No oitavo e nono dias de LEFFEST 2023 tivemos a estreia simultânea de dois filmes de Wim Wenders na Seleção Oficial – Fora de Competição. Anselm foi recebido com bastante entusiasmo por parte da equipa da Tribuna. Já Perfect Days foi considerado uma obra-prima para dois dos nossos críticos, ao passo que o terceiro o considerou meramente agradável. Destaque ainda para a exibição de IWOW: I Walk On Water, inserido na retrospectiva ao realizador americano Khalik Allah.
Perfect Days (2023), Wim Wenders
Um dos dois destaques concedido a Wim Wenders no LEFFEST, tem como título Perfect Days. Esta obra inteiramente passada em Tóquio, apresenta-nos Hirayama, um homem tímido e acanhado, cuja profissão consiste em limpar casas de banho públicas em Tóquio. Ao contrário do esperado, Hirayama demonstra uma enorme alegria de viver, aparentando estar totalmente satisfeito com a sua vida singela e revelando uma enorme apetência para o refúgio e solidão. A sua personalidade introvertida, característica de uma identidade eremita, fazem-no preferir serões com plantas e discos a serões com humanos. Wenders retrata-nos um homem que controla o seu próprio destino, não arriscando qualquer possibilidade de sociabilização. Fora da sua rotina e do seu quotidiano laboral estruturado e milimetricamente coordenado, Hirayama é um apreciador nato de música rock e de livros. Na sua pausa para almoço, tem como hábito fotografar analogicamente árvores e os seus ramos, acabando mais tarde por revelar as fotografias que tira. É nesta rotina e repetição da acção que uma série de encontros e desencontros vão revelando o seu passado, no qual alguns traumas justificam o autocontrolo e a disciplina autoimposta. Raras as vezes ouvimos a voz de Hirayama no filme, o silêncio é uma escolha e uma preferência de forma a não se sobrepor ou elevar ao próximo. Num filme onde a rotina e a simplicidade são transformadas em coisas belas, no qual a harmonia com a natureza basta para arrancar um sorriso a este homem que parece frio mas é, mais do que tudo, um ser humano atento e preocupado com o outro, que abdica de si mesmo em prol daqueles que respeita. Perfect Days consegue trazer-nos simultaneamente a turbulência e o alvoroço de Tóquio e o equilíbrio e a serenidade de Hirayama, fundindo-nos com um espaço físico e geográfico de desordem, mas sempre com toques humanos de placidez e elevada prudência.
Rita Cadima de Oliveira
Foi preciso esperar quase 40 anos para Wim Wenders voltar a realizar uma obra-prima de ficção (excluímos Salt of the Earth e Anselm das contas) depois de Paris, Texas. Produzido no Japão, Wenders filma o dia a dia rotineiro de um técnico de limpeza das casas de banho públicas de Tokyo. Solitário e de poucas palavas Hirayama sorri e observa os detalhes que o rodeiam. A luz por entre as folhas, as pessoas que comem sandes no banco do jardim, os diálogos dentro do bar. Dia após dia a sua rotina é visitada por elementos exteriores que o protagonista abraça com felicidade, desde uma surpreendente planta que rebentou junto a uma árvore à sua sobrinha que visita de surpresa. Observamos pequenas histórias, de forma episódica, daquilo que na verdade compõe a vida, no plano terrestre prático: um pequeno Mundo dentro de outros Mundos. Hirayama não está interessado no futuro. O desenvolvimento de personagem é feito através destes elementos externos. Descortinamos mágoa perante um passado do qual o protagonista prefere fugir, mas o sorriso de Hirayama e a sua paz interior são contagiosos. Wim Wenders está de novo na frente de uma realização de rara beleza. Perfect Days dá mais importância à forma como filma a cidade de Tokyo do que constrói (poucos) diálogos para o seu protagonista. Importam as estradas, o sol, os jardins, os bares, e a imponente Tokyo Skytree, sempre no horizonte, a observar a pequenez do protagonista enquanto se desloca no seu carrinho pela metrópole. Os sons da cidade são capturados na perfeição, aliando-se a uma banda sonora analógica de um certo rock dos anos 70/80 (Lou Reed, Patti Smith…) carregado de nostalgia. Perfect Days é um daqueles raros filmes que consegue, através da imagem e da simplicidade, emocionar o espectador, nunca caindo nas armadilhas do pretensiosismo. O filme não está particularmente interessado em conquistar o espectador, nem usa artifícios nesse sentido. Não se acha sequer inteligente ao ponto de atirar à cara do espectador filosofias baratuchas como Amélie ou Paterson fizeram, por exemplo. Muitos até dirão que este é um daqueles filmes em que “não acontece nada”, e é difícil fazer um desses filmes de forma interessante e humilde. Que lufada de ar fresco. Que bem soube ver Perfect Days.
David Bernardino
Na primeira meia hora, “Perfect Days”, com a sua ênfase na rotina rigorosa, parece ser uma versão de “Jeanne Dielman” (Chantal Akerman, 1975), mas em vez de uma mãe solteira a limpar a casa temos um homem solteiro a limpar casas de banho públicas. Porém, à medida que progride, o filme aproxima-se mais da poesia quotidiana de “Paterson” (Jim Jarmusch, 2016). Acompanhamos o dia-a-dia de Hirayama, um homem simples, metódico, bem-disposto, exímio a executar a sua profissão, leitor ávido, fã de Lou Reed, Otis Redding e Nina Simone. Vive um dia de cada vez, sem lamentar o passado, sem ansiar pelo futuro. Ima wa ima. Com “Perfect Days”, Wim Wenders foi passear a Tóquio e aproveitou para fazer um filme simpático e acolhedor, ainda que na fronteira entre o querido e o lamechas. Talvez a maior conclusão do filme seja que Tóquio tem as casas de banho públicas mais sofisticadas do mundo.
Pedro Barriga
Anselm (2023), Wim Wenders
No penúltimo dia de LEFFEST, o festival destaca Wim Wenders em dois formatos completamente distintos. Um deles é Anselm, uma experiência cinematográfica única e avassaladora, na qual Wim Wenders retrata em 3D o processo criativo de Anselm Kiefer, pintor e escultor alemão e um dos maiores artistas contemporâneos. Nesta obra, Wenders permite que a audiência fique imersa no mundo notável do homem e artista plástico, sobrepondo a obra à polémica em torno desta. O percurso de vida de Kiefer, a sua inspiração e estímulos, o seu método e a sua engenhosidade são explorados de forma bastante eloquente, por vezes, quase megalómana. Neste filme está patente a exploração dos fascínios de Anselm pelo mito e pela história. O passado e o presente fundem-se de forma a que linha entre o filme e a pintura se expanda mas também há um foco inquestionável na abordagem ao impacto da Alemanha Nazi e da IIª Guerra Mundial na sociedade desse período e, sobretudo, naquilo que hoje é a arte contemporânea, o seu significado e a sua sensibilidade.
Rita Cadima de Oliveira
Ao entrar para Anselm, uma espécie de documentário com elementos de ficção, realizado por Wim Wenders em 3D, existia alguma apreensão, mas sobretudo curiosidade. Afinal o que faria Wim Wenders com o multifacetado artista moderno Anselm Kiefer, pintor, escultor, criador de imponentes instalações artísticas e um passado carregado de polémica? Assim que a luz se apaga mergulhamos no 3D das paisagens e instalações de Anselm, embalados pela poderosa banda sonora original do compositor Leonard Küßner. Navegamos os corredores dos seus vários ateliers, observamos o seu processo, mergulhamos nas suas criações. No entanto, não é na especificidade da arte de Kiefer que reside o maior interesse de Anselm, mas antes na realização e na forma. Wenders apresenta imagens filmadas com uma serenidade, luz e cor fora de série, originalmente em 6K, utilizando o 3D de uma forma realmente imersiva. Wenders captura a atenção do espectador além arte ao expor, com mistério, as polémicas do passado de Kiefer, que confrontou a sociedade alemã e mundial com a realidade do nazismo que se tornou tabu, sendo muitas vezes confundido erradamente com um apoiante dessa corrente extremista. Mergulhando na mente e passado do artista observamos uma criança percorrendo os corredores da sua memória, que começa em 1945, invocando Silence de Ingmar Bergman. Anselm será sempre um filme visto por poucos atenta a sua especificidade, mas é provavelmente um dos mais interessantes objectos fílmicos jamais filmados em 3D, capturando imagens de uma beleza e candura notáveis, contrapostas apenas pela brutalidade da arte que filma. Adicionando uma camada de meta-ficção documental pelas memórias do artista, Wenders foi capaz de criar algo verdadeiramente arrebatador e inigualável.
David Bernardino
IWOW: I Walk On Water (2020), Khalik Allah
IWOW é um retrato duro e cru das ruas de Harlem, Nova Iorque e dos sem abrigos que as habitam. Um filme que caminha livremente, sem qualquer tipo de pudor, na corda bamba entre o respeito/distância justa para os personagens e a exploração artística e estetização de quem surge em frente à câmara. Digital, película, Hip Hop, dissociação entre a imagem e os diálogos e narração constantemente em voz off. Para além de Kanye West e Pedro Costa poderíamos perfeitamente juntar Jonas Mekas à sopa de referências que nos passa pela cabeça. Khalik Allah surge pontualmente em frente à câmara, mas é nas interações com os sem abrigo e familiares, que se desenrolam fora-de-campo, que ficamos a conhecer o cineasta. E todo o ego e narcisismo que possam ser inferidos das conversas, também nos dão a certeza que era impossível existir um filme assim de outra forma, com tanto de fascinante como de problemático.
Bruno Victorino