O último dia de LEFFEST 2023 teve como grande destaque a estreia de Evil Does Not Exist, o mais recente filme do realizador japonês Ryûsuke Hamaguchi, recebido consensualmente mas sem o entusiasmo dos seus últimos filmes. O festival encerrou no Cinema Medeia Nimas com a exibição de Memory, de Michel Franco, que não agradou particularmente aos membros da nossa equipa.
Evil Does Not Exist (2023), Ryûsuke Hamaguchi
Depois da consagração internacional de “Drive My Car”, Hamaguchi regressa com uma obra mais oblíqua e contemplativa, menos palavrosa, mas nem por isso menos expansiva nas suas ambições temáticas. Pedindo emprestado o conceito de fronteira ao western, “Evil Does Not Exist” começa por nos submergir na vivência bucólica de uma povoação à beira de ser engolida pela “civilização”, na forma de um empreendimento de glamping. A clivagem entre a noção capitalista de progresso – pronta a ignorar disrupções ambientais, económicas e sociais em prol do lucro – e o modo de vida dos nativos é posta em evidência numa espantosa cena de reunião entre os aldeãos e os responsáveis de uma grande empresa de Tóquio. As sementes de uma violência velada, mas concreta, parecem indicar uma narrativa de luta entre dois mundos, mas Hamaguchi resolve subverter esse esquema clássico e, com os seus afinadíssimos dotes de diálogo, desenvolve e humaniza todas as personagens, recusando visões maniqueístas. Considerações sobre as relações humanas e laborais, num mundo progressivamente mais mediado pela tecnologia, sobre a oposição entre o controlo artificial da vida urbana e a imprevisibilidade da vida em comunhão com a natureza e, claro, sobre as possibilidades de manifestação do Mal cabem nas menos de 2h de filme, culminando num dos mais intrigantes finais do ano. É difícil dizer se “Evil Does Not Exist” é mais do que um exercício interessante que abre mais portas do que as que teria capacidade de fechar (se assim o quisesse), mas será difícil resistir ao seu mistério e à vontade de a ele regressar.
Gil Gonçalves
Hamaguchi explicou que criou Evil Does Not Exist partindo de uma banda sonora pré-existente de Eiko Ishibashi, poderosa e desconcertante, rodando o filme ao redor da sua música e não o contrário. Talvez isso explique um certo enchimento de película e ausência de diálogo. O segundo é bem-vindo. O primeiro nem tanto. Contando a história de uma pequena comunidade rural onde uma empresa de Tokyo se prepara para instalar um espaço de campismo e atrair turistas, o choque de interesses é declarado, contanto uma história bem conhecida em como o capitalismo por vezes destrói aquilo que era tão sereno, descaracterizando-o. Os primeiros 40 minutos do filme são ora silenciosos, ora orquestrados pela já referida banda sonora, filmando paisagens e pequenos momentos do dia a dia rural, numa ausência de criatividade imagética que parece procurar compensar a magreza do argumento. Quando finalmente “algo acontece”, a reunião entre a comunidade e dois representantes da empresa, vemos que existe algo de poderoso em Evil Does Not Exist, nesse conflito homem vs natureza, ou homem vs homem sendo ele mesmo a natureza. As intenções de fugir ao bem contra mal, procurando mostrar os dois lados do problema, estão sempre presentes, levando-nos à melhor cena do filme: o diálogo entre os dois representantes da empresa dentro do carro, filmada como uma mundanidade fora de série. O final, que muitos apelidarão de brilhante, é confuso e forçado, trazendo o filme para um campo metafísico, ou mitológico, difícil de compreender perante o realismo apresentado até então, mais uma vez denotando que a prioridade de Evil Does Not Exist é criar grandes momentos que acompanhem a sua banda sonora.
David Bernardino
O aparente equilíbrio e serenidade de uma aldeia perto de Tóquio é interrompido pela ambição cosmopolita e urbana de uma empresa que pretende usurpar terreno alheio para construir nessas terras uma modalidade de turismo glamping. A pacatez deste lugar imaculado é motivo suficiente para que os cidadãos se unam e oponham veementemente ao inerente estrago e conspurcação do local, resultante da mutação física e perniciosa que a construção acarreta. Nesta obra, Ryusuke Hamaguchi parece dividir o seu trabalho em dois, havendo claramente uma primeira parte documental, que se debruça sobre temas como o ambientalismo, a exploração territorial desenfreada, o abuso dos recursos, a ganância e o egoísmo. Numa segunda parte, Hamaguchi oferece-nos uma atmosfera de bruma e sombras, pairando alguma névoa na tela. Uma cerração tanto física como psicológica, tornando-se um filme algo violento com laivos de thriller. O êxtase foi colocado na cena final que resulta em visões divergentes do consumar da acção.
Rita Cadima de Oliveira
Memory (2023), Michel Franco
O novo filme de Michel Franco procura reflectir sobre a forma como determinadas pessoas são marginalizadas pela sociedade (doentes psiquiátricos, pessoas depressivas ou alcoólicas, etc), humanizando-as e mostrando que também elas têm espaço para amar. O problema é a forma como o filme demonstra tudo isso, com um argumento carregado de plot holes e um desenvolvimento de personagem que, quanto a Peter Sarsgaard (que sofre de demência) é inexistente, e quanto a Jessica Chastain (depressiva e com traumas infantis) é existente, mas carregado de contradições. Apesar das suas intenções, Memory acaba por reduzir os seus dois protagonistas a estereótipos unidimensionais que pouco fazem senão romantizar uma questão que existe e é importante ser falada. O filme apresenta-se ainda algo confuso a nível de realização, muitas vezes perdido no espaço, e repetindo cenas semelhantes umas atrás das outras, como se o processo criativo estivesse totalmente esgotado e Memory não fosse mais que uma declaração de interesses. Ainda assim existem duas belas interpretações que oferecem momentos melodramáticos interessantes, mas é insuficiente para descurar tudo o resto.
David Bernardino
Jessica Chastain é Sylvia, uma mulher fragilizada pelos traumas de infância que se fizeram traduzir num passado alcoólico. Fazendo do apoio ao próximo uma revitalização e rejuvenescimento pessoal, Sylvia, enquanto assistente social, leva uma vida simples e estruturada com a sua filha Hanna, mantendo-se afastada de altercações e turbulências sociais. Esta passividade é posta à prova quando Saul Shapiro a persegue até casa, após um encontro de ex-alunos do liceu. Fechando-se constantemente em copas, sendo escrava do alarme de segurança da sua casa, este encontro tem um profundo impacto em ambos pois é aberta uma fresta para o passado que a memória ainda permite despertar. Mas é este mesmo passado imperceptível, dúbio e mal explorado que nos traz uma obra falhada no seu storytelling, onde continua a perdurar alguma romantização e até banalização de temas como o alcoolismo, o abuso físico, sexual e psicológico na adolescência.
Rita Cadima de Oliveira