Sexto dia de LEFFEST 2023, mais uma série de filmes exibidos na cidade de Lisboa. O prato principal do dia foi o mais recente filme de Richard Linklater, recebido com entusiasmo pelo público e com direito a salva de palmas no final. Destaque ainda para MMXX de Cristi Puiu, inserido na Competição Oficial do festival e para Celluloid Underground, que integra a Secção Descobertas, que procura olhares e realizadores pouco conhecidos do público.
Hit Man (2023), Richard Linklater
Hit Man é um filme palestra de Richard Linklater, sobre id, ego, superego e autoconsciência, ministrada através da encenação e da atuação fenomenal de Glen Powell, nos vários papéis que interpreta no filme. O resultado é uma obra metatextual, onde as preocupações do protagonista com a identidade e o trabalho de campo que o part-time enquanto falso hitman lhe permite efetuar, encarnando diversas personagens, rima com as preocupações do realizador, o próprio ato de fazer filmes e a natureza e arte da representação. Não querendo soar impulsivo ou hiperbólico, mas o melhor filme de Linklater em muito tempo, simultaneamente hilariante, tenso, existencialista e romântico, mesclando todos os ingredientes que tornam a sua obra tão idiossincrática.
Bruno Victorino
Richard Linklater (Before Trilogy, Dazed and Confused) regressa ao grande ecrã depois de Apollo 10½, o filme de animação que aterrou diretamente na Netflix e que pouco, ou nenhum, impacto causou. Hit Man, por outro lado, estreou no Festival de Veneza e foi adquirido pela plataforma de streaming Netflix por 20 milhões de dólares. O filme, baseado numa coluna de um jornal texano, e adaptado para filme pelo realizador norte americano em parceria com a estrela do filme Glen Powell (Top Gun: Maverick), acompanha Gary (Powell), um professor de Filosofia a tempo inteiro e ajudante da polícia em part-time. Quando o protagonista se vê obrigado a representar o papel de assassino contratado para apanhar aqueles que recorrem a este tipo de serviços, Gary ganha o gosto por esta interpretação de papéis, que o permite encarnar personalidades tão diferentes da sua e explorar questões de identidade que o atormentam. À medida que a situação se desenrola e Gary começa a perder o controlo da situação, fruto de uma relação com Madison (Adria Arjona), o filme questiona se somos realmente capazes de mudar ou se apenas encarnamos diferentes personagens.
Inserido na filmografia de Linklater, Hit Man não arrisca muito no que toca ao estilo ou à substância, mas não deixa de ser entretenimento de alto calibre, tenso em certos momentos, capaz de arrancar variadas gargalhadas aos espectadores e que tem em Glen Powell, que mostra aqui todo o seu charme e versatilidade, o seu maior trunfo.
Francisco Sousa
Apesar de inspirado na história verídica de Gary Johnson, Hit Man revela uma narrativa algo esgotada e um desfecho expectável, podendo-se assim resumir o novo filme de ação e comédia de Richard Linklater. Ele que mantém a tradição e consegue trazer para o público mais uma obra diversificada no que respeita ao género, característica da sua identidade versátil. Apesar de ser um realizador multifacetado, este thriller com laivos de noir, acaba por ser só mais um filme sobre um professor universitário que é também polícia infiltrado em part-time e que se apaixona pela envolvida no crime. O humor é constante, cabendo a Glen Powell a condução meritosa desta obra e, quem sabe, acabando Hit Man por ser o filme que lhe concede a maturidade e a realização plena como actor dado o seu elevado talento e carisma.
Rita Cadima de Oliveira
Olhando para ele de relance, Hit Man é apenas mais uma pequena comédia, levezinha, romântica, sobre um polícia que trabalha como assassino infiltrado que tem como objectivo apanhar em flagrante aqueles que o contratam para assassinar alguém, acabando por se apaixonar por uma suspeita. A maravilha de ter Linklater ao volante é a capacidade que o realizador tem de retirar da banalidade um filme que aparentemente não tem grande coisa para oferecer, fazendo dele um raro crowd pleaser capaz de retirar sorrisos aos mais sisudos. Afinal sempre tem algo para oferecer. Hit Man move-se na comédia negra, romântica e leve, e é absolutamente irrealista no que diz respeito ao seu argumento, mas nada disso interessa quando o propósito do entretenimento é cumprido e, que se saiba, o cinema ainda serve para deixar as pessoas bem dispostas. O filme é surpreendentemente sólido no que diz respeito à vertente escapista, dir-se-ia mesmo perto da perfeição. Glen Powell, que já havia despertado a atenção com um papel secundário em Top Gun: Maverick, tem finalmente a sua performance de consagração e prepara-se para ser um novo protagonista de Hollywood, seguindo os passos de Bale, Fassbender, Gosling ou Hemsworth. Estamos muito bem entregues. Ainda assim, a excessiva superficialidade, a falta de risco e de ideias, e uma tentativa algo frustrada de introduzir elementos noir e conceitos filosóficos sobre o Eu (o protagonista é também professor de filosofiae mestre do disfarce enquanto infiltrado), impedem Hit Man de se tornar algo mais do que um filme absolutamente recomendável para passar um bom bocado no cinema, longe do deleite da trilogia “Before” ou de “Boyhood”, arriscando dizer que cairá no esquecimento para ser apenas recordado como o filme em que Glen Powell se consagrou leading man.
David Bernardino
Celluloid Underground (2023), Ehsan Khoshbakht
O filme iraniano Celluloid Underground é uma ode à cinefilia, ao arquivo fílmico e à projeção cinematográfica. Através da sua história pessoal, narrada na primeira pessoa, o realizador relata a sua relação com um arquivista de filmes, que desenvolveu o seu ofício contra todos os condicionalismos provocados pela revolução islâmica, que lhe valeram penas de prisão efetivas apenas por possuir cópias em película de centenas de filmes. Conjugando as suas próprias filmagens caseiras com imagens de filmes iranianos e outros da história do cinema, Ehsan Khoshbakht constrói um retrato sensível e humano de luta e resistência contra a censura e a opressão, homenageando o seu tutor com quem partilhou a paixão pela arte cinematográfica.
Bruno Victorino
MMXX (2023), Cristi Puiu
Um filme de duração relativamente longa, filmado em poucas cenas, através de planos-sequência, com especial ênfase no diálogo entre os personagens. Poderíamos estar a descrever Malmkrog, a anterior longa-metragem do cineasta romeno Cristi Puiu. Nesse filme, a riqueza dos diálogos, a opulência do setting e a elegância da filmagem tornavam interessante a experiência da duração dilatada de cada plano. Não é o caso em MMXX. Apesar da tensão provocada pelos acontecimentos que decorrem fora-de-campo, que nos são transmitidos essencialmente através de diálogos entre os personagens, Puiu apresenta-nos uma obra desconexa, com pouca ligação entre as suas quatro cenas, que procura traçar o panorama da sociedade romena e das implicações da pandemia no seu contexto.
Bruno Victorino