Saímos do Fantasporto com um misto de sentimentos. A alegria de participar na histórica 45ª edição de um dos mais emblemáticos festivais portugueses não anula a amarga sensação de que os seus melhores dias pertencem ao passado e podem não regressar. Seja como for, não deixa de ser uma oportunidade privilegiada de tomar contacto com filmes que habitualmente não nos passariam pelos olhos e, nesse contexto, perceber a que nomes devemos estar atentos. Mais do que a qualidade da programação, há que enaltecer a sua diversidade, que entre a retrospetiva do Cinema Novo do Taiwan e as novidades do cinema independente e fantástico, nos dá uma visão alargada desse “submundo” cinematográfico.
A segunda (e derradeira) parte da nossa cobertura foca-se na secção mais emblemática do festival – a do Cinema Fantástico – tanto na vertente de longas, como de curtas-metragens. As críticas de Gil Gonçalves, Laura Mendes e Carla Rodrigues dão conta de tudo o que vimos pelo Batalha Centro de Cinema.
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The Silent Planet, de Jeffrey St. Jules – Secção Cinema Fantástico | Longas
Um filme de escala e intenções pequenas que, ainda assim, consegue complicar-se demasiado. Tudo o que realmente interessa aqui – a dúvida em torno das identidades de dois desconhecidos potencialmente hostis – surge envolto em demasiadas camadas acessórias que dispersam a tensão e o ritmo de The Silent Planet. A contextualização excessiva do primeiro ato, que detalha as mecânicas de uma distopia terrestre, da existência de refugiados alienígenas e do planeta de isolamento penal onde se encontram as duas personagens, expande demasiado o escopo para uma narrativa que pretende resolver-se em modo chamber piece. Não há impossíveis, mas para fazer caber tantos temas num formato tão compacto seria preciso um diálogo extraordinário, ou uma exploração muito dinâmica do cenário e da ação mano-a-mano entre as personagens. Sem nenhuma dessas valências, Jeffrey St. Jules (escritor/realizador) atola-se a tentar ligar todos os pontos deste sci-fi interplanetário com flashbacks, exposição, ou recursos foleiros (como o de um “gás vivo” que guarda e reproduz os piores pensamentos de quem entra em contacto com ele), roubando gravidade ao único conceito filosófico verdadeiramente forte que este verborreico filme tem: a memória como a frágil e ilusória base em que se erige qualquer identidade. É apenas quando se foca neste assunto – que é o mesmo que dizer quando dá espaço a Elias Koteas para elevar o material que lhe é conferido – que se vislumbra algum do pathos que poderia brotar de uma narrativa mais depurada de informação e da necessidade de se ancorar a explicações familiares.
Cielo, de Alberto Sciamma – Secção Cinema Fantástico | Longas
Visivelmente emocionado por regressar ao festival onde apresentou o seu primeiro filme, em 1996, o realizador Alberto Sciamma subiu ao palco para agradecer à organização do Fantasporto a confiança depositada no seu trabalho, bem como a disponibilidade de acolher a estreia absoluta de Cielo – um desvio dos seus habituais territórios nos géneros do terror e do policial. Rodado inteiramente na Bolívia, de onde o cineasta catalão voltou encantado por poder “trabalhar entre amigos e criar tudo em comunhão”, este road movie em modo realismo mágico é “peculiar”, mas (e Sciamma, que assim o definiu, nos perdoe)… não tanto assim. Isto porque a viagem de Santa (a estreante e espantosa Fer Monserrat), uma espécie de inversão da empreendida pela Alice de Lewis Carroll, parece sempre servir mais para trazer o espectador para o lado de cá do espelho do que a própria protagonista. Mais preocupado em dar-nos a entender o que se está a passar do que em operar uma mudança efetiva nas suas personagens, Cielo atravessa o país por paisagens de postal, percorrendo vários estereótipos de um olhar europeu sobre “a dureza” e “o insólito” da vivência sul americana, para operar a união de uma nova e (para quem nunca tenha visto nenhum filme) improvável família. Família adotiva, mas nuclear, a quem é atribuído o papel de uma redenção que nunca chegamos propriamente a ver, mas mais crucialmente, na qual nunca chegamos inteiramente a acreditar. Fragilizada pelo compromisso de Sciamma com a total segurança do espectador, a componente fantástica que o filme tanto se empenha em desmontar – mas da qual se recusa convenientemente a abdicar por completo – não chega para colmatar as lacunas do guião, no que às relações das personagens diz respeito. É, apesar de tudo, num segmento dessa desmontagem que encontramos o ponto de maior interesse do filme. A aguda observação dos mecanismos de construção de realidade das crianças – uma mistura entre o que apreendem das conversas e sistemas de crenças dos adultos e a interpretação literal que fazem de conceitos abstratos – seria, num filme melhor, o motor de uma viagem de perda de inocência, onde a descoberta estaria do lado da menina e não do espectador. Assim, relegada para um flashback expositivo, é um reflexo de uma estrutura confusa e de prioridades mal definidas, que apenas a espaços permite o encantamento.
River Returns, de Masakazu Kaneko – Secção Cinema Fantástico | Longas
Um rio contra a corrente dos nossos dias. Não propriamente por situar a sua ação no passado, mas por respeitar (e exigir) ritmos que já não conhecemos. À semelhança do tempo pré-digital em que decorre a sua ação, a lentidão deliberada de River Returns pede que estejamos presentes em cada momento. Seja pela importância que atribui a cada gesto ou som, seja pela forma como a mise-en-scène “aguarda” pacientemente, em cada plano, o crescendo de tensões entre os movimentos humanos e naturais. Não será tanto a história dentro de uma história que está aqui em jogo, quanto as possibilidades do “impossível” ao seu centro. Isto é: a ligação entre mundos através da artesanalidade. Afinal, é entrando na moldura (num enquadramento) do contador de histórias ambulante que passamos de um plano de realidade para outro; são taças esculpidas à mão unem um casal (não apenas no ato de devolução – de dádiva – que preconiza o seu encontro, mas também no ato que o consuma: uma muito erótica criação conjunta), e, também aí, dois mundos (porque dois modos de vida) opostos. O sedentário, racional e utilitário ao nómada, espiritual e despojado. Ao enaltecer esta unidade artesanal, River Returns enaltece a arte que lhe deu forma. A mesma que passou de um espectro itinerante, vagamente místico e com pouca perceção artística ao refinamento deliberado, assumidamente artístico, sim, mas também mercantilizado e comodificado que hoje conhecemos. Nem só o cinema permite viajar entre tempos no mesmo espaço, representar diferentes papéis e abraçar o inexplicável no fim – como acontece ao rapazinho miyazakiano que atravessa realidade e fábula – mas só o cinema mostra essa viagem. Só o cinema nos faz acreditar nela, bastando-lhe, para tal, pedir-nos – como River Returns nos pede. Um filme de fé, à imagem da sua arte.
Playing God, de Matteo Burani – Secção Cinema Fantástico | Curtas
O momento de criação é, em Playing God, um ato aterrador, mortificante. A vida, na aceção proposta, também o é. A relação entre aquele que cria e aquele que é criado é dissecada violentamente: por um lado, a criatura que se quer libertar das amarras da sua origem; em paralelo, o criador que, tal como sugere o título, interpreta o papel de um deus omnipotente que não conhece limites, fazendo ver as consequências devastadoras do seu modo autoritário e obsessivo de criar. O pasmo visual que o afinadíssimo stop-motion proporciona – é como se sentíssemos as texturas dos seres protagonistas deste filme – é, por vezes, levado ao extremo, abusando do apelo estético em momentos que não o exigem. Ainda assim, é um impactante conto pessimista que utiliza a deformação e o monstruoso – perfeitamente materializados nestas criaturas originárias de uma dimensão obscura, mas que refletem aquilo que há de mais humano – para a conceção de um quadro que, parecendo vindo de um imaginário subconsciente, deveras impressiona, sem que uma palavra seja dita.
Imago, de Rafa Dengrá – Secção Cinema Fantástico | Curtas
O poder que a invenção narrativa tem sobre nós – pensemos nas histórias que contamos e naquelas que nos chegam – tem uma tal pluralidade de sentidos, que faz com que seja um objeto apetecível e entusiasmante. Imago tem, à partida, algum mérito ao colocar esta questão em jogo, mesmo não indo muito longe na exploração das suas fronteiras. Porém, a grande falha está na dinâmica telenovelesca com que a apresenta. São as sequências demasiado longas, sem qualquer inovação, a representação que, tentando impor alguma sensação no espectador, acaba por irromper fingida, e a comicidade não propositada que prenunciam a ruína inevitável deste filme. É desastroso na tentativa de construção de um fim arrepiante, manipulando uma tensão previsível, para o superficial jogo de circularidade instaurado – com reminiscências de Nimic, curta-metragem de Yorgos Lanthimos – e, acima de tudo, na exibição da entidade (responsável por tudo?) que, para além de anedótica, só se caracteriza pela desproporção relativamente à proposta inicial.
There’s an App for That, de Andreas Flack – Secção Cinema Fantástico | Curtas
There´s an App for That tem na sua base a confusão e a dificuldade que provoca no espectador, que tenta perceber se a aparente inconsciência com que as personagens (inter)agem provém de ingenuidade ou de crítica humorística. Seja como for, a premissa – um mundo onde a clonagem está ao alcance de um clique no telemóvel – é anacrónica no contexto em que se apresenta, até ao ponto em que a realidade do filme se torna nada mais do que indefinida; a representação é excessivamente simplista e a introdução das relações humanas – tão necessárias seriam, e tão menosprezadas foram – sabe a pouco. O precipitado final pseudo-kafkiano sugere uma moral que, ainda que potencialmente aterradora, não soube integrar-se na restante narrativa e, por esse motivo, exibe-se em forma de terror – tecnológico e social – oco.
Fish, de Bishrel Mashabat – Secção Cinema Fantástico | Curtas
Fish é, tanto temática como esteticamente, um fruto do seu – que é o nosso – tempo. Uma crítica mordaz à cultura (ocidental?) do luxo, do consumo desmedido e irrefletido, e um alerta ambiental importantíssimo, ainda que tudo isto esteja escondido por detrás de uma espessa parede de humor inoportuno, assemelhando-se, por vezes, a um sketch. Apesar da fascinante premissa, o aspeto visual não acrescenta nada ao que está a ser transmitido – podia funcionar tão bem ou ainda melhor num formato literário. A intervenção da música e dos engenhos da realização cinematográfica surgem como exibicionismo que não colmata a insuficiência conceptual.
Lo que Sangra, de Juan González Henao – Secção Cinema Fantástico | Curtas
Lo que Sangra estabelece com firmeza a ambiência cinzenta, malfadada e implicitamente perigosa que raia de uma distopia, mas decide cortar pela raiz uma árvore que não tinha ainda florescido. A revelação da criatura apocalíptica – de um sensacionalismo escusado –, nos primeiros minutos de filme, constitui um anti-clímax que perdurará até ao fim. A chegada dos desconhecidos cuja confiabilidade é dúbia poderia ter sido explorada para além da dinâmica de armamento – e, por consequência, de poder: uma associação obsoleta –, à qual é dada um excessivo protagonismo. Os aspetos que sobressaem são a desolação de um homem que vê a sua família despedaçada, bem como a comunicação mística que se estabelece entre o mesmo e o seu filho nunca visto, mediada por uma câmara num computador. Apresenta-se-nos como inadequado o encadeamento do desespero inculcado na fé num terror desajeitado, que não faz jus à matéria profundamente humana.
Red Butterfly, de Uri Peleg – Secção Cinema Fantástico | Curtas
É necessário congratular o realizador Uri Peleg – que no início da sessão, onde marcava presença, não escondeu a notória referência a Lynch – pela imaginabilidade que é traduzida, essencialmente, através das partes animadas do filme. De facto, os pequenos animais mágicos e a forma como nos aparecem a nós, bem como ao protagonista, são magníficos, e a intrínseca relação que estabelecem com a interioridade deste último fazem com que a construção deste imaginário emirja original, ainda que assente numa tradição surrealista, que é respeitada e homenageada. Contudo, Red Butterlfy, em paralelo com estes momentos oníricos, ambiciona um naturalismo que é desadequado no panorama geral do filme, e a justaposição dos dois mundos, claramente distintos, desilude. A introdução da relação amorosa poderia ter sido frutífera mas, de uma pontualidade passageira, transforma-se subitamente no motivo fulcral e resolutório de toda a narrativa. O final, obedecendo a um tom moral, surge, assim, desconexo.
Crisantemo, de Raúl Diez – Secção Cinema Fantástico | Curtas
Crisantemo foi uma bela surpresa nesta edição do Fantasporto. A estética de videojogo, transmitindo plena consciência daquilo que é a sua própria fraturação e imperfeição, é extremamente atrativa, assim como o grave contraste com a eloquência verbal e temática é, de igual forma, gracioso e vanguardista. A Morte apaixonada por uma sua vítima é uma premissa interessantemente explorada – os movimentos de Zena e da Morte, e as suas interações, são convenientemente espalhados pelo espaço apocalíptico que se nos apresenta, numa dinâmica teatral onde figura a paixão melancólica, marcada pela angústia do passado e do futuro das duas personagens. Evocando um imaginário futurista e ciborgue, constitui uma proposta peculiar do que podem ser outras e novas configurações do discurso poético.
La Compañía, de José María Flores – Secção Cinema Fantástico | Curtas
O homem que observa a sua própria morte, ou os eventos que a ela levam, é um motivo de origens imemoriais. Assim sendo, é necessária cautela ao encarar esta ideia, de modo a não cair na repetição e saturação de abordagens. A introdução de uma multidão que, tal como o homem às portas da morte, assiste também ao desenrolar do acontecimento, poderia incitar a reflexões acerca do papel da sociedade na contemporaneidade, de como o indivíduo está a ela vinculada. Em La Compañía, esta multidão é apenas um recurso – aparentemente central – sem profundidade, cuja única função é entoar, em uníssono, uma canção banal, enquanto fixa os múltiplos olhares seus constituintes na câmara – cujo ponto de vista será o do(s) protagonista(s) – e que nos chega a parecer até constrangedor, lembrando um flash mob inapropriado. Uma tentativa falhada de representação de uma tragédia pessoal, com um plot twist final cujo propósito é inacessível, exagerando no apelo emocional. Munido, sem dúvida, de técnica no que toca à realização é, por essa mesma razão, um exemplo de que a forma sem o conteúdo é um trabalho desperdiçado.
A Goiva, de Alexandre Amado – Secção Portuguese Cinema
Há uma mensagem valiosa a ser apreendida algures em A Goiva. O filme começa e termina aí, nessa mensagem que por vezes se quer destapar clara mas que está, maioritariamente, intrincada num elóquio que, assim como as imagens que o acompanham, demonstra falta de uma visão amadurecida e assertiva que consiga harmonizar a violência do tema com uma formulação pessoal destemida. É percetível o excesso de ambição no que diz respeito ao experimentalismo, sustentado por referências simbólicas dispersas e por uma abstração débil que não complementam o contexto extra-dimensional em que está situado. No limbo entre um filme político e um filme-poema, se o texto não tem a força suficiente para nos fazer refletir, a imagem ainda mais contribui para a perda de significados a meio caminho.
Histórias Estranhas 2 – Demónios e Possessões, de Rodrigo Aragão, Salles Fernandes, Filipe Ferreira, Ricardo Ghiorzi, José Pedro Lopes, Henrique Nuzzi – Secção Première e Panorama
As antologias de terror são sempre uma aposta interessante, mas arriscada. Uma roleta russa onde, a troco de uma diversidade de abordagens e estilos, aceitamos que haverá altos e baixos na qualidade dos segmentos. O formato tem o seu encanto precisamente por isso: permite-nos experimentar o medo em doses concentradas, explorar diferentes visões e descobrir novas formas de reimaginar o mesmo tema. Infelizmente, nem todas as antologias conseguem tirar partido destas vantagens, e Histórias Estranhas II é um exemplo de um projeto que, apesar das boas intenções, falha na execução.
Produzida entre Portugal e o Brasil, a antologia é composta por seis curtas, todas orbitando em torno da ideia de demónios e possessões. Contudo, pouco tira partido das vantagens inerentes ao formato, sofrendo de um amadorismo generalizado – principalmente no aspeto técnico. A fraca iluminação, cenários desinspirados e um trabalho de câmara rudimentar dificultam a imersão e retiram credibilidade às histórias. “Insonho” (do português José Pedro Lopes) e “Spalla” (de Filipe Ferreira) são de longe as curtas mais visualmente competentes do conjunto, embora no caso de “Insonho” seja de lamentar a inserção de uma criatura sobrenatural que pode ter ficado bem no papel, mas que claramente não havia orçamento para concretizar de maneira eficaz. Já “Necromância” (Rodrigo Aragão) é a que melhor entende as regras do jogo, abraçando sem medo o espírito série B com uma história direta e despretensiosa, um pouco de gore e maquilhagem decente. Mas mesmo aqui, as limitações técnicas cobram o seu preço – aparece um green screen tão tosco no ato final que se torna impossível interpretá-lo de outra forma que não seja paródia. O que, dada a capacidade que o terror tem de rir de si próprio, não seria disparatado, mas fica estranho ensanduichada entre outras 5 curtas que se levam demasiado a sério.
A última curta, “Cumaru” (de Salles Fernandes) é aquela que mais facilmente se poderia imaginar como uma longa, a única que nos traz algo verdadeiramente diferente. Numa veio muito eco-horror (atual! pertinente!), fala sobre um espírito da floresta amazónica que se vinga daqueles que exploram os seus recursos. A ligação a mitologias e histórias locais é algo sempre enriquecedor no género, portanto a curta tem o coração no lugar certo. Infelizmente, a execução não está à altura do potencial da curta. A curta – e o filme – termina com um jump scare tão preguiçoso que só poderá surpreender quem nunca recebeu aquele infame vídeo do carro na estrada num e-mail de 2007.
No final, fica a sensação de incompletude e insatisfação. Há que valorizar o esforço de criar espaços para novos talentos do cinema de género, e o terror sempre foi um terreno fértil para isso. Muitos realizadores começaram as suas carreiras em produções independentes, autofinanciadas ou através de estúdios como a Troma. No entanto, mesmo com poucos recursos (ou especialmente por causa disso) é essencial que os criadores tragam algo novo, fresco e memorável para a mesa. Aqui, a maior parte das curtas não cumpre e o baixo orçamento não pode ser desculpa para a falta de criatividade, de arrojo. Algumas apresentam ideias com potencial, mas falham em desenvolvê-las; outras limitam-se a repetir clichês do género sem grande tentativa de inovação; quase todas padecem de uma produção visual muito abaixo do razoável.
A parte boa? Pelo menos, são curtas.
Everyone is Going to Die, de Craig Tuohy – Secção Cinema Fantástico | Longas
Um filme de invasão doméstica que, ironicamente, nunca consegue invadir a mente de quem o vê. Passa-se a maior parte do tempo a recordar outros filmes do género — filmes melhores, mais tensos, mais conscientes do que realmente faz um thriller deste tipo funcionar. Em vez disso, é-nos servido um cocktail desequilibrado de humor inicial estranho, tensão mal cozinhada e um terceiro ato que tenta ser devastador, mas só nos deixa a perguntar se o realizador percebeu o que fez.
A premissa é simples: duas mulheres mascaradas invadem a casa de um empresário rico, onde ele celebra o aniversário da filha. O primeiro pet peeve surge na utilização das máscaras – para além de ser, assumidamente, aleatória (pelo menos no caso de uma das mulheres) são máscaras muito pouco icónicas. Neste tipo de filmes, assim como nos slashers, quando se aposta no uso de máscaras, é importante fazer com que sejam icónicas. E estas têm um bom conceito – máscaras de Tragédia e Comédia – mas não foram desenhadas nem aplicadas da melhor maneira. Bom, aceitando que é um pet peeve, avança-se.
O filme tem muitas falhas, mas as principais são nos mínimos olímpicos para este género: ritmo e tensão. São quatro personagens numa casa — um setup que devia ser uma receita infalível para claustrofobia e suspense, predadores e presas contidos por 4 paredes. Mas o argumento nunca encontra o seu ritmo, nunca cimenta as suas mensagens de forma séria. O realizador parece ter percebido tarde demais que quatro personagens dariam um body count demasiado baixo, então insere mais duas. Mas, em vez de usar estas novas personagens para incorporar a narrativa e elevar a tensão, despacha-as sem cerimónia. Essas sim, morrem. O resto? Nem todos (#desilusao).
A motivação das intrusas vai-se revelando a conta-gotas, até desembocar numa daquelas reviravoltas que quer chocar e devastar, mas só consegue arrancar um “mas espera, era isto?!”. O filme quer ser um soco no estômago, mas acerta no vazio. A intenção até pode ser nobre, há um comentário sobre trauma e vingança algures aqui, mas a abordagem é tão descuidada que parece desrespeitosa sem o querer ser. E quando a verdade vem à tona, fica a dúvida sobre se o realizador percebe as implicações do que acabou de mostrar.
Tecnicamente, o filme é razoável. Comparando com Histórias Estranhas II, sai-se muito bem. Mas, a espaços, irrita. As sequências de drone são gratuitas (sim, já se percebeu que a casa é isolada), as atuações não são incríveis – talvez se destaque Jaime Winstone, que põe o amplificador no 11 para o seu papel de psicopata e isso, pelo menos, mantém-nos acordados – e o uso de música deixa muito a desejar.
No final de contas, é um filme que tenta emular o que de melhor se faz dentro do subgénero de invasão doméstica mas procura fazê-lo com recurso a temas graves tratados com leviandade e falta de noção. Quer dizer algo sobre trauma e vingança, mas a mensagem dissolve-se num clímax absurdo. A maior desilusão é que, de facto, nem toda a gente morre. Publicidade enganosa.
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