Afirmando-se como “um canal multifacetado da cultura contemporânea da Europa Central e de Leste para Portugal”, o BEAST International Film Festival cimenta, à 8ª edição, um lugar de respeito no circuito cultural da cidade do Porto. Apesar do foco principal ser o cinema, com projeções distribuídas pelas salas do Passos Manuel, do Trindade e do Batalha, o programa estende-se a exposições, performances, masterclasses e workshops, bem como aos espaços da OKNA – organização-mãe do festival, situada na Cedofeita – e da Reitoria da Universidade do Porto. “Criado por amigos e para amigos”, com diz Rita Marinho, uma das produtoras, o festival percorreu, em pouco tempo e com curta equipa, um longo caminho. E se, por um lado, se foi expandindo em público, visibilidade e ambição, por outro escolheu compactar-se em 2025.
A edição de apenas 3 dias (a decorrer no início do Verão, ao invés de setembro, como era hábito), composta maioritariamente por curtas-metragens, viu a sua estrutura espelhar o tema central do programa deste ano: transição. Uma transição agridoce – como tem sido a história recente de povos que viram a independência ou a transformação política trazer mais abertura social, mas também muitas promessas goradas -, que se declara tão pessimista face à conjuntura atual daquela área do globo (lembremos o This change does not promise anything que dá mote a este BEAST 8.0), quanto entusiasmada pela pluralidade de olhares e abordagens que dali continua a brotar e, de tantas formas, a resistir. Esta tensão entre tudo o que mudou e tudo o que ainda está por fazer foi, sem dúvida, um dos pontos nevrálgicos de todos os trabalhos aqui apresentados. O eixo dialético que uniu estreias e reposições, documentário e ficção, narrativas concretas e exercícios abstratos, ao longo de 7 secções, 10 subcategorias e 50 filmes.
Ao cabo das oito sessões a que assistimos, não nos restam dúvidas de que a máquina do BEAST está bem oleada. A curadoria cuidada reflete tanto o empenho da organização em oferecer variedade ao público, quanto a sua capacidade de se manter fiel a uma identidade vincada: “very queer, very experimental, very East” – como nos disse a Diretora Artística, Teresa Vieira, na Sessão de Abertura do festival. Que a estes atributos se junte a nobre missão de estabelecer, em Portugal, uma ponte entre duas (serão só duas?) Europas, deveria ser motivo suficiente para o colocar rapidamente entre os mais sonantes eventos não só da cidade do Porto, mas de todo o país. Haja persistência e vontade política. Cá estaremos a torcer pelo melhor.
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Secção In (E)Motion – Quando o Telefone Tocou (Filme de Abertura)
Filme de abertura do BEAST, realizado por Iva Radivojević. Talvez por ter crescido na Jugoslávia, a realizadora aborda um interessante diálogo sobre a memória, mais concretamente o que parecem ser os momentos anteriores à guerra, que levaria à extinção daquele país, ter batido à porta da jovem protagonista. Toldado por ambiguidades na acção, narração e mesmo localização, observamos a narradora (protagonista?), recontando as suas memórias pré-guerra. Na tela, o passado torna-se presente e a memória descritiva parece desconectar-se com a realidade dos acontecimentos. O resultado é um coming of age poético, à deriva, como Lana, nas suas interações com vizinhos, familiares ou amigos. Essa tensão formal acaba por ser o grande foco de interesse de Quando o Telefone Tocou, num filme que é inteligente o suficiente para não se prolongar além do que o revolver dos acontecimentos permitem.
David Bernardino
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Secção Anima East (Curtas de Animação)
É transversal a todas as curtas apresentadas na secção ANIMA EAST a originalidade das formas, das cores nelas envoltas, da imagética (não) representacional que se metamorfoseia em sentido(s) eletrizante(s) – e vice-versa. Destacam-se A Pedra do Destino e Flores de Papoila, de Julie Černá e Evridiki Papaiakovou, respetivamente, pela deslumbrante, e muitas vezes surreal, fluidez da animação – linhas que unem todo o imaginário através da sua plasticidade, expressa nas sucessões de imagens, convidando-nos, sensorialmente, a compreender os motivos profundamente existenciais que marcam as duas narrativas, desde a solidão e a vontade de mudança, até ao questionamento de paradigmas ancestrais. A curta Quem me Dera que Fosses um Ouvido, de Mirjana Balogh, é, de igual forma, notável pela sua vibrante materialidade. No entanto, a metáfora à qual está vinculada parece insuficiente e de uma simplicidade quase infantil. Freeride in C, de Edmunds Jansons, que mereceu a Menção Honrosa do Júri, retira-nos dos imaginários complexos e alucinatórios anteriores e leva-nos numa viagem pela abstração das montanhas – mesmo sendo de uma repetitividade escusada, não deixa de ter um imenso valor como exercício em torno de formas, cores e movimentos primordiais, e do quão hipnotizantes podem ser, quando combinados com uma rítmica e concordante banda sonora. No que diz respeito às curtas que, declaradamente, pretendem manter a proximidade com a realidade que conhecemos – mesmo que com o objetivo de a subverter –, distingue-se a vencedora Consegues Ouvir-me?, de Anastazja Naumenko, pela alusão às tecnologias e ao impacto que as mesmas podem ter nas relações pessoais e no nosso quotidiano alienante, razão pela qual pode ter ganho o prémio da sua categoria, ainda que seja mais interessante pela exploração da sua peculiar estética. Aracnofobia, de Melita Sandrin, chega-nos como uma tragicomédia em miniatura, apetecível pela exposição da fobia e da necessidade de a compreender, enquanto Em Asas Cansadas, Passam, de Anu-Laura Tuttelberg, é, sem dúvida, a mais poeticamente bela curta-metragem que por aqui passou, tão tocante como triste, sentimentos que se adensam pela penetrante e sublime paisagem que revela, características que os seres que nela habitam também partilham. Uma sessão marcada pela perscrutação da imaginação, no seu infinito potencial criador.
Laura Mendes
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Secção East Doc (Curtas Documentais)
Alguém que se surpreendesse com a revelação de que a secção de documentários de um festival dedicado ao cinema da Europa Central e de Leste era a mais abertamente política de todas, provavelmente ficaria boquiaberto sempre que o sol se pusesse. Quando, minutos antes de começar a sessão EAST DOC, fomos informados de que todas as propostas que estávamos prestes a visionar eram realizadas por mulheres, eram outras as questões que nos ocupavam. Nomeadamente, se entre essas 5 curtas-metragens se encontraria arrojo formal e estético. O rasgo cinematográfico que tende a faltar a muito “cinema do real”. E não começámos muito bem…
Bimbas Contra o Capitalismo, da romena Ana Ofelia Floares, é pouco mais do que um exercício de agitprop rudimentar, centrado numa ativista, no seu pensamento feminista algo difuso e na respetiva prática militante. Cinematograficamente irrelevante, faria muito mais sentido como gesto de sabotagem a um festival de cinema do que como parte oficial da sua programação. Não está em causa a atividade e ativismo da pessoa retratada, ou do coletivo que integra (distribuir produtos de higiene feminina de forma gratuita na rua, por exemplo, merece todo o nosso apreço, ainda mais em países com sociedades e governos conservadores), mas sim o ativismo de “awareness” de um filme que não se preocupa sequer em usar as potencialidades do próprio medium para fortalecer a sua mensagem. Basta de instagram reels e adiante, que felizmente a sessão foi em crescendo!
A Casa Fica a 1117km de Distância, de Marta Semerechynska, tem uma abordagem simples, mas destila inteligentemente momentos de genuína humanidade da sua economia espacial (a ação decorre única e exclusivamente num quarto) e formal, tanto no que a ação tem de particular – a protagonista é uma refugiada ucraniana a viver na Hungria – , quanto no que tem de (atualmente, cada vez mais) geral: a procura por uma colega de casa (uma estranha, portanto) com a qual se sinta confortável para viver. Rapidamente as conversas escolhidas passam de hábitos alimentares e de limpeza para sensações de deslocamento e perda. A inteligência da montagem permite-nos, enquanto espectadores, passar por várias emoções em menos de um quarto de hora, reconhecendo, com diversão, alguns incómodos de “primeiro mundo”, que talvez todos tenhamos, e lembrando, com mais consternação, quão insignificantes podem ser, ante horrores que esperamos nunca vir a conhecer. A câmara tem a inteligência de dar todo o espaço aos rostos e aos corpos para nos guiarem. E deste primeiro assomo de cinema, passamos para a primeira proposta artística verdadeiramente relevante.
Numa captação hipergranulada, que remete para um tempo difícil de definir, Marta Ojrzýnska filma-se a ela e ao filho num contexto indefinido, nómada (adormecem e acordam vários dias na carrinha que os transporta por paisagens junto ao mar), onde pouco mais nos é dado do que as suas interações e conversas. Sem sentimentalismo ou pretensões de grande sabedoria, é na intimidade quase absoluta que conhecemos aquelas pessoas e a sua relação. As peculiaridades e alegrias universais do amor filial, tocante pela sua candura, desarmante pelo despojamento que dedica a tudo o resto, são a marca de uma promissora estreia na realização chamada O Sol Está Baixo. Merecida Menção Honrosa do Júri.
Foi sob o signo da família que seguimos, com um passo (qualitativo) atrás, para a curta premiada nesta secção, A Tarte de Maçã da Ludmila. Um filme que confia (com razão) o trabalho pesado à protagonista, mas que pouco existe para além dela. Ludmila, a protagonista, é espirituosa, abertamente anti-russa e tem histórias para contar (que, de uma forma ou de outra, já todos ouvimos) sobre os tempos da União Soviética, enquanto se dedica aos seus afazeres na modesta casa de campo, entre eles a confeção de uma tarde de maçã. Loukia Hadjiyianni, sua neta, capta com devoção tudo isto, mas as suas imagens não vão além do vídeo caseiro, tentando, aqui e ali, forçar alguns momentos mais “genuínos” de interação com a familiar que nunca surtem o efeito pretendido. Um cliché muito distante de um dos grandes momentos desta 8ª edição do BEAST.
Sem falas, com uma fotografia rigorosa e deslumbrante, uma banda sonora emotiva (mas nunca invasiva) e uma montagem sublime, somos tomados de assalto por Valerija, da croata Sara Jurinicic. Numa relativa (e deliberada) impenetrabilidade contextual, somos levados pela muito poderosa sugestão das imagens de duas mulheres que limpam um cemitério onde só estão enterradas outras mulheres. Os cortes e recortes de retratos que pontuam a primeira metade do filme apontam para as famílias mutiladas pela guerra, nomeadamente para o desaparecimento dos homens. Entregues apenas a si mesmas, as mulheres que já morreram são agora invocadas espiritualmente por atos perfeitamente materiais. A limpeza afincada das campas, cujos interstícios minerais se transfiguram, por obra de sobreposições e transparências, na montagem, em matéria orgânica, humana; os corpos das mulheres vivas onde, por obra de projeções, se “ressuscitam” os rostos das que já cá não estão. Um belíssimo poema visual sobre a preservação da memória e a manutenção da vida de quem, já cá não estando, persiste em nós. Um pequeno grande filme, que nos relembra de todas as possibilidades do cinema. Foi com esta lufada de ar fresco, e de alma bem nutrida pela sensação de que dificilmente veríamos melhor, que seguimos para as próximas sessões.
Gil Gonçalves
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Local Time Only / Secção Expanded (3 Curtas Sobre Construção de Memórias)
Simona Constantin, realizadora e curadora romena, foi convidada pelo BEAST para elaborar esta selecção de três filmes que, nas suas palavras, exploraravam “as práticas de construção da memória, analisando histórias de indivíduos que se ligam e contribuem para a sociedade, mantendo-se fiéis ao seu próprio passado. No processo, estas pessoas transformam o ambiente construído e as suas comunidades em locais de preservação de memórias e identidades, moldando futuros onde o íntimo se torna público.” Hospedou-nos depois num workshop no último dia do festival onde falou um pouco sobre o seu intuito. Buscava evitar documentários feitos com uma “abordagem etnográfica”, disse-me. Eis este grupo de pessoas, eis este bairro, apresentemos o seu modo de vida – não eram estes os filmes que lhe interessavam. Para o programa, escolheu três objectos muito curiosos, quase miniaturas, não por duração mas por escala humana. Marija+Toma é uma curta da Sérvia, de 10 minutos, filmada inteiramente em cima de uma fonte de onde o casal mencionado no título fala para a câmara. Estão ambos na terceira idade, já estiveram casados com outras pessoas, Toma teve um filho que faleceu, e mandou construir esta fonte em sua honra. Estão muito apaixonados, e explicam como se amam muito, sem complicações nem coisas de idade. Canções da Juventude é uma pequena curta amadora que entrevista utentes de um lar de idosos em Krsko, na Eslovénia. Os idosos reflectem sobre a memória que têm das coisas, e as canções tradicionais que cantam em conjunto, possivelmente o cimento mais forte para as recordações das suas vidas. Finalmente, À Luz da Memória é uma curiosíssima média-metragem de 2010, filmada por inteiro nos Jardins Cișmigiu em Bucareste, antigos parques públicos, duas décadas após a queda do comunismo na Roménia. A realizadora filma as pessoas sentadas nos bancos de jardim e a passar, músicos de rua à noite. Há uma cena brilhante com um sem-abrigo que quer que ela lhe mostre o filme depois de editado. Ele explica que não tem endereço postal, que vive no jardim. Ela não lhe dá o seu endereço, diz que o irá encontrar no parque. Mas quando estará o filme pronto? Daqui a uns meses? Posso não estar cá. É daquelas situações, reflecte o homem: ou você vai vir cá e não me encontra, ou eu vou estar cá e você não aparece. E dizem adeus e vai-se embora. O filme abre com uma citação de Ionesco: “A luz da memória, ou a luz que a memória dá às coisas, é a mais pálida de todas”.
Rafael Fonseca
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Secção experimentalEast (Curtas Experimentais)
A mais livre das secções do festival, onde o selo do experimentalismo afrouxa a amarra de uma coesão temática, esbatendo, mas nunca apagando totalmente, os resquícios programáticos. Exceção feita à abstração pura de Onde o Azul Encontra o Vermelho, de Tamás Patrovits, e de Alguns Momentos, de Miodrag Manojlovic. O primeiro caso é mesmo um exercício não figurativo (sobreposição de várias dezenas de impressões originais em risografia, vermelhas e azuis, claro está, numa animação improvisada), que assenta como uma luva na banda sonora jazzística que acompanha as imagens em movimento. A segunda, mais ancorada em formas inteligíveis (sobreposição de texturas vegetais e minerais em constante metamorfose, a preto e branco), remetendo para a efemeridade do orgânico. Há ainda Mova Oborony, de Oleksandr Isaienko, curta que fechou a sessão, e que, não tendo qualquer linha narrativa, mostra um corpo humano, tonificado, anónimo e glitchado, em coreografias bélicas, num deserto inominado. Uma quase helenística exaltação do corpo masculino e da sua musculatura, em tempos de dissolução do corpóreo no digital.
Em todos os outros casos podemos identificar, de uma forma ou de outra, temas e linhas narrativas muito concretas, com a experimentação a assentar sobretudo na forma ou no tom. Destacamos o didatismo bem humorado, meta e com sensibilidade de meme do vídeo essay O Estatuto do Ser de Leste, de Arti Siudem. Muito em linha com o tema central de transição desta edição do BEAST, foca-se na história recente da Polónia e no limbo identitário que colocava o seu povo entre as categorias “centro” e “periferia” (de Leste), após a queda do governo comunista e a iminente aproximação à cultura da Europa ocidental. Uma exploração curiosa do preconceito (e, sobretudo, do autopreconceito) que talvez possa ajudar a compreender a deriva ultra-conservadora que assola atualmente o país.
Entre uma sensibilidade mais ficcional e outra mais documental, encontramos dois exercícios mais convencionais, mas nem por isso menos interessantes. De um lado, a sensibilidade glittery pop (e algo kitsch) de videoclipe de final dos anos 70, em Noites e Dias, de Daniela Sláviková, leva-nos numa viagem surreal pelas as relações entre irmãs – os segredos, as disputas e reconciliações, as dores de um crescimento partilhado no feminino. Tudo na intimidade de um quarto, a divisão propícia para todas os vislumbres de interioridade. Do outro lado, a melancólica placidez de um tempo “normal”, captado em Super 8, e entrecortada por uma única imagem (real, captada em CCTV) de um bombardeamento, em Vivíamos Devagar em Tempos de Paz, de Kristina Jacot. Baseado num poema de Tatev Chakhian, é um atestado poderoso ao valor da tensão no cinema. Aqui lançada cirurgicamente mesmo no centro do filme, a reconfigurar tudo o que sentimos ao rever a normalidade, agora com o fantasma da guerra a pairar no ar…
Não foi premeditado, mas num texto já mais escrito com o coração (pelo adiantado da hora), prevaleceram as razões do músculo vital e ficaram os objetos menos interessantes para o fim. O premiado Hollowgram, de Laura Iancu, que justapõe imagens de uma beleza excessiva e artificial (sonhadora, talvez) do campo, a algumas (poucas) excessivamente lúgubres e dessaturadas da cidade. Se esta montagem já parecia apontar para uma aborrecida romantização da ruralidade, as frases que surgem sobre as imagens – algures entre o filosófico de cordel e o aspiracional bacoco (e num lettering abominável) – tornam o exercício positivamente intragável. E que dizer, enfim, de Um Filme de uma Mulher, de Anita Morina, onde uma cam girl fala diretamente para câmara, enquanto cozinha para o date que vem a caminho, e elabora um conjunto de considerações requentadíssimas sobre “a vida amorosa e a vida em geral”? Fiquemo-nos pela triste degenerescência daquele humor cínico e neurótico, celebrizado pela escola de comédia judaico-nova-iorquina, e vamos dormir.
Gil Gonçalves
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Secção East Wave (Curtas de Ficção)
A secção competitiva de curtas de ficção do BEAST, denominada East Wave, desenrolou-se em crescendo. As três primeiras curtas, Se Eu Flutuar, A Lei da Selva e OOTID, unem-se pela sua temática central: a adolescência. Jogos de poder, interpretações, versões de histórias mal contadas, as curtas reflectem as idiossincrasias próprias da idade, umas mais extremas do que outras. O destaque irá talvez para A Lei da Selva, filme capaz de suscitar sorrisos e repulsa, à medida que uma rapariga interage com dois rapazes na praia, colocando a nu (palavra consciente) as dinâmicas de dominação características da puberdade e adolescência. Mas foi nas três curtas-metragens seguintes que a competição aqueceu. Caneta Canhota é um thriller a lembrar o recente A Sala dos Professores (İlker Çatak, 2023). Uma mãe, que é simultaneamente professora numa escola secundária, apercebe-se que o seu filho não terá nota suficiente no exame final para entrar na universidade de Cambridge e está disposta a tudo para alterar essa realidade. Além de questionar o dilema moral e, novamente, os jogos de poder enraizados nas instituições, Caneta Canhota é genuinamente tenso e cativante, dando a volta ao seu final aparentemente abrupto com um choque de realidade e ternura familiar. Entramos então no campo da comédia, com O Viajante, mais precisamente uma comédia negra, deadpan, com algum tempero de Wes Anderson nas cores e composições. Um velho trabalhador de uma fábrica de esmaltes tem o sonho de ver o mundo, vivendo pequenas peripécias que o levarão a uma louca viagem onírica e alucinogénia. Um dos filmes mais marcantes desta edição do BEAST ficou para o fim da secção East Wave, com a curta metragem Estimulantes e Empatógenos, outra comédia negra que puxa alguns limites com belíssimo efeito. Um jovem homossexual não assumido, filho de pais ricos e satiricamente representados como esquerda caviar, volta a pedir para Kuba, outro jovem, lhe ir vender drogas a casa. Apenas um pretexto para tentar demonstrar a sua paixão secreta pelo traficante. O que se segue é uma comédia de situação que brinca com a orientação sexual, a culpa burguesa, as expectativas parentais e até mesmo com a guerra na Ucrânia. Mateusz Pacewicz, o realizador, decidiu esticar a corda e o resultado foi o melhor: uma plateia muito bem composta a rir em uníssono na Sala 2 do Batalha Centro de Cinema.
David Bernardino
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Secção How to Care For Cosmos – Sem Fim (Longa Metragem)
Sem Fim, de Wojciech Puś, foi para mim a grande surpresa do festival. Antes de entrarmos, uma visita pela página de Letterboxd da longa-metragem mostrava pontuações muito baixas e pessoas a queixarem-se de “não terem percebido”: em outros casos, já nos tem acontecido que tais dados fossem prenúncio de uma sensibilidade outsider, embora não fosse aqui o caso – Wojciech mostra-se com um grande controlo do que está a fazer. A sinopse era muito incisiva, insinuava uma densidade: Quando X|A, solitárie e à procura da sua identidade, começa um novo e complicado caso com Frank, é arrastade para um estranho jogo de sentimentos, que põe à prova as suas emoções. A relação com o misterioso M, um colecionador de beleza e juventude, parece ser a salvação e a possibilidade de um novo começo. Passei vários instantes do festival com a cabeça nas nuvens, por razões exteriores de trabalho, e várias vezes durante a primeira meia hora do filme ponderei se deveria sair da sala para terminar de enviar e-mails, adiantar compromissos. Foi com grande interesse que dei por mim colado ao ecrã por uma coisa acima de todas: uma sensação pervasiva, constante e, de facto, infinita, de aniquilamento, de queda, de fim dos tempos, de condenação, enfim tudo aquilo que cabe na palavra doom, que era a que me surgia na cabeça a vários acordes do dark ambient que preenche o filme. É verdade: Sem Fim é impossível de perceber, hermético até ao extremo. Qual destas pessoas é Frank, ou X? Não foi claro para mim até ao fim que personagens havia, quem é que o filme estava a seguir, quem era quem, o que, claro, não interessa. Além destas personagens estarem para lá do género, mostram também estar para lá de quase tudo o resto, do ectoplasma fílmico, do “este lado / outro lado” do projector. Qual é a trama deste filme? Impossível dizer. A lógica é poética, negra e perturbante. Há uma história repetida, minimal e quase em verso, sobre um palácio e um grupo de rapazes fugidos de pederastas armados com arco e flecha. Há uma imagem que surge do miasma em foco: o homem de meia-idade (M?) que parecemos perceber que é um “traficante de armas” e que captura x protagonistx num torno de desejo, perdição e consciência. Noutra das sinopses que se pode encontrar online, x realizadorx fala numa “personagem principal presa na intriga monumental dos seus desejos, das suas faltas e irresoluções” – e é mesmo esse o termo, uma intriga monumental – em transição e em curso, para um outro estádio, um de elevada abstração, onde não importa compreender o que está a acontecer, mas sim olhar para onde estamos a ir. Uma verdadeira viagem na sala do Passos Manuel, para ser feita sem perguntas.
Rafael Fonseca
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Lost in Transition / Secção Expanded (Curtas Romenas dos Anos 90)
A par com o mote que caracteriza esta edição do Beast International Film Festival – This change does not promise anything –, o programa Lost in Transition, que exibiu sete curtas-metragens romenas dos anos 90, aprofunda o tema da transição, nomeadamente política (e acidentada) na Roménia, envolvendo abordagens acerca de marginalidade, inconformismo e radicalidade, inseparáveis do questionamento do sistema estabelecido – estejamos nós a falar de sociedade, sexualidade, ou interioridade. Os filmes apresentados integram estas esferas – por vezes todas ao mesmo tempo, e em relação umas com as outras – nas suas singulares narrativas, com destaque para a ficção. A mulher e a reflexão em seu torno usufruíram, maravilhosamente, do protagonismo exclusivo em duas das curtas – Ele Serviu Café na sua Própria Chávena, de Andreea Păduraru, é um monólogo interior bem construído, onde a insignificância e a invisibilidade a que a domesticidade condena a mulher estão exibidas de forma singela e minimalista, um pouco à semelhança de Jeanne Dielman (Chantal Akerman, 1975); Ema, de Bogdan Cristian Drăgan, um meta-quadro quase impenetrável, que acompanha uma mulher em devaneio, lembra-nos Meshes of the Afternoon (Maya Deren, Alexander Hammid, 1943) e fascina-nos pelo labirinto visual e narrativo que cria. Numa terceira, O Meu Sonho Americano, de Teodor Oprea, a mulher, ainda que, por vezes, afastada do cerne, é uma entidade mística cujo empoderamento (sexual) se faz ver na circularidade intrigante da narrativa. Um documentário intercala o programa – Hotel Cișmigiu, de Florin Iepan – com uma história cheia de assombramentos pessoais que extravasam para uma reflexão coletiva impregnada de desolamento partilhado, numa estrita relação com a situação política aqui evocada. A sexualidade e o seu importante papel nas dinâmicas interpessoais, bem como individuais, são explorados em No Set, de Radu Muntean, Amor Classe Conforto III, de Viorel Timaru, e Sozinho no Mundo, de Tudor Giurgiu, verificando-se, nos dois primeiros (principalmente em Amor Classe Conforto III), um humor fascinantemente disruptivo, e sendo o terceiro uma fábula tão peculiar como surpreendente acerca de identidade de género e as expectativas a ela associadas. Um programa encantador, admiravelmente curado, que deu uma oportunidade de vida a filmes – muitos deles feitos por estudantes – que são verdadeiras pérolas de rebeldia escondidas.
Laura Mendes
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Vencedores da Competição Oficial da 8ª Edição do BEAST IFF
- PRÉMIO EAST WAVE para Melhor Filme de Ficção
CANETA CANHOTA, de Adas Burksaitis - MENÇÃO HONROSA
OOTID, de Eglė Razumaitė
- PRÉMIO EAST DOC para Melhor Documentário
A TARTE DE MAÇÃ DA LUDMILA, de Loukia Hadjiyianni - MENÇÃO HONROSA
O SOL ESTÁ BAIXO, de Marta Ojrzyńska
- PRÉMIO experimentalEAST para Melhor Filme Experimental
Hollowgram, de Laura Iancu - MENÇÃO HONROSA
NOITES E DIAS, de Daniela Sláviková
- PRÉMIO ANIMA EAST para Melhor Filme de Animação
CONSEGUES OUVIR-ME?, de Anastazja Naumenko - MENÇÃO HONROSA
FREERIDE EM DÓ, de Edmunds Jansons