Especial Caldas Film Fest – Dia 1: Competição Estudantes

EquipaSetembro 27, 2024

O primeiro dia da primeira edição do Caldas Film Fest arrancou da melhor forma possível. Um festival recém-nascido a dar palco a jovens vozes do cinema nacional. O anfiteatro do Museu do Hospital das Caldas da Rainha acolheu a competição inaugural do circuito, dedicada às curtas-metragens de estudantes, num belo momento de partilha, convívio e reflexão entre público e realizadores. A Tribuna não faltou e deixa aqui as críticas dos redatores que assistiram.

 

Punkada (2022) de Gonçalo Barata Ferreira

O título não engana. Esta curta escrita e realizada por Gonçalo Barata Ferreira debruça-se vertiginosamente pelos dois vetores que jocosamente compõem o seu título. De um lado, um verdadeiro punkgasm – a raiva feita música, os jovens esguios, de roupas rotas e cabelos revoltos, playing and partying longe da sociedade, numa atitude no future de constante agressividade – do outro, a fragilidade emocional e psicológica que os lança em espirais destrutivas e turva a noção de realidade. Algo fetichista e (propositadamente?) pouco sólido a nível narrativo, este projecto poderia beneficiar com um outro fôlego de duração que permitisse às personagens ganhar mais vida e propósito. No entanto, cumpre escrupulosamente o propósito evocativo, procurando (tal como o punk) o espectador através de emoções cruas. A espaços um exercício muito imersivo, fruto da quase constante banda sonora temática, à qual se alia uma salutar desenvoltura técnica. Destacamos a apurada direção de arte, uma fotografia bem conseguida e soluções interessantes de montagem que contornam eficazmente os constrangimentos de um baixo orçamento.

Gil Gonçalves

 

Esqueci-me que tinha Medo (2023) de Diogo Bento

Belo delírio expressionista, que deve tanto a uma sensibilidade cinematográfica quanto a uma pictórica. Todos os elementos visuais e sonoros confluem para a sensação de desconforto, suspense, medo e, enfim, alívio e alegria, que “Bruno” sente no mundo monocromático onde se encontra preso, longe da sua “Flor”. Um gosto naïf – apenas no plano estético – que se materializa quer na artificialidade do cenário físico, quer na diversa gama de técnicas de animação empregadas, de modo a servir plenamente a simples narrativa, mas sobretudo a condução das emoções. Um exercício que estudou bem o passado (estética e atuação reminiscentes do cinema mudo) e sabe tirar partido dos recursos do presente (animação, jogos de cor) para expor uma visão artística aguçada e cheia de intenção.

Gil Gonçalves

 

Vanette (2023) de Maria Beatriz Castelo

Amor e uma cabana. Ou, neste caso, amor e uma carrinha. Vanette dá-nos um vislumbre da vida de duas raparigas, unidas pelo amor mas aparentemente em fuga de tudo o resto. Vivem numa carrinha velha—a Vanette que dá título à curta—e vão à deriva pela vida, sem nunca realmente aterrarem, sempre à procura de sobrevivência num mundo persistentemente hostil. A curta não explora de que fogem, afinal—se é do preconceito da sociedade ou da falta de apoio familiar ou de mil e uma outras possíveis coisas —mas o peso dessa fuga é palpável.

O que a realizadora Maria Beatriz Castelo captura aqui não é o arco completo da relação entre Eva e Sónia, mas um conjunto de instantâneos—fragmentos de intimidade e tensão. Enquanto a curta transmite bem a sensação da existência transitória de ambas, ficamos com vontade de ver um pouco mais—mais contexto, mais personalidade, mais profundidade. O trope da “relação queer condenada” é terreno muito pisado, e embora desperte empatia, também soa um pouco familiar demais, quase seguro na sua melancolia. Apesar disso, esta curta é bem-vinda – é importante continuarmos a ver a representação da diversidade crescer, de preferência com tantos pontos de vista quanto possível.

Tecnicamente, Vanette é bem filmado, com visuais agrestes que espelham a dureza da realidade diária das protagonistas. É uma curta atmosférica e bem trabalhada que nos deixa com vontade de saber mais, tanto sobre as raparigas como sobre as vidas de que estão a fugir. Apesar disso, fica um pouco aquém de envolver emocionalmente o espectador. Mas deixou a vontade de esperar por uma longa de Maria Beatriz Castelo.

Carla Rodrigues

 

Entre o Mar e a Ilha (2023) José Rodrigo Freitas

Entre o Mar e a Ilha está ali num equilíbrio algo periclitante entre um registo autobiográfico e um filme de pendor artístico-experimental, mas acaba por tropeçar na execução. A premissa — um cineasta a explorar as memórias do seu pai e da vida numa ilha — é suficientemente interessante, mas a curta fica um pouco aquém de concretizar verdadeiramente o seu potencial. Assemelha-se mais a um exercício conceptual (por vezes recorda as instalações audiovisuais que podemos encontrar em museus de arte moderna, a serem projetadas nas paredes de salas vazias) do que a uma narrativa coesa – apoia-se demasiado na atmosfera sem oferecer substância suficiente para a sustentar.

Parece haver uma tentativa de evocar a mesma beleza lírica de A Metamorfose dos Pássaros, mas onde esse filme encontrou a sua poesia em visuais impecavelmente trabalhados e numa profundidade emocional genuína, Entre o Mar e a Ilha fica aquém. A narração, muitas vezes dirigida ao mar, a um barco, e ao pai do cineasta, é dispersa. Por vezes, é difícil perceber a quem Rodrigo Freitas se quer dirigir, e embora isso até possa ser intencional, acaba por ser confuso em vez de profundo.

Os planos longos, frequentemente estáticos, combinados com uma paleta de cores excessivamente dominada pelo azul sugerem o desejo de alcançar uma poesia visual, mas falta-lhe o requinte estético necessário para o conseguir. O resultado é uma curta que parece esforçar-se demais para ser profunda, mas que acaba por não dizer muito. Embora haja momentos de beleza visual e narrativa, não são suficientes para sustentar um filme que acaba por parecer desorientado. O que é pena, porque nota-se que a curta brota de algo que é importante para o cinesasta.

Entre o Mar e a Ilha é uma tentativa bem-intencionada, embora com falhas, de fundir a autobiografia com arte. Não está isenta de momentos interessantes, mas a falta de direção clara e de profundidade emocional deixou-me mais frustrada do que comovida.

Carla Rodrigues

 

Nas tuas Paredes (2023) Lua Malvar

O cinema de Rohmer, as palavras de Ruy Belo, e o tal “problema da habitação”. Um filme falado, Nas tuas Paredes segue a conversa descontraída de dois amigos num bar lisboeta. Entre imagens evocativas e algum bom humor (com uma breve dança à mistura), será pelo retrato imaginado dos outros clientes, que seguiremos uma curiosa conversa de casas. De casas e pessoas, de gestos e sorrisos, o discurso dos dois confrontado com a figura dos outros é uma visita sensível a diferentes lugares de vida, pela imaginação. E é com alguma pena nossa que Lua Malvar recorre a uma sobreposição redundante de imagens (literais) dessas tais “casas faladas”, que fariam talvez mais sentido na breve primeira parte do filme. Deixemos então aquele epílogo discordante, com a mais pequena casa do mundo, e respiremos do mundo maior das coisas pequenas que compõem os nossos “abrigos”, e que o filme fotografa nos seus primeiros minutos. Quando mais simples, um filme acolhedor na sua fragilidade.

Miguel Allen