Especial LEFFEST 2023 Dia #1 – Poor Things, Afire e Breezy

Iniciou ontem o LEFFEST 2023, festival internacional de cinema que traz a Portugal alguns dos títulos mais badalados do circuito internacional de festivais do presente ano.

O primeiro dia ficou marcado pela estreia de dois dos filmes mais aguardados do evento, as novas obras de Yorgos Lanthimos e de Christian Petzold, tudo menos consensuais entre nós, principalmente Poor Things, que vai de 4 estrelas a bola preta.

Neste dia assinalou-se também a abertura da retrospectiva dedicada ao colosso Clint Eastwood, com a projecção de Breezy, um dos seus primeiros filmes.

Poor Things (2023), Yorgos Lanthimos

É difícil entender a forma como uma plateia cheia se ri e regozija com Poor Things, o inexplicável vencedor do Festival de Veneza (incrível como com alguma habilidade tudo passa por “arte”), mas talvez seja cedo para ter essa conversa. O filme de Lanthimos apresenta-se como carregado de pretensos símbolos e de um feminismo sexual acerca do empoderamento do corpo feminino usando como personagem central uma mulher ressuscitada com o cérebro de uma criança que a pouco e pouco vai descobrindo a realidade do Mundo. Essa é a versão romantizada. A versão real é que observamos Emma Stone a representar um degradante estereótipo de autismo e deficiência mental, em constante evolução como se se tratasse de um pokémon, a ser aprisionada e sucessivamente objectificada por homens que, sem excepção, procuram aproveitar-se sexualmente dela. A protagonista, sedenta de conhecer o Mundo e as sensações do corpo (afinal trata-se de uma criança), acede, empoderando-se, de uma forma grotesca que, aparentemente, tem imensa “piada”. O humor com que tudo é pintado, um péssimo gosto (haverá alguma “piada” no filme que não inclua genitais ou injúrias?), apenas confirma a pretensiosa provocação que o realizador pretende fazer (de vez em quando lembro-me de The House That Jack Built e dos espectadores que riram com o assassinato e desmembramento de crianças). Tudo poderia ser válido se existisse de facto alguma filosofia ou pensamento além da gratuitidade e do raciocínio masturbatório de auto-validação de valores de libertação, aqui completamente subvertidos com uma ligeireza cartoonesca que se presume inteligente, mas que é fast-food feroz, onde até o criador da protagonista se chama God (percebem? Deus? Ya, porque ele a criou, brutal!). Não se trata apenas de uma distopia, como já fizera em The Lobster, mas sim de um verdadeiro universo steampunk retro-futurista em péssimo CGI que apenas serve de decoração a um desfilar de uma provocação burguesa e interiores grandiosos à la The Favourite, desta vez ad nauseum, usando e abusando de uma câmara grande angular (o chamado olho de peixe), para efeitos estéticos decorativos. Existe até uma parte do filme passada em Lisboa, irreconhecível e aparentemente totalmente feita a computador, carregada de estereótipos bacocos, como o enfardamento de pastéis de nata e fadistas cantando à janela das suas casinhas. Espantoso como os mais básicos estereótipos conseguem, com alguma habilidade linguística e estética, passar por criatividade e intelectualidade. Poor Things é uma das grandes golpadas do cinema moderno, o pior filme de Lanthimos, e provavelmente um dos piores filmes que terei visto na vida.

David Bernardino

 

Um cirurgião (Willem Dafoe) salva a vida de uma mulher à beira da morte (Emma Stone). Mas este doutor Frankenstein criou um monstro – rebatizado Bella – que em breve não conseguirá domar. Lisboa, Alexandria, Paris e Londres são algumas das paragens que Bella fará na sua viagem de auto-descoberta. Uma odisseia de uma mulher a explorar o desejo sexual, de uma prisioneira a descobrir a liberdade, de uma pobre criatura a desvendar um mundo cruel. Poor Things é ele próprio um monstro, composto por várias partes. Um misto de comédia sexual e conto feminista. Trata-se do filme mais excêntrico de Yorgos Lanthimos, que inclui desde uma galinha com cabeça de porco a uma Emma Stone a praticar bondage. A atriz percorre uma linha difícil entre o convincente e o exagerado. Talvez a melhor interpretação da sua carreira. A direção de arte é assombrosa: um cruzamento entre as telas surrealistas de Salvador Dalí e os cenários pintados de Powell e Pressburger. Tudo isto envolto num ambiente punk, providenciado pela fantástica banda sonora de Jerskin Fendrix.

Pedro Barriga

 

Afire (2023), Christian Petzold

O mais recente filme do realizador alemão Christian Petzold desenrola-se em estilo aproximado ao de Éric Rohmer. Uma narrativa relativamente simples, junto à praia, e onde assumem especial protagonismo as dinâmicas entre os personagens, num tom levemente humorístico difícil de encontrar nos restantes filmes do cineasta. Mas a presença misteriosa da sempre sublime Paula Beer preserva e auspicia a complexidade e densidade dramática que se consuma nos minutos finais de Afire. E é o impacto da beleza melancólica dos derradeiros momentos do filme, contrastando com a leveza vigente até então, que deixam o espetador em devastadora catarse quando rolam os créditos finais.

Bruno Victorino

 

A tragédia, a comédia, o narcisismo, o egoísmo, a apatia, a inveja e o ciúme de quem, no mundo moderno, tudo tem mas acredita nada ter. Christian Petzold, vencedor do Grande Prémio do Júri do Urso de Prata, insere a catástrofe ambiental em forma de incêndio florestal para criar um desapego emocional e físico com o abrigo que é a casa. Esta casa impessoal, por vezes suja, por vezes arrumada, desorienta-nos e ameaça ininterruptamente as relações de quem a habita, mesmo que temporariamente. Leon, Felix, Nadja e Devid parecem, por vezes, estatuetas decorativas no decorrer da verdadeira personagem deste filme, a vida e a natureza conjugadas num romantismo poético tão belo e nefasto.

Rita Cadima de Oliveira

 

O mais recente filme de Petzold é sem dúvida um interessante drama acerca de um jovem em constante tensão com a dificuldade em conciliar o seu trabalho (Leon, escritor, tem que terminar o seu livro) com o facto de se encontrar numa casa de campo que divide com o seu amigo e uma mulher, Nadja, e o seu amante. O melhor de Afire surge quando o mesmo se transforma em comédia, piscando o olho aos azares fatídicos de uns irmãos Coen, rodeando Leon e todo o cenário de azar, falta de oportunidade e coincidência que o impedem de interagir da melhor forma com os seus companheiros e, sobretudo, de explorar o subtexto romântico que aparentemente se desenrola entre o seu protagonista e Nadja. Afire move-se entre o coming of age e o slice of life, entre o humor e romance, não sendo exactamente nenhum nem deixando de ser o outro. Ainda assim, o filme é extraordinariamente coeso, mas não suscita particulares emoções que teremos, decerto, encontrado em tantos outros filmes semelhantes a este.

David Bernardino

 

Breezy (1973), Clint Eastwood

Inserido na retrospectiva que lhe é dedicada pelo festival, Breezy é o terceiro filme realizado por Clint Eastwood e o primeiro não estrelado pelo próprio. No seu lugar surge um belíssimo William Holden, que protagoniza, juntamente com Kay Lenz, um melodrama de amor proibido, vincado pela diferença de idade e classe social dos personagens. Apesar de se desenrolar mediante os códigos cinematográficos do género, Eastwood compõe imagens e momentos marcantes, aproximando o filme de outra obra-prima do realizador, The Bridges of Madison County, lançada 22 anos mais tarde.

Bruno Victorino