De Peaux de Vaches a Bowling Saturne : uma Entrevista a Patricia Mazuy

Rafael FonsecaNovembro 22, 2024

Uma semana após o término do último LEFFEST, encontramo-nos ainda no rescaldo de uma retrospectiva de Patricia Mazuy com grande força, esclarecedora, que nos ocupou durante os primeiros dias deste festival onde foi também homenageada com um prémio carreira. La Prisonnière de Bordeaux , a sua mais recente longa, chegará às salas Medeia no início do próximo ano. Bowling Saturne (2022), a penúltima, estreou ontem em várias salas pelo país (Cinema City Alvalade, Trindade, Alma Shopping, Almada, outras localidades de Norte a Sul), pela mão da distribuidora The Stone and the Plot. É uma filmografia fabulosa que se pode assim começar a (re)descobrir em Portugal. 

Bowling Saturno (2022) de Patricia Mazuy

Do seu currículo, além da estadia em Los Angeles depois da Escola de Comércio, e do seu trabalho enquanto montadora para Agnès Varda e Jacques Demy, saltam as ‘apenas’ sete longas-metragens em 35 anos, assim como a aparente disparidade entre os seus projectos – uma observação superficial que, digamos assim, a mostra como uma cineasta do heterogéneo e da novidade na abordagem, no oposto de, por exemplo, um Hong Sang-soo, cineasta em que reina o homogéneo; a primeira longa-metragem de Patricia (Peaux de Vaches, 1989) é uma narrativa naturalista, pós-punk, que sobrevoa a vida de camponeses franceses nos anos 80, Bowling Saturne um neo-noir urbano, expressionista, La Prisonnière um melodrama “social” entre duas esposas de presidiários, Sport de Filles um drama sobre artes equestres… esta enumeração é uma divertida brincadeira: parece ser impossível prever o tema e a forma do próximo. Não são, evidentemente, filmes sem pontos em comum: as suas parecenças dariam tema para um grande tempo de conversas: passámos, com grande honra, algum desse tempo com a própria.

La Prisonnière de Bordeaux (2024) de Patricia Mazuy

Mazuy é uma cineasta da montagem: esta experiência é claríssima em qualquer um dos filmes, que são de um ritmo e corte extraordinários. É também realizadora de um cinema profundamente inteligente, que pode ser analisado em profundidade sem nunca partir de um exibicionismo didáctico de autor ou constituir um capricho académico do espectador – uma raridade! Os elementos no filme simplesmente estão , decisões de som, de montagem, de argumento com propósitos ricos, claros, ambíguos e cheios de elaborações a oferecer.

Por exemplo, Peaux des Vaches: alguma vez vimos uma primeira obra tão forte? Mazuy diz-nos que este filme é sobre camponeses – peasants é a palavra em inglês específica que ela usa – e de como queria mostrar que a vida dos camponeses em França não é uma coisa doce e querida que por vezes era mostrada no cinema, com passarinhos a cantar e com a feitura de amor no feno – tratava-se com frequência de uma vida brutal; uma brutalidade real, naturalista, fruto de coisas muito palpáveis: a relação familiar, o casamento, a infância, as máquinas agrícolas em funcionamento (que Mazuy chama o elemento mais erótico do filme) – tudo isto com uma banda-sonora instrumental post-punk que está sempre “ligada”, quase sempre alguma coisa a tocar, uma escolha rara. Abre com a cena inicial mais extraordinária que tenho em memória recente. Dois irmãos absolutamente suados, bêbados para lá da compreensão, caem, gritam e arrastam-se em casa – “Temos que sair desta terra maldita!” – bebem, caem outra vez, conseguem ver-se dezenas de gotas de suor na sua cara, partem coisas, cortamos para um estábulo onde um deles quer que uma das vacas coma uma panqueca, tentam dar de comer a panqueca à vaca, incendeiam a panqueca, incendeiam enfim também a vaca, cortamos para o exterior do celeiro onde tudo arde, um ajudante de estábulo arde também e cai morto no terreno, cortamos para uma mão a soltar um jornal que anuncia a prisão por homicídio de um dos indivíduos, um homem num autocarro, percebemos que saltámos dez anos no tempo, celebra-se um casamento na aldeia em cima de debulhadoras – tudo isto em três, cinco minutos de filme, ou parece pelo menos isso: uma cena tão rápida, assustadoramente precisa, brutal.

Jean-François Stévenin em Peaux de Vaches (1989)

O homem que saiu da prisão é Roland (Jean-François Stévenin), e vai visitar o seu irmão Gérard (Jacques Spiesser) na nova casa deste, dez anos depois daquela bebedeira. Gérard está casado com Annie (Sandrine Bonnaire) e têm uma pequena filha. Quando Roland arromba a casa do irmão à noite, este ainda não chegou, e assusta Annie e a criança: a tensão é muito forte. Roland tranquiliza-a: Quando o meu irmão chegar, ele vai ficar muito contente por me ver. E assim é.

Quando Gérard chega, fica de facto tão contente, mas tão contente com o regresso do seu irmão perigoso, alcóolico, enfim criminoso, que declara imediatamente uma festa, abre champanhe, deixa a filha cair sem querer, começa a suar… a atracção pelo abismo é imediata, um abismo profundo fundado numa experiência em comum dos dois irmãos a que não podemos aceder, talvez uma infância de uma camaradagem tão intensa que instaurou uma dívida para a vida toda, mil vezes mais forte do que o seu casamento ou do que o seu negócio na quinta. Os dois irmãos amam-se, invejam-se, odeiam-se, protegem-se, ajudam-se: absolutamente mais nenhum pode magoar um sem ser o outro – encontram-se frequentemente à porrada, na lama, entre tractores: Annie é posta de parte – a chegada de Roland suplantou o matrimónio. 

Sandrine Bonnaire e Jacques Spiesser em Peaux de Vaches (1989)

O filme tem um final que podia ser objecto de um ensaio em si, mas é este, deparei-me, o ‘problema’ com redigir um artigo sobre Mazuy: tratam-se de filmes tão inteligentes, tão propositados nos seus elementos que emergem no entanto sempre como uma natureza, nunca artificiais, de uma grande seriedade moral e psicológica, que pode qualquer um ser objecto de um ensaio em si. Este lembra Pialat, numa constelação subjectiva, através de Sandrine Bonnaire e da vida real rural (A Infância Nua, A Vida Íntima de um Casal), mas é mesmo um filme original e imperdível que surge, um portento de filme que lhe valeu na altura o César de Melhor Primeira Obra.

Em Sport de Filles (2011) a protagonista Gracieuse, cavaleira de salto, aceita um trabalho como ajudante numa coudelaria de dressage, modalidade hípica conhecida como “o ballet equestre”, onde os cavalos, ao invés de saltar ou correr, devem realizar com o cavaleiro movimentos precisos, elegantes, trotes ensaiados ao pormenor. É um emprego que começa sob a tutoria de Franz Mann (Bruno Ganz), ansiosa por se poder provar como boa cavaleira ao velho alemão, por sua vez desejoso de se libertar de uma instrumentalização da sua pessoa operada pela patroa e dona do terreno. Uma premissa muito particular.

Patricia Mazuy tem manifestado várias vezes em entrevistas e Q&A’s, de forma algo cómica, como considera a segunda metade do filme vastamente melhor do que a primeira, que não considera muito boa, e com efeito, apesar de ser um grande filme, é impressionante o enlevo e a qualidade da segunda metade, cinematicamente comprimida a um único tempo e espaço (um torneio hípico onde todas as personagens se encontram), e com uma sequência exoticamente bela na demonstração que Gracieuse faz a Bruno Ganz da sua destreza com o cavalo.

Hafsia Herzi e Isabelle Huppert em La Prisonnière de Bordeaux (2024)

Em La Prisonnière de Bordeaux, que poderemos reencontrar nas salas em 2025, Isabelle Huppert é Alma, a esposa de um cirurgião que cumpre uma pena na cadeia, local onde, no vaivém das esperas e visitas, trava amizade com Mina, mulher de um fundo social e pessoal muito menos privilegiado, vinda de muito mais longe, que também visita o seu marido. Alma convida  Mina e os seus filhos a viver com ela, num casarão cheio de espaço: esta premissa que podia resvalar tanto para uma sitcom de Verão como para uma operação de realismo brutal à la irmãos Dardenne vai por um terceiro caminho, que podemos começar a entender como Mazuyiano: uma disposição naturalista com um grande interesse pelas acções das personagens, e com um toque de género, que aqui identificamos como uma espécie de melodrama leve, quase dreampop: uma escolha supremamente inusitada, num filme doce que não sacrifica em nada a sua inteligência.

E doce não é de certeza Bowling Saturne, que deu esta semana entrada nas salas portuguesas e que é certamente uma das estreias do ano. Aqui é o noir, e entramos prego a fundo – literalmente, numa das cenas do filme – por um inferno dentro, a preto e a vermelho como a iluminação do salão de bowling que dá o título ao filme, herança de um falecido pai – além deste biscate, um caçador de animais selvagens, com peles, cornos e cabeças a ornamentar o apartamento por cima do salão – herança para dois filhos: Guillaume, ambicioso agente da polícia especial, e Armand, filho bastardo e delinquente, que se muda para o Bowling Saturno. Gloria, jovem cliente que aparece a “viver a vida como em Dostoiévski” (Mazuy) é assassinada, e temos ainda a personagem de Xuan, activista que protesta a caça e se começa a relacionar com Guillaume. O cenário (argumento co-escrito entre Mazuy e o argumentista Yves Thomas), é fabuloso, meticuloso ao pormenor, prenhe de significado. Um filme, aponta correctamente Olivier Père na sua entrevista a Mazuy, feminista: “Não percebi isso antes de o filme ser rodado e montado, mas agora, de todos os meus filmes, este é aquele em que talvez, pela primeira vez, sinto que foi uma mulher que o ‘viu e filmou’.

Bowling Saturne (2022) de Patricia Mazuy

Há tanto para escrever sobre Bowling Saturne – o candidato ideal a uma recensão académica: voltarei certamente aqui mais tarde. A herança de violência repartida de forma diferente entre o filho que escolheu a lei e o que escolheu a marginalidade – “Às vezes acho que só foste para polícia para eu não te partir a boca”, diz Armand a Guillaume a certo ponto; a sobreposição do apartamento por cima do salão, aura por cima de aura, metáfora viva: o cão, a besta, o caçador. É um filme de consagração: eis uma grande autora.

No passada manhã dia 10 encontrei-me (muito nervoso) com Patricia no âmbito da presença da Tribuna do Cinema no LEFFEST, numa sala do hotel Lapa Palace, parceiro do festival: segue a entrevista transcrita e traduzida para o português. As fotografias são de Adriano Viçoso.

Fiquei muito contente na sessão de ontem à noite [La Prisonnière de Bordeaux, Nimas] quando mencionou o cantor Bertrand Belin. Conheço a música dele…

Fiz o videoclip da canção Surfaces. Fiquei muito contente quando me telefonaram porque ele perguntou por mim, eu não conhecia o Bertrand. Ele pediu ao seu manager para que me ligasse e ele disse-me – ouve esta canção – e, quero dizer, a canção não era uma canção, era como um poema… o clip foi divertido de fazer.

Para esta entrevista, tenho acompanhado a sua retrospectiva aqui no festival até agora – vou à próxima sessão a seguir.

Vai ver Sport de filles, okay.

O seu primeiro filme, Peaux de Vaches, conta com argumento só seu, correcto?

É o único que escrevi sozinha. Mas não é um argumento assim tão bom, o filme é melhor que o argumento. E depois senti que não era efectivamente muito boa argumentista, então não voltei a escrever sozinha.

Em Bowling Saturno trabalhou no argumento com Yves Thomas. Disse numa entrevista (revista Limite) que, para ele, o filme passa por uma metáfora pela qual se pensa como o século XX deixou os homens abandonados no século XXI.

Sim. O argumento é dos dois, estivemos sempre a trabalhar juntos.

Já em La Prisonnière de Bordeaux, partilha o crédito de argumentista com três outros – Pierre Courrège, François Bégaudeau e Emilie Deleuze. Pode falar um pouco sobre os dois casos? 

Yves Thomas e eu temos uma relação de trabalho de há já muito tempo. Ele escreveu comigo e foi o argumentista principal de Travolta et Moi (1993), filme que fiz a seguir a Peaux de Vaches e que é impossível de visionar actualmente por razões de direitos – e depois ele escreveu Saint-Cyr (2000), o grande filme histórico, e isso foi em 99, portanto veja como nos conhecemos há já algum tempo. Sport de Filles foi escrito por mim e pelo meu ex-companheiro. Eu tinha outro argumento, um projecto cuja produção não consegui iniciar – esse era com o Yves – porque era demasiado caro, era outro filme histórico, e a certo ponto ele telefonou-me com a ideia do filme que se tornaria Paul Sanchez está de volta! (2018), que não está na retrospectiva. Era uma ideia muito forte e – estou a chegar a Bowling Saturne – o produtor de Paul Sanchez, que produziu depois Bowling Saturne estava muito contente e quis voltar a trabalhar comigo, mas mostrou-se preocupado com o facto de em Paul Sanchez se misturar comédia com tragédia: disse-me que queria algo que fosse um thriller feroz, apenas – um só tom, em vez de dois, no que toca a atmosfera.

A certa altura,  Bowling Saturne não estava a ir para a frente porque era demasiado dark para obter financiamento, e recebi um telefonema de um produtor do projecto que por sua vez se tornaria La Prisonnière de Bordeaux, em Janeiro de 2019. Ele disse-me que não estavam a conseguir fazer um filme que tinha sido escrito e que estava em tentativas de ser produzido: era um filme de Pierre Courrège escrito por François Bégaudeau – eu conhecia François Bégaudeau, e reuní com eles, gostei das circunstâncias sociais das duas mulheres no argumento, uma rica, outra pobre – que estão na cadeia, mas não literalmente: é como se estivessem. Achei que o filme não tinha uma história. Quis pôr-lhe uma história e queria ver os maridos. A ideia deles era que o espectador não veria os maridos, apenas as esposas, o que era para mim um pouco cerebral demais. A mim interessava-me ver porque é que as duas mulheres tinham as suas vidas subordinadas àquelas visitas, quem é que elas estavam a ver.

De entre os produtores de Bowling Saturne estão Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne.

Sim. Eles tinham já co-produzido no Paul Sanchez, mas numa capacidade muito teórica. Em Bowling Saturne a coisa tornou-se muito importante porque a certo ponto ficámos sem dinheiro para avançar, o produtor principal Patrick Soleman ligou-me  dois meses antes da rodagem, mesmo antes do Natal, estava desesperado – que belo presente de Natal, disse-lhe eu: já estávamos em pré-produção, portanto parar era uma má decisão. Perguntei-lhe se haveria algum fundo a que pudéssemos recorrer e ele disse-me que havia um possível financiamento em Valónia. Valónia é uma parte da Bélgica. Aqui, os irmãos Dardenne tornaram-se mais importantes, porque estava mais dinheiro em jogo. A pós-produção seria feita por belgas, em Valónia, e lá descobri a província de Liège. Conhece Liège? Adoro Liège. Adoraria viver lá.

Ao ver o seu primeiro filme, Peaux de Vaches, recordei – apesar de serem bastante diferentes – o trabalho de Maurice Pialat, uma inevitabilidade talvez, face a Sandrine Bonnaire, mas também pelo questão dos camponeses, da vida na vila. Há nos dois talvez um certo naturalismo em comum. Disse-nos ontem na Q&A para La Prisonnière que usou pessoas reais para as cenas na sala de espera das visitantes à prisão.

Em Paul Sanchez – esse você não viu – usei muitas pessoas reais, no Sul. Em Bowling Saturno os caçadores não são caçadores, mas são pessoas reais, são não-actores, sim [Vemo-los todos juntos em particular na grande cena final do banquete no Bowling, a reunir e a cantar].

O banquete dos caçadores em Bowling Saturno

Concordou numa outra entrevista em relação a nos seus filmes o passado ser revelado através dos silêncios, os silêncios das personagens, mas, penso eu, também através do silêncio da montagem, do próprio filme. A cena de abertura do seu primeiro filme: tão veloz – não sabemos o que aconteceu para os levar àquele ponto. E depois saltamos para a frente, dez anos, quase rápido demais para uma compreensão imediata. Há duas dimensões de um passado: os dez anos que sucederam entretanto, desde a cena inicial, e a vida ainda para trás disso – algo muito parecido está presente nos dois irmãos em Bowling Saturne – não fazemos ideia do que aconteceu na vida deles que tivesse trazido àquele ponto, a infância, a adolescência dos dois. Em Peaux de Vaches é muito forte, quando o irmão mais velho invade a casa da Sandrine, diz-lhe “Quando o teu marido aparecer, ele vai ficar super contente por me ver”.

Sim. Adoro essa deixa. E ele fica mesmo!

Está muito presente nos seus filmes, julgo, portanto – o tempo presente: o passado é deixado de fora da montagem, não é filmado, temos de lidar com o facto de o desconhecermos. Penso que em Prisonnière a personagem de Isabelle Huppert até brinca com isto, de certa forma, naquele diálogo com Herzi onde pede “Vá, pergunta-me o que o meu marido fez [para estar na prisão], vá, pergunta-me!”

Sim, é verdade.

Concorda?

Sim, concordo completamente – mas essa frase na Prisonnière não foi consciente, foi uma deixa de François Bégaudeau [co-argumentista] que eu mantive e gostei dela porque a achei bastante divertida. Há um lado de comédia no La Prisonnière.

Mas de resto concordo bastante. É também porque eu enquanto espectadora gosto quando num plano as pessoas estão vivas no tempo presente do plano – e é aí que há bons actores: quando estão no presente daquilo que estão a fazer. Se me explicarem demasiadas coisas, fico entediada, não me importo, não preciso – não é preciso ter tudo explicado num filme. Temos de acreditar no que estamos a ver – e não quer dizer que tenha de ser naturalista. Bowling Saturne é completamente não naturalista, mas é real, os actores são reais nele. Para isso, têm de acreditar no que estão a fazer, e isso dá trabalho.

Bruno Ganz e Marina Hands em Sport de Filles (2011)

Eu aprendi muito em todos os filmes, é isto que é bom, aprender sempre. Antes de Sport de filles tinha receio de actores de teatro – depois desse filme deixei de ter, aprendi a confiar neles. Trabalhei com a Marina Hands, o Bruno Ganz e a Josiane Balasko e eles são actores de teatro. Compreendi que até aí tinha tido receio de usar actores de teatro, por medo de que fossem ser teatrais ou que as cenas fossem sempre iguais e tudo isso, e na verdade é ao contrário: quando se tem os bons, eles preparam-se. Foi isso que o Achille e a Leïla [protagonistas da violenta cena íntima em Bowling Saturne] fizeram, prepararam-se, trabalharam sozinhos, anteciparam-se, tomaram a responsabilidade. E não quer dizer que se tenha de ser actor de teatro para o fazer. Hafsia Herzi [La Prisonnière] não é uma actriz de teatro mas ela faz essa preparação. Pedi-lhe para ser mais leve e mais rápida, como numa comédia italiana, e para ela isso foi uma novidade. Eu queria que ela estivesse como uma princesa, com saltos altos, maquilhagem; disse-lhe: “Nesta cena és a Mata Hari, go go go!”, porque de resto ela é muito introspectiva. Mas a responsabilidade quanto à sua personagem – ela tinha as suas próprias intuições sobre isso, e eu gosto disso, percebe? Porque permite que ela seja verdadeira no momento presente em cada segundo do plano. 

É o passado que não vemos… Tenho de lhe dizer, a cena que abre Peaux de Vaches é talvez a minha preferida, é de uma loucura tão grande a bebedeira deles…

Sim – mas compreendemos muito, eles dizem muito. Eu tinha receio de que fosse demasiado didático quando eles dizem “Temos de sair deste país maldito” – porque um irmão quer sair, o outro quer ficar… mas passa tão rápido que não apanhamos tudo. A grande ideia é a de querer obrigar as vacas a comerem os crepes em chamas.

É notável a sua experiência em montagem. A cena é no seu total muito curta… muito intensa. Essa intensidade volta quando eles se reencontram dez anos depois, nos seus olhos, nos seus gestos, estão sempre a lutar… em Bowling Saturne, os irmãos não são tão físicos mas o seu olhar está carregado com todo o passado. Em La Prisonnière, é um filme mais leve, mas nas cenas das visitas, por exemplo, a primeira cena em que a Mina vai ver o seu marido, não o vemos, cortamos directamente do olhar dela para o comboio em movimento. A intensidade do passado está nos olhos dela.

Sim, porque ela está tão maravilhosa quando se ilumina ao abrir a porta. É melhor do que vê-lo.

Como é que dirige os actores para que este ‘passado traumático’ esteja em jogo?

Não sei dizer. Sou muito concreta, muito cheia de ansiedade quando estou a rodar, secalhar sentem-no. [risos]

Em Peaux de Vaches as lutas foram improvisadas?

Estavam escritas, não foram improvisadas. Tínhamos um camião cheio de lama para pôr no pátio da quinta.

E você dizia [na Q&A] que as máquinas no filme eram o elemento mais erótico…

Sim. Mas não, não houve nenhum trabalho de duplo. Não precisávamos de duplos. Eu queria algo muito de irmãos, irmãos a lutar. Eles amam-se, mas também se odeiam, é isso.

Conseguimos perceber que quando eram míudos, seria talvez muito intenso – o mesmo com os irmãos no Bowling

Mas no Bowling nós percebemos que eles mal se conheciam. Foi tão intenso e tão sinistro e tão trágico… Na verdade, o Canal+, que financiou o filme, pediu-me que escrevesse um prólogo à volta da infância do Armand e do Guillaume. Se eu não o escrevesse não teríamos o dinheiro. Portanto eu escrevi o prólogo, mas era tão estúpido, sabe? Quando eles viram o filme perguntaram pelo prólogo. Eu disse que não tinha tido dinheiro para o rodar, desculpem. Porque era tão estúpido, íriamos precisar de carros de época, outros actores…

Escreveu e mostrou-lhes para obter o financiamento…

Sim. Ela ficou chateada [risos]. Mas compreende, eles queriam isso, eles queriam ter a explicação de porque é que o Armand se torna mau. Mas nós vemos isso!

Vemos os efeitos de…

E vemos a primeira vez que acontece. Ele não se controla, não tinha planeado matar a rapariga.

Sim, é a primeira vez.

E isto foi muito difícil, foi um objectivo a manter em mente na altura em que estávamos a preparar a cena – que seria a primeira vez dele. Porque de outra forma seria nojento passar tanto tempo a filmá-lo, sabe?

Sim, e se não fosse a primeira vez, porquê filmar?

Não sei se viu Holy Spider (Les Nuits de Mashhad, Ali Abbasi, 2022). Eu odiei esse filme, porque há repetidamente cenas de assassinato, é como se gostassem de esmagar as pessoas.

Sim, entramos em território sádico.

Uma última pergunta. Na Q&A’s de Bowling Saturne e na de La Prisonnière, disse uma coisa similar em relação a ambos: que são como “contos” [tales], como fábulas.

Sim, ajudou-me a escolher, a fazer as escolhas para ser capaz de rodar Bowling Saturno em tão poucos dias. Foi mesmo como um conto, um conto negro, mais do que uma fábula, porque não há moral. Não é uma fábula, Bowling Saturne, é um conto, não devia ter dito fábula. Acho que é uma tragédia e pronto, percebe. La Prisonnière de Bordeaux é uma fábula, torna-se uma fábula porque pára de ser naturalista. Quero dizer, torna-se um pouco..

Um pouco engraçado. Temos a rapariga pobre, a rapariga rica, no château

Sim. Mas mistura-se com algo muito real, elas são sempre reais, as atrizes. Mas o que está a acontecer é por vezes bigger than life. Ela faz algo incrível, a Mina, para “acordar” a sua ‘parceira de cela’, sabe?

No fim, ambas ganham ou aprendem alguma coisa. Você disse que a Alma ganha a sua liberdade. E que a Mina tem o amor.

Sim, mas ela ainda é pobre, no fim. Por exemplo, quando ela traz os filhos ao estabelecimento prisional para visitarem o pai e há a carimbagem, vemos a página em branco. Parte-me o coração porque ainda faltam quatro anos e meio para ele sair, e estes próximos três ou quatro anos vão ser a encher páginas com carimbos, é terrível.

No final de Bowling Saturne, certo… não é uma fábula, mas há este elemento, com a mulher activista, os animais… O filme tem um final muito curto. Disse no Q&A que ele a vê rejeitá-lo pela forma como tratou o irmão…  Ela rejeita–o por ser uma situação selvagem.

Sim, porque ela cuida de animais. Ela teria evitado que ele saltasse, e ele não consegue evitar rir-se, de alívio, e depois sente vergonha do alívio do seu riso. É terrível. É muito triste.

Não uma parábola, uma alegoria, talvez…

Sim. Não sei qual a melhor palavra. Encontre-a.

Merci. Muito obrigado.

Obrigado.

A Tribuna do Cinema gostaria de dirigir um agradecimento muito especial a Patricia Mazuy e a toda a direcção e responsáveis de produção do LEFFEST 2024.

Rafael Fonseca