Especial Fantasporto: Parte I

EquipaMarço 5, 2025

Criado por um conjunto de cinéfilos proveniente do movimento cineclubista da sua cidade, o Fantasporto teve a sua primeira edição em janeiro de 1981, sob o nome Mostra Internacional de Cinema Fantástico. Desde então, tem tido sempre lugar entre o fim de fevereiro e o início de março, sob o nome pelo qual é hoje conhecido. O cinema de género, particularmente o que se dedica ao fantástico (terror, ficção científica, entre outros) é sempre o foco principal, mas os programas nunca descuraram estreias ou retrospetivas das mais diversas categorias e geografias, mantendo-se sempre fiéis ao espírito de curiosidade e cinefilia dos seus fundadores.

A centelha continua acesa 45 edições depois, com um line up multifacetado, subdividido em 7 secções (para além das de Abertura e Encerramento), das quais destacamos: Cinema Fantástico (Longas e Curtas), FantasClassics (este ano a retrospetiva é dedicada ao tema Retro Women’s Revenge and Desire In Taiwanese Cinema) e Portuguese Cinema (centrada maioritariamente em projetos portugueses realizados no âmbito universitário). Até dia 7 de março, haverá ainda espaço para diversas Movie Talks, com apresentações de projetos, palestras e debates.

Depois de um arranque em falso, devido a greve da administração pública, as sessões começaram dia 1 de março, nas salas 1 e 2 do Batalha Centro de Cinema. Eis o que vimos até agora.

 

*

 

Chainsaws Were Singing, de Sander Maran – Secção Cinema Fantástico | Longas

Vendo o trailer e lendo a sinopse de Chainsaws Were Singing, era fácil antever que este filme seria um caso de tudo ou nada. O atrativo principal era a possibilidade de encontrar uma fuga à norma. Um projeto verdadeiramente independente que, para lá de sucesso ou fracasso, pudesse conter algum do rasgo que vai rareando num mar de conteúdos cada vez mais homogéneos. Infelizmente, não foram precisos mais de 15 minutos para que o ar dos tempos se fizesse sentir nesta autoproclamada mescla cómica de Texas Chainsaw Massacre, Monty Python e Les Misérables. A narrativa que se anunciava nonsense é, afinal, profundamente derivativa do material que propõe satirizar, integrando, passagem a passagem, grande parte do clássico de terror em que se inspira, bem como o decalque de dois sketchs de Monty Python and the Holy Grail. Com Misérables, a única parecença é a inclusão de alguns momentos cantados – escolha que o autor, Sander Maran, justifica devido ao seu desprezo por musicais (pode ler-se “preconceito” ou “desconhecimento”, a julgar pelo senso comum das gags brejeiras de que esses segmentos estão imbuídos). Se esta atitude não fosse suficientemente suspeita, bastaria dizer que este é um daqueles exercícios que fundamenta e justifica o seu humor – e, realmente, toda a sua existência – no pressuposto de ser conscientemente mau. Reiterando constantemente essa “qualidade”, refugia-se na graçola ininterrupta para disfarçar a ausência de qualquer ímpeto criativo, toma escatologia por subversão e concentra todos os esforços técnicos (10 anos de pós-produção!) em copiar a forma de um “série b” (como se o valor desses filmes se jogasse no aspeto que têm). Incapaz de homenagear sem repetir e pouco interessado em compreender (quanto mais subverter) as convenções que enxovalha, Chainsaws Were Singing é o pior de dois mundos. Certamente orgulhoso da sua imbecilidade, mas nem por isso menos imbecil.

Gil Gonçalves

 

O Apóstolo, de Fernando Cortizo – Secção Première e Panorama

O primeiro stop-motion estereoscópico europeu, O Apóstolo é interessante tanto pelo que representa como pelo que procura entregar. Apresentado na secção Premiére & Panorama desta 45ª edição do Festival, o filme já tinha sido exibido no Fantasporto em 2013, onde arrecadou o Prémio Especial do Júri.

Curiosamente lançado na mesma época que Frankenweenie, de Tim Burton e ParaNorman, de Chris Butler e Sam Fell, O Apóstolo partilha a afinidade pelo sobrenatural, embora opere numa frequência distinta; obviamente de orçamento bem mais modesto e personagens visualmente mais rudimentares. No caso de O Apóstolo, seguimos um criminoso foragido que encontra refúgio numa aldeia isolada, apenas para perceber que os seus habitantes superficialmente simpáticos afinal têm uma agenda oculta (de várias maneiras). Para quem está familiarizado com histórias sobre forasteiros que tropeçam em vilas amaldiçoadas, há uma inevitável sensação de déjà vu. Mas os elementos enraizados na mitologia galega impedem o filme de cair num terreno demasiado previsível.

O Apóstolo não é propriamente um filme de terror; falta-lhe impacto. No entanto, não há como negar que é atmosférico. O grande trunfo do filme reside nos cenários – texturados, detalhados e minuciosos – que evocam uma Galiza rural, com uma paisagem impregnada de sombras e lendas. O fascínio está nos pormenores: a madeira gasta, a capa dos livros envelhecidos, as rachaduras nas telhas de xisto e o nevoeiro que serpenteia entre as árvores. Cada textura contribui para criar um ambiente que, mesmo sem alcançar a perfeição, é eficaz. Todavia, o character design não tem a mesma qualidade. As figuras humanas são simplistas, com pouco carisma, pouca expressividade. Algumas, ao tentarem remeter para ícones do cinema, caem numa imitação vazia que se torna, no mínimo, uma distração.

O Apóstolo é, sem dúvida, um trabalho de amor. Fica evidente a dedicação, o esforço e a entrega de todos quantos se envolveram na produção. Mas é também um filme que oscila entre o engenhoso e o inacabado, entre a promessa de um clássico e a realidade de um projeto que nunca chega a afiar verdadeiramente os dentes. Ainda assim, o respeito que demonstra pelas lendas galegas e pelo misticismo local torna-o um objeto raro e digno de atenção, sobretudo numa península que tão raramente transforma o seu próprio folclore em cinema. Fica a questão: porque é que, em Portugal, continuamos a ignorar a nossa própria mitologia, igualmente rica, na produção cinematográfica?

Carla Rodrigues

 

Ghost Killer, de Kensuke Sonomura – Secção Cinema Fantástico | Longas

O Fantasporto sempre foi um festival de descobertas, e, por muitos anos, foi o palco onde as melhores novidades do cinema de terror e ação asiático se davam a conhecer. Ao longo dos anos, filmes como Audition, de Takashi Miike (1998), A Tale of Two Sisters, de Kim Jee-Woon (2004) ou Oldboy, de Park Chan-Wook (2003), marcaram a história do Fantasporto e consolidaram-no como a montra de excelência onde se expunha um cinema de género arrojado, diferente, inovador. Com este histórico, seria razoável esperar que Ghost Killer, uma comédia de terror oriunda do Japão, estivesse à altura do desafio. A premissa até tinha potencial. O filme gira em torno de Fumika Matsuoka, uma jovem universitária que encontra uma bala perdida e acaba possuída pelo espírito de Kudo, um assassino que foi morto por essa mesma bala e que precisa de se vingar para encontrar paz no Além. Uma protagonista que, inesperadamente, se vê a partilhar o corpo com um espírito vingativo? Dir-se-ia que o difícil é estragar. Mas este filme lá conseguiu.

Desde o início, o filme falha em estabelecer uma identidade clara. O terror não existe e o humor, quando tenta entrar em cena, é pueril, carente de sofisticação. A dinâmica entre Fumika e Kudo é forçada, e a maneira como o filme procura fazê-la evoluir de um gimmick puramente cómico para algo genuíno é oca.

As artes marciais (que poderiam ser o grande trunfo do filme, já que a comédia e o terror se estatelam), lá nos dão uma ou duas sequências engraçadas, mas ainda assim pouco notáveis, apesar da experiência do realizador Sonomura no cinema de ação. Num mundo onde temos performers como Scott Adkins, Tony Jaa ou Iko Uwais (e até Keanu Reeves) a ajudarem a redefinir o cinema de ação e artes marciais nos últimos anos, Ghost Killer oferece um espetáculo que, nos seus melhores momentos, é agressivamente OK, longe de ser memorável.

A tentativa de explorar temas como vingança e redenção é sabotada por soluções narrativas muito superficiais. Ghost Killer é um filme sem substância, incapaz de gerar a energia ou a tensão que um bom terror de artes marciais deveria ter. Embora tenha encontrado alguma receção positiva entre o público que estava na sessão, para quem acompanhou os grandes momentos do Fantasporto, este filme está longe de honrar o legado do festival.

Carla Rodrigues

 

Zero, de Jean Luc Herbulot – Secção Semana dos Realizadores

Depois do amargo de boca de Ghost Killer, o melhor mesmo era começar do Zero.

E assim foi. Zero foi um filme que, longe de ser brilhante, recuperou alguma boa vontade. A narrativa segue dois americanos, estranhos entre si, que se encontram no Senegal com bombas presas aos peitos. Eles não sabem quem lhas pôs, tão pouco por que foram escolhidos, mas são forçados a completar uma série de missões — atribuídas por uma voz sem corpo (Willem Dafoe, de todas as surpresas) — antes que o temporizador das bombas chegue a… bom, a zero. O que se segue é uma corrida pelas ruas de Dakar, que por vezes lembra a energia frenética de Crank, mas sem nunca ser capaz de atingir esse nível. Uma espécie de Crank light.

Os protagonistas, um tipo de Wall Street e um brutamontes, constroem uma dinâmica de “casal improvável” com potencial cómico. O problema é que esse potencial nunca é realizado, porque a construção dos personagens é amadora, com diálogos medíocres e caracterização superficial. É difícil importarmo-nos com os seus problemas quando não temos a oportunidade de os conhecer bem, e a tensão que deveria aumentar à medida que o tempo se esgota nunca se instala; o desconforto não chega.

Ao longo do filme, não fica claro o que está em jogo, e as tarefas que os dois vão recebendo são frustrantemente aleatórias. O filme é como que fragmentado; composto por um ou outro momento interessante que nunca forma um todo. O final tenta justificar esta estrutura errática, mas é too little, too late.

O que Zero faz bem, no entanto, é ser visualmente apelativo. A cinematografia de Grégory Turbellier captura muito bem a vibração do Senegal, das ruas caóticas aos bairros calmos e aos arredores mal-amados da cidade. O recurso a técnicas como o tilt shift, entre outras, faz com que a própria estética do filme converse com temas como a perceção externa da realidade africana e a rejeição dos estereótipos ocidentais — talvez de forma mais eficaz do que a própria narrativa.

Zero tenta transmitir algo sobre a interferência internacional nas vidas africanas. Mas, apesar da intenção, o filme não consegue passar a mensagem com a clareza que se pedia, esbarrando num guião fraco e atuações inconsistentes. Entretém de forma superficial, sem nunca cativar. Porém, tem potencial para provocar alguma reflexão. Se assim for, a conversa gerada depois dos créditos pode bem ser mais satisfatória do que o filme em si.

Carla Rodrigues

 

Mr. K, de Tallulah H. Schwab – Secção Cinema Fantástico | Longas

Antes do ponto, uma tangente. É sempre um prazer ver um ator com uma longa carreira de typecasting em papéis pequenos ter uma oportunidade de protagonismo, especialmente num filme cuja ambiência se encaixa no tipo de atuações pelas quais obteve reconhecimento. São momentos privilegiados em que o rosto peculiar ou o corpo desalinhado da estética oficial deixam de ser entraves e passam a ser decisivos. Mr. K é, neste sentido, um momento privilegiado para Crispin Glover, um espécime em vias de extinção (não porque Hollywood, onde decorreu o grosso da sua carreira, tenha alargado o espectro de permissividade estética, mas por esses desvios da norma estarem a ser progressivamente obliterados em clínicas de especialidade), cujo aspeto físico vinculou a personagens bizarras, antissociais e vagamente ameaçadoras, mas sempre vulneráveis. Para o bem e para o mal, foi a esse corpus que ficou associado, é por ele que é admirado e é ele que é carinhosamente celebrado em Mr. K.

A terceira longa-metragem de Tallulah H. Schwab conta a história de um mágico solitário que entra num hotel de onde não consegue sair, onde se passam coisas estranhas, junto de hóspedes estranhos. O entusiasmo pré-diegético de um filme feito à medida do seu protagonista mantém-se nos primeiros momentos da ação: o set design é muito bem conseguido, a fotografia e a iluminação são surpreendentemente fortes para uma produção europeia de segunda linha e o mistério da premissa (enquanto não começa a ser desvendado) é relativamente bem sustentado em sequências de absurdismo bem coreografadas. Infelizmente, o curso de “inspiração kafkiana” do enredo (palavras da cineasta) esvazia-se cedo. Depois de uma integração forçada do protagonista no staff da cozinha do hotel – parábola sobre os mecanismos ideológicos e opressivos do mundo corporativo – o guião perde-se por diversos caminhos possíveis que nunca chegam a cumprir-se. Dessa parábola, ameaça passar para o tropo do herói messiânico, que prontamente troca por um de pessimismo individualista, a caminho de um final aberto, que, entre o esotérico e o pseudo-existencialista, soa apenas a desistência. Neste entretanto, vai deixando no ar notas de comentário social com o mesmo grau de consequência de uma conversa de circunstância e a mesma profundidade de uma instagram story.

Schwab cai numa esparrela típica de estudante universitário: a ambição, tão desmedida quanto frágil, de querer referenciar todas as influências artísticas e intelectuais que tem, sem realmente saber como aprofundar nenhuma delas. Dá vontade de perguntar para quê, uma vez que o filme flui sempre melhor na sua vertente mais funcional, isto é, precisamente quando se deixa ir no pequeno puzzle que criou e não tenta forçar uma nota de profundidade. Quando não lança para o ar insinuações políticas (por vezes contraditórias) com as quais não está verdadeiramente interessado em comprometer-se. Menos pode mesmo ser mais, e a última sequência é a prova cabal. A mais reveladora de que toda a estranheza de Mr. K existe única e exclusivamente com o propósito de catalogar o próprio filme como “estranho”. Não haveria problema nenhum em assumi-lo desde o início. É na autodenúncia, e não na simplicidade, que fica a mancha.

Gil Gonçalves

 

Welcome to the Village, de Hideo Jojo – Secção Semana dos Realizadores e Orient Express

Blue Velvet sem abstrações, Rosemary’s Baby com twist materialista. Eis os luxos a que Hideo Jojo se pode dar, em Welcome to the Village, para tecer o seu thriller de costumes do meio rural japonês. A premissa é simples (e batida): jovem casal da cidade muda-se para o campo em busca de uma vida mais simples e pacata, é inicialmente bem acolhido por uma comunidade prestável, mas conservadora e suspeitamente metediça. Naturalmente, uma praga grassa sob a superfície idílica e este encontro de dois mundos acabará em sangue. Com um bom controlo de elementos narrativos do terror e do thriller psicológico, Jojo sabe criar suspense e subverter as expectativas do espectador, deixando-nos a adivinhar qual a natureza da corrupção da comunidade. O interesse excessivo na procriação do casal, os vizinhos amedrontados e bizarros e a unidade da aldeia sob a voz de comando de um líder informal parecem apontar para percursos narrativos já trilhados na área do culto (e do oculto). Quando o véu se vai levantando, há algumas escolhas duvidosas e a necessidade de explicar vários dos temas, mas a linearidade e factualidade dos eventos acabam por funcionar a favor de uma crítica social que não precisa de metáforas e que se estende mais do que parece em pequenos detalhes. Quer os violentos costumes ancestrais, que ainda hoje perduram nas aldeias do Japão, quer a noção do perigo que deriva do divórcio entre instituições do Estado e cidadãos fornecem o combustível necessário para o drama. Perdoamos a falta de subtileza do enredo e a necessidade de Jojo de repetir à exaustão simbologia visual pela caracterização das personagens (em específico a do chefe da aldeia, que nos surge tão ameaçador, quanto sedutor, tão agressivo, quanto patético) e pelo olhar desapaixonado que recusa maniqueísmos ou manipulação emocional.

Gil Gonçalves

 

Mom, de Adam O’Brien – Secção Cinema Fantástico | Longas

O tema da maternidade não é propriamente território inexplorado no terror. O trauma do pós-parto, associado a tensões conjugais e ao estigma em torno da difícil vinculação entre mães e recém-nascidos, foi amplamente dissecado neste e noutros géneros. Uma abordagem direta, como é a deste Mom, correria sempre o risco de redundar num filme derivativo (e a caracterização básica das personagens não deixa dúvidas de que o será). Por outro lado, havia muitas fontes de onde beber para criar uma narrativa coesa. Adam O’Brien e Philip Kalin-Hajdu servem-se de muitos clichés para contar a história de Meredith (Emily Hampshire), Jared (François Arnaud) e do seu bebé, mas nem para copiar têm jeito. A  incapacidade de dar seguimento a vários dos plot points ou de os pensar estruturalmente rouba qualquer sentido de timing ou de gravidade aos momentos climáticos. Problema agravado por uma mise-en-scène que parece pensada para resolver cada cena por si, ao invés de a ver como parte de um encadeamento lógico. O drama telenovelesco é arrumado numa fórmula repetitiva, rígida e previsível, que prejudica a sequência do enredo e inviabiliza qualquer “revelação”. Há dois exemplos flagrantes: um é a introdução do elemento sobrenatural, que chega depois de já estar bem claro, através de diálogos expositivos (alguns dos quais num consultório de psiquiatria) e comportamentos erráticos de Meredith, que a sua exaustão mental começou a dar lugar a uma dissociação da qual tanto ela como o marido (como o espectador) têm noção. Que espaço fica para dúvidas sobre a natureza das imagens e sons perturbadores que assolam a protagonista? O outro caso é a detonação do principal foco de tensão a meio do filme, sem nada que sustenha (e, portanto, justifique) o que vem a seguir. Depois de estar “tudo estragado” é que Meredith se entrega por completo a um mundo de fantasia que, mais uma vez, já sabemos não existir. Além do desinteresse narrativo, ficamos cerca de uma hora a acompanhar o dia a dia de uma mulher perturbada sem um motivo válido para tal. A errática progressão de eventos e a sua total literalidade (mesmo que involuntária) tornam tudo absurdamente caricatural e amargamente miserabilista. À estupefação de um despropositado e desnecessário twist final sobrepõe-se um longo suspiro de alívio.

Gil Gonçalves

 

The Woman of Wrath, de Tseng Chuang-hsiang – Secção FantasClassics

Lançado em 1984, este clássico do Cinema Novo de Taiwan é uma adaptação do premiado texto The Butcher’s Wife, da escritora feminista Li Ang. Naturalmente, o foco é a condição feminina, em específico a degradação a que as mulheres das classes baixas eram sujeitas no meio rural, nos anos 40. Contudo, a história central de Ah-Shih, jovem mulher violentada física e sexualmente pelo marido, é apenas o tronco de onde ramifica um retrato de muitas outras violências. O filme abre com memórias a preto e branco, enfatizando o vazio de natureza física e espiritual daquela comunidade: Ah-Shih assiste ao suicídio da mãe, depois desta ser apanhada pela família a trocar sexo por comida. “Como vou eu encarar os meus antepassados?”, pergunta o homem que acabara de humilhar a mulher “desgraçada”, num choro convulsivo e genuinamente desesperado. Como pode um estrato social inteiro não ser violento quando, além da pobreza, se autoflagela em nome de normas e valores repressivos que os seus indivíduos interiorizaram? Neste aberto momento inicial fica dado o mote para tudo o que veremos, de forma mais contida e subtil (mas igualmente incomplacente), daqui para a frente.

Do preto e branco, passamos a coloridos quadros de paisagem costeira. Ah-Shih é oferecida em casamento pelos tios a um talhante, de forma a não passar fome. A beleza e placidez da aldeia para onde se muda são um contraste forte para a brutalidade da sua vida doméstica, às mãos do marido – um homem enigmático, reprimido e revoltado. A inclemência com que assistimos aos maus tratos físicos e sexuais que aplica à mulher, ou à forma desapaixonada como mata porcos no talho, entre constantes e lancinantes guinchos, contrasta com a surpresa de olhares de confusão e vulnerabilidade, que revelam uma tristeza oculta, quando está só; com a mágoa velada que manifesta, ante o desejo de partida da prostituta por quem se subentende estar apaixonado. Esta caracterização não menoriza o peso dos seus atos, mas revela nuances na abordagem de realização de Tseng Chuang-hsiang. A incomplacência com que mostra a agressividade é tão justa como a humanidade que devota aos sentimentos ocultos que transparecem nos rostos e nos corpos das suas personagens. O mesmo acontece com Ah-Shih. Naturalmente assistimos ao medo e repulsa que o seu corpo manifesta nas primeiras interações com o marido, mas também à pequena grande resistência de começar a manter-se em silêncio durante uma violação. Vemos como a memória da mãe, no sorriso de uma criança, lhe oferece um momento de paz e como a raiva acomete o seu rosto, quando se vinga, perto do final.

Tudo se abre aos nossos olhos em composições que revelam a tensão das mais mundanas realidades do quotidiano. Mesmo quando não chega a rebentar (e rebenta muitas vezes), a violência está sempre latente. Sentimo-lo nos planos apertados em mesas de refeição ou nas marcações que unem grupos de homens ou mulheres em círculos fechados – a unidade é sempre traída pelo veneno de diálogos onde corre a repressão do conservadorismo patriarcal, que tanto se manifesta em orgulho masculino, como em maledicência feminina. A misoginia internalizada é especialmente forte entre as mulheres. As críticas que lançam a Ah-Shih pela pretensa exibição de prazer que os seus gritos revelariam, durante as violações, são igualmente uma forma de se manterem em cheque umas às outras. A perceção da castidade como decoro e a necessidade constante de a exibir revelam tudo o que é preciso sobre a sua própria repressão. A forma como se traem sistematicamente, através de desconfianças e rumores, é uma das mais concretas demonstrações do constrangimento autoimposto que esta comunidade vai mantendo através da tradição.

Haverá maneira de quebrar o ciclo? Ao pessimismo da narrativa opõe-se a forma do próprio filme. E se a pergunta se mantém até aos dias de hoje, com mais ou menos peso, um pouco por todo o mundo, é sinal de que obras de confronto (e que forçam o confronto), como The Woman of Wrath, continuam a ser necessárias.

Gil Gonçalves

 

Self Driver, de Michael Pierro – Secção Cinema Fantástico | Longas

A alguém que se tenha perguntado como seria se o Collateral (Michael Mann, 2004) fosse escrito e realizado por uns falidos irmãos Safdie, após o visionamento de alguns episódios (os primeiros, os bons) de Black Mirror, Michael Pierro respondeu. Rodado com uma só câmara, quase sempre dentro de um carro, Self Driver segue uma noite na vida de D (Nathanael Chadwick), condutor de TVDE que, desesperado para pagar a renda, meter comida na mesa e conseguir estar presente na vida da sua mulher e bebé, aceita instalar uma nova aplicação que lhe promete dinheiro fácil e rápido. O senão? Trata-se de uma espécie de dark web das apps, à qual acedem todo o tipo de indivíduos envolvidos em atividades ilícitas.

Divertido, eficaz e urgente, Self Driver é a prova de que um bom conceito e uma visão artística singular valem muito mais do que um elevado valor de produção. Se o guião de Pierro é suficientemente criativo para, com humor e acidez, estar sempre a subir a parada desta viagem, é a sua capacidade de espremer todo o potencial agónico de imagens do quotidiano que cimenta não só a tensão, mas também a crítica a uma contemporaneidade deprimente e sufocante. Eis um filme que compreende que a parte mais assustadora de um cenário distópico é a que já existe, e que a sua demonstração é tão mais impactante, quanto mais familiar for o seu enquadramento. Aqui “enquadramento” não se refere apenas à composição das imagens, mas também à sua forma, à sua qualidade. Os granuladíssimos zooms que a pequena Sony de Pierro arrisca quando, aqui e ali, se vira para o mundo exterior são mais pesados do que qualquer cena de violência explícita. A cidade que se nos apresenta para lá dos vidros do carro é mais perturbadora quando exibe os seus espectros passageiros – os sem abrigo que aparecem recorrentemente, em lugares isolados, a massa indistina de classe média, que se passeia, amorfa, pelas avenidas mais iluminadas do centro – do que quando nos dá a conhecer de perto os seus criminosos. A montagem ritmada das caras e trejeitos dos clientes “lícitos” que D transporta, antes de aderir à app “má”, gera tanta ansiedade quanto a que, mais à frente, desfaz os planos em padrões psicadélicos, quando o motorista conduz sob influência.

Se pusermos de parte a fraca resolução do enredo e alguns diálogos que menorizam o desespero das imagens, teremos muito pouco a apontar a um trabalho que sabe transformar os seus parcos recursos em pontos fortes. Seja na apropriação decisiva da sua qualidade lo-fi como distintivo estético e narrativo; no aproveitamento pleno que a montagem e os variados posicionamentos da câmara fazem do seu pequeno e ambulante décor – de modo a aumentar a sensação de claustrofobia e fusão entre o homem (excelente atuação, já agora) e a sua função – ou na força que retira dos signos diabólicos que emanam de um telemóvel, Self Driver constitui uma importante adição do cinema independente ao rol de filmes que captam o sentimento definidor do nosso tempo: a ansiedade.

Gil Gonçalves