O sétimo dia do LEFFEST 2023 era um dos mais aguardados pela Tribuna do Cinema. A estreia nacional do vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes, Anatomy of a Fall. A exibição do mais recente filme de Víctor Erice, Cerrar los Ojos. E o programa conjunto das curtas metragens de Pedro Costa (As Filhas do Fogo), Jean-Luc Godard (Drôles de Guerres) e do casal Straub & Huillet (Introduction to Arnold Schoenberg’s Accompaniment to a Cinematic Scene).
Anatomy of a Fall (2023), Justine Triet
Existiam, e existem, grandes expectativas para o filme de Justine Triet, vencedor da Palma de Ouro em Cannes. Anatomy of a Fall trata-se de um drama/thriller de tribunal que procura averiguar se uma mulher matou o seu marido empurrando-o de uma janela ou não, sendo o filho cego a única pessoa presente nas imediações do local. O facto de ser simultaneamente um drama e thriller não é uma categorização inocente nesta crítica. Enquanto thriller de reconstituição, depoimento e descoberta da verdade Anatomy of a Fall é excelente. Os níveis de tensão e ansiedade são altos, as interpretações acima da média (Sandra Huller é fabulosa interpretando uma personagem que gera tanto empatia como desconfiança) e o investimento do espectador é grande. Dir-se-ia que o filme procura a linguagem dos thrillers de tribunal americanos dos anos 90, até mesmo as séries de crime do outro lado do Atlântico (CSI, Law & Order), com uma fineza superior (existe “crítica” à mediatização criminal, bla bla), utilizando alguns artifícios de realização (zooms, POVs, etc) por forma a dar acção à sala. Por outro lado, o filme de Triet é também drama familiar puro, os incautos diriam “à europeia”, contrapondo esse hiper-realismo à linguagem do thriller de forma amplamente desconexa. O filme é extremamente exigente para o espectador. Carregado de diálogo e detalhe enquanto courtroom thriller, e de emoção intersubjectiva enquanto ensaio dramático, Anatomy of a Fall torna as suas 2 horas e meia longuíssimas, carregadas de informação, tópicos e intenções espalhados um pouco por toda a parte. À medida que o filme avança cria-se uma sensação de ansiedade de que algum twist está para vir, algo vai acontecer (o espectador nunca sabe a verdade do que aconteceu e é esse o conseguido propósito), mas esse momento nunca chega, substituindo-se antes por algumas catarses quentinhas, mas que apenas contribuem para essa sensação de que o clímax ainda está para chegar. Finalizado o julgamento o filme insiste em arrastar as suas personagens para um epílogo longo e vazio que apenas vem sobrecarregar o subtexto excessivo de algumas cenas que deveriam pura e simplesmente ser cortadas do filme (a relação entre a protagonista e o seu advogado é várias vezes mencionada, mas nunca explorada, e questionamo-nos porque razão está presente de todo). Após tanto investimento e um teasing infinito a sensação que fica é que o filme é tudo e o seu contrário. Que nos enganou, defraudando o espectador perante um thriller que, nessa vertente, é fabuloso, manieta na perfeição a emoção e atenção da audiência, mas depois nada lhe dá em troca. Anatomy of a Fall pretende ser um filme “completo”, mas está constantemente incerto do seu rumo, confirmando o seu enorme desequilíbrio com o seu final.
David Bernardino
O novo filme de Justine Triet está alicerçado em dois pilares fundamentais. Por um lado, a verdade, a sua natureza e como pode ser perseguida através da linguagem cinematográfica. O facto da verdade central do filme nos ser elidida pela realizadora aumenta a tensão e sublinha ambiguidade de todo o processo. Por outro lado, o desgaste de uma relação amorosa, a forma como nos podemos fazer tão mal mutuamente através de dinâmicas e rotinas nas quais muitas vezes não refletimos. Sandra Hüller representa esta ambivalência de forma sublime, deixando o espectador num limbo permanente entre a empatia e o desdém pela protagonista, e é nesta oscilação constante que se chega ao final do filme, com o mistério por resolver. E ainda bem.
Bruno Victorino
O herdeiro espiritual de “Anatomy of a Murder” (Otto Preminger, 1959) resgata para a atualidade a análise à construção de uma verdade em tribunal. Tal como o seu congénere americano, o vencedor da Palme d’Or 2023, em Cannes, deixa claro que essa construção tem muito pouco que ver com a procura da Verdade e muito mais com a geração de simpatia e aceitação de uma narrativa. Há, no entanto, duas diferenças cruciais: a assimetria de conhecimento – entre personagens e das personagens para com o espectador (não sabemos, à partida, se houve crime ou se a ré mente ao advogado e ao filho) – e a omnipresença da tecnologia moderna. À medida que o julgamento se desenrola, assistimos ao uso de gravações, reconstituições, maquetes e teorias de peritos de diversas áreas que, ao abrirem uma infinitude de possibilidades, não só turvam cada vez mais a capacidade de discernir os factos, como diluem progressivamente a linha entre a esfera privada e pública das vidas de Sandra (a arguida) e do seu filho, projetando o julgamento para outras instâncias menos sérias ou competentes do que o tribunal (programas noticiosos ou de comentário cor de rosa). O rigor formal de Justine Triet faz um brilhante trabalho de provocação, não apenas ao semear cirurgicamente a dúvida sobre a culpabilidade da sua personagem central, mas também, a nível metatextual, ao enfatizar a performance do julgamento. Os zooms inusitados, os movimentos de câmara repentinos e os POV shots forçam o espectador a entrar na espetacularização do tribunal. Percebemos o circo, mas não conseguimos parar de olhar, como se estivéssemos a assistir ao escandaloso julgamento de celebridades, com direito a comentário alargado no canal por cabo. O guião pode forçar a nota em alguns diálogos, tornando-os demasiado polidos ou exageradamente acutilantes, mas analisa de forma competente os discursos do zeitgeist e as formas como podem ser instrumentalizados, abrindo espaço à reflexão do espectador, sem o excesso moralista de quase todas as grandes produções atuais. Controlado, meticuloso e envolvente, este filme é tanto um triunfo de entretenimento como um dos olhares mais agudos sobre seu tempo.
Gil Gonçalves
Sandra é suspeita de assassinar o marido e Daniel, único filho do casal e cego, enfrenta um dilema moral como única testemunha num julgamento sobre uma relação que apenas presenciou mas nunca viu. Anatomy of a Fall é um filme tenso, ambíguo e que apesar de provocador, promete bem mais do que aquilo que dá. No seu todo, a obra revela-se um conjunto de fortes experiências emocionais para o espectador, que ao longo dos demorados 152 minutos consegue passar por vários estádios, do riso aos nervos, da esperança à ansiedade. A narrativa para além de desajeitada, é tão intermitente que, apesar da representação fiel das emoções, sentimentos e partilhas daquilo que é a vida privada de um casal, acaba por ser explorada a um ponto mais documental do que ficcional, não isto sendo algo necessariamente mau, no entanto, revelando algum exagero na crime scene investigation. O desempenho de Sandra Hüller é tão eloquente e arrebatador que a actriz puxa o filme para si, fazendo com que o restante elenco, por vezes, se perca em cenas não tão corpulentas.
Rita Cadima de Oliveira
Cerrar los Ojos (2023), Víctor Erice
Cerrar los Ojos foi filmado maioritariamente em digital, mas tem duas sequências filmadas em 16mm, que correspondem a duas cenas de um filme dentro do filme, que o protagonista (realizador de cinema) não conseguiu terminar devido ao desaparecimento de um dos atores. A textura da película, os enquadramentos e a própria temática destas sequências remetem diretamente para os anteriores trabalhos de Erice, ao contrário das imagens em digital. E é neste choque que o filme trabalha, entre a película e o digital, o clássico e o contemporâneo, o passado e o presente, a vida e o cinema. Cerrar los Ojos culmina de forma arrebatadora, concentrando nos seus últimos suspiros todo o peso da passagem do tempo, da memória e renovando a fé dos seus personagens e do espectador nas propriedades miraculosas do cinema.
Bruno Victorino
A duplicidade das imagens: por um lado, fragmentos do passado, falsas evidências de narrativas pessoais, às quais atribuímos a definição da nossa identidade; por outro, poderosos geradores de catarse, conexão e união. Cerrar los Ojos conta a história de um realizador que perdeu um amigo, um filme e uma carreira. Essas perdas deixaram-lhe a vida no limbo e, quando a história do desaparecimento do amigo é reatada, a sua prisão ao passado é evidenciada. É para lá que olha, através de imagens (fotográficas, mas também as evocadas por palavras e pessoas) em busca de respostas. O passado, irrepetível, só lhe devolve dor. O primeiro filme de Erice em 30 anos, e provavelmente o seu último, não tem qualquer vestígio de finalidade. Pelo contrário, mostra que numa vida dedicada a pensar imagens, rodeada por elas, só pode haver mais curiosidade e questões abertas sobre a sua relação com a vida fora dessas mesmas imagens (onde realmente somos o que somos, em cada momento, de forma permanentemente transitória). Sem medo ou esperança relativamente ao futuro, o realizador espanhol deixa-nos um verdadeiro monumento, que não devemos deixar de ver antes que os olhos se fechem de vez.
Gil Gonçalves
As Filhas do Fogo (2023), Pedro Costa
Algumas sequências de Cavalo Dinheiro (elevador) e Vitalina Varela (tempestade no telhado) já indiciavam uma aproximação de Pedro Costa a cenários progressivamente mais expressionistas, afastando-se da realidade. Em As Filhas do Fogo esse movimento concretiza-se de forma plena. Os cenários apocalípticos que as 3 protagonistas partilham no ecrã dividido em 3 inspiram-se na lava dos vulcões das suas origens Cabo-verdianas da Ilha do Fogo e marcam também uma viragem do cinema de Costa na direção musical. No final da curta-metragem, vemos imagens em 16 mm, captadas por Orlando Ribeiro na erupção do vulcão do Fogo, cujo naturalismo contrasta vincadamente com o restante filme. As Filhas do Fogo estabelece uma ligação desde Casa de Lava até aos mais recentes filmes de Pedro Costa, marcando o início de um novo capítulo formal e temático na obra do cineasta português.
Bruno Victorino
A 17ª edição do LEFFEST foi palco da estreia nacional do novo filme de Pedro Costa, exibido em triple bill com o póstumo “Drôles de guerres” de Jean-Luc Godard e “Einleitung zu Arnold Schoenbergs…” de Straub e Huillet. Um alinhamento apropriado, dada a manifesta influência dos últimos no primeiro. A música é a peça central de “As Filhas do Fogo”, de tal modo que talvez possamos classificar este como o primeiro musical de Costa. O filme abre em widescreen, com a tela dividida em três. Três mulheres, cada uma filmada em um take, contam – e cantam – sobre a sua situação. Partilham sentimentos de cansaço e sofrimento, mas fazem-no a partir de sítios diferentes: um infinito fundo de lava, uma desolação vulcânica (a imagem mais assombrosa do filme), e uma porta aberta. Com apenas 9 minutos de duração, talvez este seja um esboço de uma futura longa de Costa. Aguardamos ardentemente.
Pedro Barriga
Film Annonce du Film qui n’Existera Jamais : « Drôles de Guerres » (2023), Jean-Luc Godard
Um esboço para um filme que nunca veremos transformado em curta-metragem. Dividido em diversos sketches numerados vemos o método de trabalho de Godard in loco, a forma como o filme despontava na sua mente. Cada maquete corresponde a uma cena do filme que vai ganhando vida através da livre inserção de diálogos, banda-sonora e da própria narração de Jean-Luc Godard, cuja voz ouvimos pela última vez projetada numa sala de cinema.
Bruno Victorino
Introduction to Arnold Schoenberg’s Accompaniment to a Cinematic Scene (1973), Jean-Marie Straub & Danièle Huillet
Como companhia perfeita para as curtas-metragem de Jean-Luc Godard e Pedro Costa, com as quais partilhou o grande ecrã, surgiu o filme do casal de cineastas franceses Jean-Marie Straub e Danièle Huillet baseado na obra de Arnold Schoenberg. Apesar dos 50 anos que separam os trabalhos, Introduction não poderia soar mais atual. No estilo habitual de Straub & Huillet e com a presença pontual dos próprios à frente da câmara, vamos assistindo à leitura de textos de Schoenberg e às suas denúncias do fascismo. Ao contrário de outros trabalhos dos realizadores, a música de Schoenberg, que acompanha determinadas cenas, transmite ao espectador uma camada extra de gravidade, sublinhando o peso de cada palavra de luta e resistência judaicas contra o fascismo.
Bruno Victorino