É inegável o estatuto único que o LEFFEST adquiriu em 18 anos de existência. Marco cultural da cidade de Lisboa (e do país), ponto de confluência de consagrados e emergentes cineastas nacionais e internacionais, e paragem obrigatória no circuito anual de todos os amantes de cinema, mobiliza cartazes, público e entusiasmos cada vez maiores. Assim, foi com pouca surpresa que encontrámos a entrada do Teatro Tivoli apinhada, largos minutos antes da abertura de portas. Entre convidados famosos e ilustres desconhecidos, a expectativa era palpável e assim se manteve até à chegada de Paulo Branco ao palco, para o arranque da Cerimónia de Abertura.
Para os dias seguintes, foram preconizados os grandes marcos imperdíveis de uma programação excelsa, com o anúncio detalhado das secções do festival. Destacamos nós, além das Selecções Oficiais em Competição e Fora de Competição, a secção “Descobertas”, que o director adjunto do festival, António Costa, indicou como o espaço que visa descobrir os “cineastas do futuro”; a secção Imagens de Guerra, Guerras das Imagens, um conjunto de sessões focadas nas representações da guerra no cinema; a retrospectiva completa de Miguel Gomes, a primeira em Portugal com toda a sua filmografia, assim como a retrospectiva, com a sua presença, da importante cineasta francesa Patricia Mazuy; as celebrações do centenário do falecimento de Kafka; a apresentação das obras de Michael Haneke inéditas em sala portuguesa e o Encontro Internacional de Escolas de Cinema, competição a decorrer em várias sessões no Liceu Camões com filmes da portuguesa ESTC, da escola La Fémis (França), da UCLA, de Los Angeles e da EICTV, escola de Cuba. Finalmente, um programa especial a decorrer no MUDE – Museu do Design sobre grandes artistas marcantes da segunda metade do século XX, que inclui uma exposição de Carlos Cobra, vencedor em 1981 do mais prestigiado prémio de escultura da Europa.
Depois da apresentação do programa, dos convidados e do júri, o sentido relembrar do regresso de Pedro Almodóvar ao LEFFEST (ele que foi convidado da primeira edição), 18 anos depois de “uma partida que me fizeram e que continua a correr bem”, nas palavras de Paulo Branco. O filme The Room Next Door, primeira longa do cineasta espanhol rodada nos EUA e falada em inglês, marcaria o arranque da presente edição de um festival que, realçou Branco, “goza do luxo, único no mundo, de poder continuar a apresentar os programas que quer, sem qualquer interferência dos patrocinadores”. Mas não antes de um par de surpresas…
A primeira, da responsabilidade da organização, passou pela entrega de prémios a alguns dos realizadores convidados e homenageados no programa do LEFFEST ’24. Patricia Mazuy, Miguel Gomes, Jonás Trueba e Mohammad Rasoulof foram agraciados e chamados ao palco para agradecer. A segunda, mais caricata e da inteira responsabilidade de alguns membros do público, deu-se após o agradecimento especial de Paulo Branco ao maior e mais constante patrocinador do LEFFEST – a Câmara Municipal de Lisboa – e da chamada ao palco do Presidente da Câmara Carlos Moedas, audivelmente vaiado e insultado. Direitos democráticos de manifestação, nas palavras de Moedas e Branco, mas, para o produtor e mentor do festival, usados “cobardemente e no local errado”. Passado o impromptu e serenados os ânimos, avançámos finalmente para o filme.
The Room Next Door de Pedro Almodóvar
A esperança de um primeiro triunfo anglófono de Pedro Almodóvar, depois dos esquissos The Human Voice (2020) e Strange Way of Life (2022), tinha fundamento. Não apenas pelo elenco sonante – liderado por Julianne Moore e Tilda Swinton, e com a presença de John Turturro – mas também pelo output recente de um cineasta que encontrara novo fôlego na melancolia e ponderação dos seus projetos tardios. Infelizmente, e mesmo que se queira encarar The Room Next Door com toda a bonomia, estamos perante um esforço que só pode situar-se entre o sofrível e o desinspirado.
Diálogos robóticos e telenovelescos, captados no mais banal e insosso campo-contracampo, compõem mais de metade desta história de duas amigas que se reencontram ao fim de muitos anos, quando Ingrid (Moore) descobre que Martha (Swinton) sofre de cancro terminal. Até ao pedido de Martha para que Ingrid a acompanhe numas férias – que planeia que sejam as suas últimas – passamos por uma espécie de best of das marcas estilísticas e narrativas de Almodóvar. Há analepses, um evento traumático no passado de uma das protagonistas, vago contexto histórico de um país, personagens fugidias, relato corriqueiro e apimentado de relações amorosas e sexuais… mas tudo é tão corrido e inconsequente que apenas nos restam as cinzas do sentido de trágico que o autor tão bem dominou, durante décadas, para nos provar que ele algum dia existiu.
O filme adquire, apesar de tudo, alguma solidez quando as amigas chegam à casa de campo (um estupendo cenário que, a espaços, é bem potenciado pela lente de Almodóvar para gerar alguma tensão). Livres de desenvolvimentos supérfluos, as personagens (e as atrizes) têm mais espaço para respirar em pleno as emoções que a aura de morte vai suscitando e, ainda que traídas pelo fraco diálogo, Swinton e (especialmente) Moore conseguem elevar a um outro patamar as gotículas de pathos que o guião lhes fornece. A narrativa ganha uma ponta de interesse com a entrada em cena de Damian (Turturro) – claramente um avatar de Almodóvar – e o seu cinismo em diálogo com a praticidade de Ingrid, e a própria montagem parece menos rígida, fazendo as cenas fluir melhor entre a casa e a natureza dos espaços exteriores. Contudo, os únicos momentos de real comoção são alavancados pela colagem a material alheio. The Dead (o conto de James Joyce e a adaptação cinematográfica de John Huston), um plano bergmanesco e alguns apontamentos hitchcockianos são os grandes responsáveis por injetar vida num drama maioritariamente inerte, que nem consegue um contraponto satisfatório para que as instâncias de humor negro com que é salpicado atinjam todo o seu potencial.
Para cúmulo (e corolário) do atabalhoado gesto de The Room Next Door, Almodóvar termina o filme pouco depois de introduzir a sua ideia mais interessante. Não sendo novidade no seu cinema, o invocar do fantasma, neste caso por via de um duplo, fazia antever um ponto de viragem – fosse por ressignificação ou por inflexão narrativa. Nem uma coisa, nem outra se verificam. Ao invés, ficamos com uma citação (textual) dentro de uma repetição (imagética). A redundância a fechar o círculo de um objeto esquecível e dos mais artisticamente desanimadores do ano.
Gil Gonçalves
The Brutalist de Brady Corbet
Brady Corbet arrisca tornar-se presunçoso e algo pretensioso na forma como transforma um filme numa obra de design e estética, num canvas repleto de layers, de tonalidades emotivas e de uma variada mas coesa gama cromática. A timeline, apesar de cronológica, é progressivamente injectada com harmoniosos vínculos entre a arte e a indústria. Corbet recria uma nova versão do filme O Pianista, desta vez com um Adrien Body mais refinado no papel de arquitecto vanguardista da geração Bauhaus, László Tóth. Tóth representa toda a pretensão individual judaica do pós-guerra, a de fugir da Europa para a América da liberdade, onde se estabeleceria a reconciliação com o espírito artístico tanto individual como colectivo, mas sobretudo onde seria possível reconstruir a vida, os sonhos, o trabalho e os casamentos, saqueados durante uma guerra de fronteiras e regimes autoritários. O Brutalista, tal como a linha de arquitectura característica do modernismo alemão, é um filme sóbrio, racional, funcional e radicalmente simplificado. László é a personificação do fim do expressionismo emocional e a transição para a prática da objectividade, principalmente quando conhece e se sujeita aos devaneios do rico e proeminente mecenas industrial Harrison Lee Van Buren. Numa Pensilvânia de oportunidades e derrotas, de remédios e de drogas, e sozinho num país tão novo quanto estranho, Tóth é reconhecido pelo seu talento e legado mas também pelo seu poder de autodestruição. Apesar de ser exímio no trabalho que arquitecta, László vive despojado de dignidade, sendo o resultado físico da guerra, materializado pela indisciplina e pelas as lesões psicológicas. A construção da identidade pessoal de Tóth faz-se representar activamente na arte que reproduz, na forma delicada mas cruel como a sua obra é vítima das suas maleitas mas também como resultado de superação dos muitos desafios que enfrentou. É numa complexa jornada de dor e perseverança que este épico sobre a profundidade do trauma e da subserviência nos incita a reflectir sobre o ressurgimento de uma atmosfera beligerante e de desconfiança na contemporaneidade, mas também na persistência dos votos internacionais com novas guerras.
Rita Cadima de Oliveira
O nome Brutalista assenta bem ao que é o novo filme de Brady Corbet: um portento titânico de narrativa e imagem, um épico ao estilo de There Will Be Blood com a candura d’O Pianista, de Polanski, curiosamente protagonizado também por Adrien Brody. A velha história do emigrante europeu, neste caso pós 2ª guerra mundial, carregado de trauma, em busca do sonho americano. Ao longo dos anos a humildade dará lugar ao risco e à ambição, nunca unidimensional. Lazslo Toth, o arquitecto protagonista, judeu húngaro, não é nenhum magnata ambicioso que triunfa na vida, como tantas vezes vemos representados nas epopeias pelo american dream, mas antes um homem que se move a três velocidades: a sua visão artística, a esperança de melhores dias para a sua família, e as rasteiras e pecados da sua própria mundaneidade. Além desse estudo de personagem nos ombros do protagonista existe o outro lado do binómio, o seu némesis, Guy Pearce, esse sim o magnata americano que revolve a vida de Toth, a seu bel prazer, explorando as fragilidades do arquitecto. A luta perante a visão do artista e a do seu cliente/patrão será a grande problemática central de The Brutalist, à medida que o imponente projecto desenhado por Toth se vai “construindo”, demonstrada através das dinâmicas de poder, dinâmicas sociais e económicas, dinâmicas sexuais. Enfim, todos os ingredientes necessários para um drama épico de 3h35, com direito a intermission de 15 minutos e tudo, os famosos intervalos de filmes épicos longos tais como 2001: Odisseia no Espaço e Lawrence da Arábia, que muito francamente deveriam mesmo regressar de uma vez. The Brutalist faz tudo bem, sem dúvida, oferecendo imagens poderosas e cenas de catarse, como se quer, mas parece que existe algo de excessivamente pensado na forma como Brady Corbet constrói o seu épico, minuciosamente trabalhado cena após cena, seguindo a sua lógica hermética do ponto A ao ponto B. Talvez isso impeça o filme de brilhar em todo o seu esplendor, pedindo-se algum sentido de improviso, de mudança de tom, que dê uma identidade verdadeiramente única a The Brutalist. A interpretação de Felicity Jones, e outros, também não ajuda, dolorosamente teatral e com vícios de um certo “cinema histórico/biográfico” aborrecido que lhe retiram autenticidade. Talvez o filme de Corbet seja o novo There Will be Blood, 17 anos depois, mas provavelmente nunca será mais que isso: a sombra de uma obra maior.
David Bernardino