.
Rita Cadima de Oliveira
Sendo o cinema uma forma de arte, talvez não faça muito sentido a existência do conceito de filmes “necessários”. Contudo, para aqueles que acreditam em filmes “necessários”, Sacred Fig provavelmente será um desses filmes. A tentativa de revolução no Irão iniciada em Setembro 2022, apelidada de revolta do hijab (originada pela morte de uma mulher que se recusou a usar o hijab) foi, talvez, o momento mais próximo que o país esteve de derrubar o regime teocrático islâmico, fundamentalista e extremista, que domina o país desde 1979. Mohammad Rasoulof captura audaciosamente esses tempos recentes no coração de uma família onde gerações, géneros, crenças e valores colidem. Este drama com múltiplas camadas desenvolve-se com coragem e intensidade (filmado em segredo, o realizador fugiu do Irão depois de ser condenado à prisão), sendo filmado principalmente em interiores até ao terceiro ato, encadeando na “ficção” vários vídeos reais gravados pelos manifestantes, representando assim a realidade desses tempos conturbados que ainda se mantêm em menor escala devido à violenta repressão governamental no sentido contrário. No terceiro ato, a estética do filme muda, transformando-se quase num filme de género que invoca The Shining, o que pode parecer estranho em alguns momentos, mas que surpreendentemente funciona. O pai cúmplice do regime, a mãe temente a Deus, as filhas revoltadas, as redes sociais, as más companhias, os segredos, as mentiras. Que abordagem magistral.
David Bernardino
A nossa apreciação do filme será inevitavelmente marcada pelo gesto político que constitui a sua própria existência. No entanto, o valor deste No Home Movie assenta sobretudo no desenho que Rasoulof traça de um contexto político nacional (iraniano) a partir de uma célula unifamiliar fechada. As três mulheres trancadas naquele apartamento, o pai ausente num trabalho “secreto” para o regime, do qual nos chegam ecos vagos a cada noite, e um mundo em luta que entra pela casa, filtrado pelo grande ecrã da televisão, ou potenciado pelas pequenas janelas das redes sociais e pelos sons de revolta nas ruas. Existe aqui um paralelismo evidente entre os espaços mudos do apartamento, filmados em planos-sequência labirínticos, e um regime que não oferece liberdade ou uma saída. Mas será através da relação das duas filhas com os pais, e sobretudo na progressão narrativa do pai (uma “derrocada” anunciada pelo revólver, cujas balas se assemelham a sementes), que o filme torna mais tangível o contexto de medo e paranóia no qual um regime totalitarista mergulha a sua população para poder sobreviver e prosperar. Teremos talvez de perdoar a Rasoulof alguns desvios de intento mais “cinematográfico” – o duche de Iman, o corte de cabelo, o plano demorado sobre o rosto desfigurado de Sadaf – num filme muito mais forte quando mais seco e despido. Mas aquele surpreendente desenlace, insano e agressivo, será a necessária catarse a uma trama que parece sempre querer chegar a outros espaços. O regresso a uma origem hoje morta pelo dito aperto dos ramos de uma figueira sagrada.
Miguel Allen
Parthenope de Paolo Sorrentino – Selecção Oficial, Fora de Competição
To live and die in Naples. Forte candidato a filme mais interessante do ano do qual ninguém vai gostar. Isto porque, depois do seu desvio pela linearidade autobiográfica, Paolo Sorrentino parece, numa primeira impressão, querer voltar às superfícies belas e ocas de La Grande Bellezza (2013), aos fetiches do corpóreo enquadrados num digital reminiscente da publicidade. O regresso a esses elementos verifica-se, sim, mas retendo o coração e a introspeção de È Stata la Mano di Dio (2021) para os desmontar (a chave estará no diálogo com uma certa atriz descabelada, a bordo de um navio), através de uma abordagem plenamente conceptual. Um ângulo que oscila entre o ostensivo e o subtil, o visualmente excêntrico e a candura intimista, e que alienará todos os que não estiverem disponíveis para ver (o ato mais difícil que existe, de acordo com o professor de Parthenope) além das frases feitas, das notas de erotismo parafílico ou dos apontamentos de onirismo felliniano.
Fazendo jus ao mitológico nome de batismo, Parthenope nasce dona de uma beleza hipnotizante. Inicialmente divertida com os efeitos dos seu encantos, cedo compreenderá que não há poder sem cruz. A morte marcará um ponto de inflexão neste entendimento, bem como no resto da sua vivência. A jornada desta aspirante a antropóloga – algo que Sorrentino, de certo modo, também é – será cruzada por diferentes facetas da vida, plasmadas em coloridas personagens mais velhas, bem como por todas as obsessões antigas do cineasta: os corpos – esculturais ou grotescos – a religião, as assimetrias sociais, a beleza e a juventude, a paixão, a decadência, o futebol e o amor agridoce pela sua cidade. Neste percurso de vida esconde-se o do próprio autor, e nisso muito menos a vontade de “contar uma história” do que um pretexto para nos pintar, em pinceladas largas, um fresco nostálgico dos seus verdes anos e do que foi aprendendo, em ligação umbilical com a sua identidade napolitana, à medida que foi envelhecendo.
Ainda que de forma muito mais abstrata que Mano di Dio – por força de uma montagem inusitada, uma disposição ostensivamente artificial dos atores e uma narrativa simbólica – este será, porventura, um filme muito mais autobiográfico, porque do presente. É a obra de um órfão de meia idade em luta com a sua própria decadência, em diálogo com o seu trabalho, nostálgico do vigor e da loucura da juventude, sempre entre o fascínio e o temor pelo prazer carnal, mas ainda profundamente apaixonado pela vida. Enamorado das vulnerabilidades humanas e em incessante busca pela beleza. Uma paixão que se traduz na aceitação, mesmo que por vezes contrariada, da vida vivida e de tudo e todos os que se unem sob o céu dessa triste e leda Nápoles.
À semelhança do outro grande projeto maximalista do ano – Megalopolis – a seriedade grandiloquente deste filme – temperada com exageros que, à superfície, roçam o absurdo – poderá ter um efeito repelente para muitos espectadores. Nos tempos que correm, é o preço a pagar por quem nos pede paciência para contar a sua verdade com ingenuidade artística. Contudo, os que concederem a gentileza a Sorrentino cedo entreverão a sinceridade das emoções por detrás dos fogos de artifício, certamente tomarão conforto na compaixão antimoralista e no mistério de uma profusão de símbolos a desvelar. Numa palavra, sairão de Parthenope amplamente recompensados.
Gil Gonçalves
A Brief History of a Family de Jianjie Lin – Descobertas
Brief History of a Family é a primeira longa-metragem do chinês Jianjie Lin, também conhecido como J.J. – está presente na secção Descobertas do festival, juntamente com o próprio realizador – muito cuidado e dono de um inglês perfeito, polido na faculdade de Artes e Cinema em Nova Iorque, que apanhei no MUDE – Museu do Design a espreitar com atenção o documentário dedicado ao pintor José Escada. O filme tem estado a ter um percurso invejável, primeiro com uma estreia absoluta em Sundance e daí para a secção Panorama do Berlinale, onde foi apanhado para este Descobertas em Lisboa.
Acompanhamos uma família nuclear chinesa, de um filho apenas, rapaz, nascido durante o reinado cultural da política de um só filho que a China manteve de 1979 a 2015. O rapaz, Wei, preguiçoso, fã de videojogos e praticante de esgrima extra-curricular, trava uma amizade invejosa com um colega na escola – começam a falar porque Wei lhe atirou uma bola à cara – e o rapaz, Shuo, rapidamente passa a fazer visitas regulares à casa do primeiro para jogar e estudar.
Shuo, sabemos depois, é maltratado pelo pai víuvo, despertando nos pais de Wei instintos compreensíveis de paternidade e proteção: o jovem parece ser de resto um rapaz muito mais certinho, inteligente e dedicado que o filho biológico deles – ouve Bach aos catorze anos – e os dois pais, também muito carentes, que não tiveram mais que um filho, vêem um novo capítulo das suas vidas surgir feliz com este jovem adolescente por casa: Shuo já quase não passa pelo seu domicílio; já tem quase uma segunda família.
Revelam-se naturalmente, durante e depois, as redes de ciúme e de inadequação aqui armadilhadas, de expectativas e frustrações um pouco por parte de todos os protagonistas. Esta assimilação de um “vírus” estranho, outro filho (o pai de família é biólogo de investigação, um paralelo estético que é um dos mais sublinhados leitmotifs do filme) revela-se muito complicada, e há o risco provável de este corpo, esta unidade familiar reprimida e em complexa estase rejeitar o intruso.
O filme é também notável por nunca resvalar para um registo histriónico, gore, terror, ou outras opções que encontrámos no passado em explorações japonesas (o burlesco) ou americanas (o thriller) de premissas similares – Sion Sono, com obra também presente neste festival, por exemplo. O filme de Jianjie Lin mantém sempre um interesse muito sóbrio, cerebral e nervoso num naturalismo e em modelos do comportamento humano facilmente encontrados na mais simples das famílias, com a mais breve das histórias.
Rafael Fonseca