Retomamos a cobertura do LEFFEST 2023 analisando brevemente três dos filmes exibidos nos últimos dois dias de festival. O sueco Paradise Is Burning, um coming of age que faz parte da Secção Oficial – Em Competição e os clássicos Frankenstein e Metropolis, inseridos no Ciclo Temático: A Inteligência Artificial e a Criação Artística – Para Onde Vamos?. Sublinha-se que o filme de Fritz Lang contou com a presença de três músicos que tocaram ao vivo uma banda sonora inédita.
Metropolis (1927), Fritz Lang
“Não pode haver entendimento entre as mãos e o cérebro se o coração não actuar como mediador”. Este é o grande mote de Metropolis (1927), filme mudo de Fritz Lang que foi acompanhado orquestralmente por Rodrigo Amado, Hernâni Faustino e Gabriel Fernandini para uma imensa audiência no Tivoli BBVA, na noite de 14 de Novembro. Numa cidade futurista gravemente dividida entre a classe operária e os seus criativos planeadores urbanos, o filho do mentor da cidade, Freder Fredersen, apaixona-se por uma profetisa da classe trabalhadora que antecipa a vinda de um salvador para mediar as suas diferenças. Nesta obra de 1927, o espectador absorve os planos contemporâneos e as eloquentes construções arquitectónicas modernas como se do futuro ainda se tratasse. Passados quase 100 anos, o filme reflecte e retrata de uma forma tão expressiva quanto aterradora a actual sociedade moderna, abordando o clássico e intemporal tema da luta de classes, do capitalismo, da escravatura social e laboral e, por outro lado, da tentativa frustrada de alguns para modificar o faccioso sistema estabelecido.
Rita Cadima de Oliveira
A obra-prima de Fritz Lang, com quase 100 anos, é uma incontornável referência do cinema que podemos apreciar em duas dimensões: estética e narrativa. Narrativamente Metropolis mostra-nos uma cidade futurista e o eterno tema da luta de classes. Por um lado o proletariado vive debaixo da Terra, trabalhando nas máquinas até à exaustão, garantindo o funcionamento da metrópole. Por outro, à superfície, vive a burguesia, divertindo-se, num claro espelho daquilo que foram os loucos anos 20 (curiosa a indumentária desta burguesia, realista à época e não futurista como a sua metrópole). Ao cimo, Joh Fredersen, o criador da metrópole que a olha através de um arranha céus. Freder, filho de Fredersen, ao ter contacto com Maria, uma espécie de profetisa do subsolo, procura tornar-se no intermediário entre pobres e ricos. Ao invés de um ideal comunista, Lang antes procura a união entre classes, a total coesão entre subsolo e superfície, e não a revolução. Afinal de contas, quem incita à revolução é o homem máquina, tomando a forma de Maria, a profetisa que apenas pretende a união.
Apesar das interessantes ideias do seu argumento, é na estética que Metropolis realmente brilha. Observamos um expressionismo alemão futurista, contrastando com o rústico d’O Gabinete do Dr. Caligari, com imagens fortíssimas de uma metrópole a várias alturas, sobrevoada por avionetas e comboios que cruzam os arranha-céus, com luzes e electricidade incandescente. Curioso o facto de o filme ter sido lançado em 1927, tendo sido filmado entre 1925 e 1926, e apresentar uma arquitectura que é semi idêntica à paisagem Nova Iorquina, com edifícios como o Empire State Building ou o Chrysler, que só viriam a ser construídos alguns anos mais tarde. O preto e branco realça o peso das imagens: os trabalhadores caminhando de forma mecânica, os jardins onde Freder se diverte, os discursos de Maria perante os seus seguidores. A perseguição entre túneis do cientista a Maria. Os efeitos especiais do homem máquina, a imagem mais marcante do filme. A montagem vanguardista, com sobreposições e olhares que ocupam toda a tela. Os jogos de sombras. Os rostos. Enfim, Metropolis é uma daquelas obras-primas cuja influência observamos em inúmeros filmes e é provavelmente a primeira grande obra cinematográfica no campo da ficção científica, capaz ainda hoje de nos deixar boquiabertos com a sua imponente magnitude.
David Bernardino
Paradise Is Burning (2023), Mika Gustafson
Apesar de ter alguns momentos interessantes e de genuína aproximação e empatia para com os seus personagens, Paradise Is Burning acaba por enveredar pelos lugares-comuns do cinema europeu coming of age costumeiramente selecionados para as competições dos festivais de cinema. A shaky camera que sublinha a ambição de atingir um dado naturalismo, as cenas musicais ou os rasgo de elementos fantásticos correspondem a tal cardápio. Paradise Is Burning tem o coração no lugar certo, mas a riqueza do seu retrato e o impacto das suas atuações esbarra na previsibilidade e romantização artificial da classe social desfavorecida de jovens suecos.
Bruno Victorino
Paradise is Burning é a segunda longa-metragem de Mika Gustafson, realizadora sueca de 35 anos. Nesta obra, a temática da irmandade de sangue e os laços fraternais entre amigas e respectivas tensões são elevados ao expoente. No seu todo, Paradise is Burning é um obra incendiária e provocativa, instigadora do caos e desordem na vida daqueles que acompanham Laura (16), Mira (12) e Steffi (7), três irmãs que vivem sozinhas, deixadas à sorte por uma mãe ausente. Nesta zona operária da Suécia, as três irmãs convivem em ambientes tempestuosos, nos quais o álcool, as primeiras passas nos cigarros e as drogas deslindam um futuro tempestuoso, culminando numa vida selvagem e despreocupada, atendendo à anarquia da irmã-líder, Laura. As tensões são constantes, nunca encontrando o espectador a linha ténue que separa a constante euforia libertária e comportamental de Laura e Mira e as gravosas consequências da realidade do crescimento, principalmente para Steffi. Apesar deste drama coming-of-age ser bastante autêntico, sublinha-se a cada vez mais crescente romantização da marginalidade, da violência e da hostilidade para com o desconhecido, confrontando qualquer imprevisto com um tom jocoso, de ameaça e rixa.
Rita Cadima de Oliveira
Frankenstein (1931), James Whale
Henry Frankenstein, um homem abastado e com apreciação pela ciência, vive obcecado pela criação de um novo corpo, elaborando e dando vida a um monstro através da forma como reagrupa e reconstitui vários órgãos a partir de cadáveres exumados. Dar vida à morte, ensinando o mal a quem o ignora serve de mote para uma obra onde a escuridão, a bruma, a névoa, as sombras têm destaque permanente, pairando incessantemente neste conto gótico que nos arrepia mais pela severidade e precisão da filmagem do que alguma possibilidade de ficarmos petrificados pela aparência física do monstro. Monstro cuja estatura imponente, andar arrastado, roupas desalinhadas, cabeça achatada, franja flácida e olhos semicerrados, a par dos parafusos metálicos que lhe saem do pescoço, provoca mais lamento do que pavor. Assusta-nos mais a atmosfera do que o monstro em si. Reafirmando-se como uma obra sobre um homem que cria um monstro que não o sabe ser, sarcástica é a forma como este mesmo monstro mata uma criança, atirando-a para a água e, mais tarde, é o monstro que morre conspurcado pelas chamas. Por isto, Frankenstein é uma obra marcante, repleta de elementos e simbolismos, na qual fica a faltar mais monstro e que apenas peca por ser demasiado curta.
Rita Cadima de Oliveira