Especial Caldas Film Fest – Dias 2 & 3: Competição Emergentes & Competição Nacional

EquipaSetembro 30, 2024

O segundo dia do Caldas Film Fest continuou em grande, com exposições colectivas durante a tarde e, à noite, dois belos concertos de Baleia Baleia Baleia e Girls 96 nos Silos, parceria com o Festival Impulso. Pelo meio, vimos os quatro seleccionados na Competição Emergentes, desta vez na lavandaria do Museu do Hospital, muito bem adaptada ao festival.

No sábado, as Caldas já cheiravam a despedida, e depois de um jantar comunitário no anfiteatro, pudemos assistir à Competição Nacional, que contou com seis curtas, a respectiva Q&A e, no fim, uma entrega de prémios com muitos risos e algumas lágrimas. Foi uma edição de estreia muito agradável, que nos recebeu com uma hospitalidade sem falha, que muito agradecemos. É um até para o ano.

 

Competição Emergentes 27 de Setembro

O Pomar (2024) de Ana Manana e Joana Lourenço

Os fãs de João Canijo terão direito a guloseima. Não só o cineasta aparece num cameo à mesa de jantar (naquela que é, porventura, a cena mais forte da curta), como o setting – família portuguesa na periferia socioeconómica – deixa um ar do seu cinema a pairar no ar. Infelizmente, e não sendo expectável que se atingisse o grau de minúcia dramatúrgica de um filme de Canijo (muito menos num formato breve), o ímpeto criativo de O Pomar não se segura para lá dessas pequenas homenagens. Não há um desenvolvimento satisfatório da vertente de retrato social ou do aludido constrangimento de uma sexualidade não heteronormativa num seio familiar mais fechado. Os diálogos sofrem dos vícios recorrentes de muita ficção portuguesa, pisando sempre a linha que separa o sugestivo do forçado. Não nos é dado tempo, nem é criada tensão suficiente para que nos preocupemos verdadeiramente com as personagens – que deveriam ser o cerne deste projecto, dados os temas e enquadramento equacionados. Nota positiva para a dissonante banda sonora de João Nunes que, ainda que usada de forma algo redundante em momentos mais emotivos, marca um ponto de inflexão criativa no produto final.

Gil Gonçalves

 

As Sombras e os seus Nomes (2020) de João Pedro Amorim

As Sombras e os seus Nomes, de João Pedro Amorim, é uma adaptação de Kurze Schatten de Walter Benjamin. Através da sobreposição da voz narrativa com diversas imagens da vida mundana, João Pedro Amorim reflecte sobre experiências fugazes e a relação destas com sombras. Uma toalha a esvoaçar ao vento, um telefone a tocar, as sombras projectadas pelo lume de um isqueiro, o cineasta utiliza estas imagens para explorar o tempo, a percepção humana e a natureza efémera do dia a dia.

Francisco Sousa

 

Comezainas (2022) de Mafalda Salgueiro

Comezainas, de Mafalda Salgueiro, é uma alegria gigante. A autora filma a mãe, primeiro durante uma breve introdução no mercado municipal, e depois já na cozinha familiar, na confecção de uma grande receita para um almoço de rissóis, sopa de coentros e entrecosto – passos e procedimentos todos bem explicadinhos. Esta filmagem é usada como referência visual e como som directo para a animação, acompanhada ao piano por um Filipe Raposo excepcional. O resultado não só é maravilhoso, um prazer de ver e ouvir esta habilidosa e sempre bem-disposta cozinheira, como o desenho e a direcção artística revelam um profundo sentido de realização, harmonia, cor e movimento. Tudo cozinhado com muito amor, na caneta como na mesa. Uma obra-prima.

Rafael Fonseca

 

Terra Nahui (2020) de Leonardo Epifanio e António de Azevedo

Terra Nahui, o documentário realizado por Leonardo Epifânio e António de Azevedo, acompanha Artur Tsinivsky, um sem-abrigo que se auto-intitula o Anticristo. A curta-metragem, composta sobretudo por uma entrevista que decorre ao longo de uma noite, faz um bom trabalho ao explorar as complexidades mentais de Artur, a sua vida nas ruas, o abandono que sente e a falta de esperança de alguém que já perdeu quase tudo. No entanto, Terra Nahui peca pela falta de variação visual e estética, ao limitar-se maioritariamente a um plano fechado de Artur, o que acaba por restringir a narrativa e tornar a experiência visual algo monótona. Embora o conteúdo seja forte, a execução poderia ter beneficiado de uma abordagem mais dinâmica para criar um impacto mais profundo.

Francisco Sousa

 

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Competição Nacional 28 de Setembro

Ana Morphose (2023) de João Rodrigues

A primeira parte de Ana Morphose mostra-nos uma jovem rapariga a ler um livro antes de ir dormir. Uma sequência algo prolongada, na qual pouco acontecesse. Até que Ana, qual Alice no País das Maravilhas, cai num buraco e vai parar a um outro mundo. As peripécias que se seguem incluem detalhes muito criativos, e.g. quando Ana se olha ao espelho e, ao esfregar a cara, o seu rosto desdobra-se como se estivesse a folhear um livro. A animação em stop-motion que torna possíveis todos estes momentos é de grande qualidade, com particular destaque para os cenários. Desde um palco cercado por ondas a uma floresta cujas árvores e os frutos são feitos de páginas de livros.

Pedro Barriga

 

Não te Esqueces dessa História Avô? Não… Lembra-me Tu (2024) de Armanda Claro

Uma curtíssima-metragem, Não te Esqueces (…) abre vigorosamente ao som d’Os Rebeldes sobre imagens em Super 8 da Beira (Moçambique) nos finais dos anos 60. Imagens de flores ao vento, chegamos talvez a pensar em Bruce Baillie, mas o filme rapidamente segue para a sua sequência central, filmada em 2007, onde o titular avô, na sua casa, relembra um episódio do complicado e desastrado processo de descolonização. A chegada do seu filho Armando (pai da realizadora) a Lisboa, sem um tostão, o relato das suas peripécias pelo “avô” é cheio de vida. Não te Esqueces (…) terá, contudo, alguma dificuldade em cativar-nos, nomeadamente pela sua fragilizadora brevidade. Existe aqui um desequilíbrio muito acentuado entre a escala caseira da sua sequência central, filmada num digital cru, com o encanto das imagens em película e dos sons da abertura (vulgo “genérico”) e conclusão do filme. Se a correspondência narrativa é evidente, e se o exercício se justifica pela origem amadora das suas duas fontes, a dessintonia formal e estética acentuada das suas duas peças, aliada à duração do filme, fazem desta curta um exercício demasiadamente superficial.

Miguel Allen

 

Motus (2023), de Nelson Fernandes

Nelson Fernandes, também conhecido por Zina Caramelo, é um artista natural de Marvão mas radicado no Fundão, que conjuga múltiplas áreas nos seus trabalhos, desde vídeo e cinema de animação, até fotografia, pintura e ilustração. É possível testemunhar a versatilidade de Zina nas suas curtas-metragens de animação, que possuem um cariz artesanal bastante vincado. A predominância de tons outonais e grafite são uma constante, apesar da multiplicidade de técnicas e materiais utilizados. Para melhor compreender o processo de produção dos filmes de Zina, recomendamos a visualização de Making of – Nós (link), que ilustra a realização da curta-metragem com o mesmo nome. Motus afasta-se das técnicas mais comummente utilizadas por Zina – stopmotion, recortes e desenho a lápis de carvão – tendo nascido do manuseamento de álcool etílico numa chapa de metal. O resultado é um filme eminentemente experimental, onde, da natureza abstrata das imagens em permanente movimento, é possível vislumbrar um rosto, uma janela, um corpo que dança e o mar. A montagem e a sonoplastia transmitem a sensação de degradação e regeneração dos materiais, reforçando o carácter artesanal do filme. Nesse sentido, mais ainda que nos restantes filmes de Zina (Nós, Paths of Light, El Castigo), é possível estabelecer um paralelismo com o cinema de Stan Brakhage, nomeadamente nos filmes do realizador norte-americano onde, para além das proximidades formais e estéticas, se verifica o manuseamento direto da película fílmica (Mothlight). 

Bruno Victorino

 

Última Hora (2023) de Ricardo Guerreiro

A sociedade do espectáculo enquanto veículo de solidão. Ricardo Greenough-Guerreiro cria em Jacinto, um idoso cuja vida gira em torno de um noticiário sensacionalista, uma personagem marcada pelo isolamento em função do ecrã, seja da televisão que o acompanha em casa, seja da câmara de filmar que leva consigo no dia-a-dia. “Penso que não há ninguém com quem possam falar”, dito pelo próprio ao início e repetido no final, surge como epígrafe para alguém cuja austeridade do seu espaço pessoal contrasta com o seu desejo de ser protagonista, de subsumir a sua existência ao espectáculo. Nesse sentido, Jacinto representa a alienação do próprio espectador face ao que é apresentado nos media sensacionalistas. Para Última Hora, estes objectos da atenção mediática são até demasiado fáceis de encontrar: a morte, o “chocante, recente e desinteressante”, o “podíamos falar das coisas boas, mas não”. O cariz predatório do espaço mediático é um alvo exposto de forma estouvada, em simultâneo farsa e tragédia: Jacinto atira-se da ponte para ser notícia, mas não morrendo, coloca a vida ao dispor para isso mesmo. Esta reverência ao espectáculo surge como forma de hipnose para os restantes idosos que assistem às notícias de última hora no café, mimetizando a expressão zombie para criar paralisia. O olhar de Última Hora à solidão idosa parece ter sempre este cunho tragicómico com dificuldades em encontrar a empatia no meio da condenação quer da hipnose mediática quer da alienação comunitária (os relatos póstumos dos vizinhos que “têm sempre algo para dizer”).

Hugo Dinis

 

Telsche (2023) de Sophie Colfer e Ala Nunu

Em certos momentos, Telsche fez-me lembrar o belíssimo Ice Merchants (João Gonzalez). Não será coincidência que a co-realizadora de Telsche, Ala Nunu, tenha trabalhado na animação desse mesmo filme. Nunu pegou numa história da autoria de Sophie Colfer e ambas criaram este filme de animação 2D, no qual uma mulher, Telsche, busca por alguém – vivo ou morto, não sabemos. Curioso como um filme de temas aparentemente tão pesados, como a saudade e quiçá o luto, consegue gerar um ambiente tão relaxante, quase pacífico. Para tal muito contribui a constante presença da água, elemento tanto presente no choro como nas ondas que propelem a protagonista a mergulhar nas suas memórias.

Pedro Barriga

 

Aplauso (2023) de Guilherme Daniel

Guilherme Daniel recupera um episódio de O Arquipélago Gulag para encenar uma assembleia regional de homenagem ao Líder. A sessão é pautada pelo monólogo de João Lagarto na apresentação, desde logo dando início ao aplauso titular que não só se estende no tempo como vai progressivamente oferecendo uma dimensão desconfortável e quase fantasmagórica aos procedimentos. O discurso de João Lagarto é sobretudo marcado pelo apelo à memória e ao retorno ao passado, o que lhe confere desde logo uma contemporaneidade quase anacrónica à mise en scène. Mas enquanto que o relato de Solzhenitsyn é sobretudo pontuado por um tom geral de farsa, a adaptação aqui em causa empresta-lhe uma circunspeção dramática que oprime e reduz os presentes. A montagem deliberada permite colocar ênfase na fisicalidade do gesto de aplaudir e nas dinâmicas subjacentes ao acto em si, ao passo que a edição de som, ora destacando o aplaudir singular, ora submetendo-o à ditadura do todo, contribui para uma tensão opressora penetrante. Os rostos fechados perante a força devastadora do aplauso dão lugar a uma gradual revelação da envolvente autoritária. O fechamento dá lugar ao sofrimento, o sofrimento à subversão.

Hugo Dinis