Em Ilha dos Pássaros, realizado pela dupla luso-suíça Maya Kosa e Sérgio da Costa, brota um olhar virgem sobre uma espécie de Paraíso Perdido (ou Paraíso Ferido?) que vai muito além do registo documental. Num território tão exótico como estranho vamos encontrar aves feridas e um jovem ferido pelas agruras da vida. Mas o olhar nunca é exótico ou em vão. A câmara dos cineastas consegue em distâncias variadas que se tornam numa mesma olhar organicamente todo um mundo vasto e de sentido primordial. Para o jovem – e para os humanos que com ele habitam, seja o mais velho e experiente a dias da reforma, sejam as mulheres estoicas – a proximidade é constantemente dramática, tentando-se entender o estado de espírito em causa e traçar a distância justa, não-intrusiva, seja calor, seja compreensão, frio ou resguardo. Para o mundo animal, biológico, indatável – como para toda a paramentação e estrutura protetora do meio que permite reabilitar as aves – a máquina volve-se mais científica do que poética. Só que, como tantas vezes aconteceu na História da arte e das ações dos Homens em geral – da curiosidade e génio de Leonardo da Vinci ao rigor de Robert Bresson aos camponeses de António Reis – o que é visto à lupa, cruamente, sem filtros ilusórios, à beira ou aterrando na crueldade, torna-se na poesia mais acabada, porque inédita. Pioneira. Transgressora. Termos como dramaturgia, ciência e poesia são aqui tão próximos como as máquinas de fazer cinema podem ser bisturis, microscópios, telescópios ou, para quem acreditar nisso, na transcendência, medidores das temperaturas do fogo dos corpos e das almas. Daí o corajoso e límpido trabalho sobre a profundidade de campo, que é longínqua, inquebrável, inquebrantável (talvez só quebre nas cenas do aeroporto, e com todo o sentido teórico e humanista), para vermos até onde der todas as matizes e cambiantes de um mundo que se augura novo, virado para o futuro e o restabelecimento, para o bem.
E assim a tarefa de Maya Kosa e Sérgio da Costa parece – e é, sem dúvida de rebatimento porque protegida pela evidência e pela ternura – sempre em comunhão com o imperturbável do cosmos em redor: recuperar almas feridas, recuperar corpos feridos. Não se trata de falar e de trabalhar sobre dualidades, em binários, mas sim num corpo indestrinçável, convulso, esse Paraíso ferido que se quer recuperar, para não cairmos na perdição última. Corpos dos homens ou almas das aves ou vice-versa, o filme acredita nisso pela potência revelatória do objecto da máquina de filmar. Perdição última que fora (ou para lá) da Ilha dos Pássaros tanto tem que ver com a demagogia da palavra – por isso os humanos que aparecem em campo só dizem o essencial – como com a usura das imagens – por isso todas elas aparecem essenciais e só se gasta o preciso. Extasiante a cena em que o jovem (Antonin, mas sempre jovem no sentido do poeta que se correspondeu com Rainer Maria Rilke) liberta a ave curada, num crepúsculo de fusões, de plenitudes e de dependências. Êxtase e cura doce, calada, privada, as duas presenças e o universo, um divino algures e qualquer, incatalogável, sem barulho, em comunhão silente. «Uma flor nasce, vive o seu tempo, morre. E valeu por isso», disse certa vez – cito de cor – Manoel de Oliveira.
Pensemos nas imagens em infravermelhos ou em negativo de um rato ou de uma coruja que aparecem sem-aviso, como que a abanar uma cadência sólida. Pensemos nos fogos-de-artificio finais. A perfuração última e tão exata que se volve fantasia a comunicar secretamente com a tradição quotidiana. Correspondências misteriosas que finalmente parecem pertencer a um terreno comum. Werner Herzog disse certo dia: «We are, as a race, aware of certain dangers that surround us. We comprehend that global warming and overcrowding of the planet are real dangers for mankind. We have come to understand that the destruction of the environment is another enormous danger, that resources are being wasted at an extraordinary rate. But I believe that the lack of adequate imagery is a danger of the same magnitude.» Ilha dos Pássaros é, não uma ilustração dos avisos proféticos do grande cineasta, andarilho e escritor alemão, mas uma adenda, um eco, um companheiro de batalha. Muitos filmes ditos poéticos estafam-se completamente e enganam-se nessa procura de “poesia pela poesia”, “a poesia feita poesia”, a “poesia por encomenda”. Maya Kosa e Sérgio da Costa chegam lá, à poesia, partindo de uma ideia do essencial que não é separável da constituição e da sucessão das coisas e dos eventos. Eles olham, organizam, colhem, esperam, voltam a olhar. Segundo a lei e a adequação da observação funda. O resultado é toda a verdade e toda a poesia do mundo.
– Quem são o Sérgio e a Maya e qual a vossa ligação a Portugal?
Sérgio: Escrevemos e realizamos filmes juntos. Conhecemo-nos na escola de cinema de Genebra, na Suíça, em 2006. Na altura partilhávamos um interesse pelo cinema português, eu, como filho de emigrantes portugueses na Suíça e a Maya, como admiradora da cidade de Lisboa. Durante o nosso curso, desenvolvemos uma afinidade estética com a descoberta da obra do realizador português Pedro Costa. Na altura ele abriu um caminho, mostrando que é possível fazer filmes de grande qualidade, com relativamente poucos meios e um número de colaboradores restrito. Isto coincidiu com o início da era digital no cinema, onde fazer filmes tornou-se mais leve de um ponto de vista técnico e mais acessível economicamente. Depois dos nossos estudos, Portugal passou a ser um cenário inspirador no qual já filmamos três filmes.
– Como se interessaram pelo cinema?
Sérgio: O meu desejo de fazer cinema surgiu com a realização de pequenos vídeos enquanto estudava multimédia numa outra escola, e com a participação, na mesma escola, num cineclube.
Maya: Quando era criança, ia frequentemente ao cinema com a minha mãe. Ela ensinou-me a ver e a analisar os filmes. Antes de emigrar para a Suíça no final dos anos 70, a minha mãe viveu na Polónia, sob o comunismo. Na altura, o cinema polaco era muito político e de certa forma, a sua escala, encorajou as pessoas a lutar por um mundo livre. Percebi, a ver os filmes polacos dos anos 60 e 70 que o cinema tinha um poder subversivo.
– Como começaram a trabalhar juntos?
Maya: A HEAD, a escola de arte e design de Genebra onde estudamos juntos, como o próprio nome indica, não é uma escola de cinema no sentido clássico, com departamentos de imagem, edição, produção, realização, etc. O nosso curso de realização era integrado numa escola de arte. Como resultado, os alunos de cinema aprendiam um pouco de tudo e trabalhavam uns para os outros em cargos técnicos. Com o Sérgio, começamos a trabalhar juntos quando lhe pedi para fazer a câmara do meu filme de diploma. Até hoje, o Sérgio faz a imagem dos nossos filmes. A escola tinha essa coisa boa, que nos ensinou a ter uma atitude desinibida em relação à técnica. Não há necessidade de fazer 5 anos de estudos como operador de câmara para tocar numa câmara. Foi uma escola que nos ofereceu a oportunidade de aprender intuitivamente, de experimentar e errar, colocando as grandes ambições de lado.
– Li em entrevistas que a vossa prática é menos cinéfila e mais ligada a uma busca, a uma pesquisa. Inclusivamente falam mais em inspiração de livros do que em filmes. Querem desenvolver?
Maya: Com Ilha dos Pássaros, trabalhamos tendo em mente os romances de Robert Walser, um autor e poeta Suíço do inicio do seculo XX. As personagens dos seus livros são sempre uma variante de um rapaz novo, meio sonhador, meio lúcido e em busca do seu lugar no mundo, como Antonin no nosso filme. As histórias são minimalistas e ao contrário do que chamamos em francês «le récit d’initiation», os protagonistas do Walser passam por várias experiências, mas essas não os transformam em adultos bem constituídos como exige esse género literário. Esses adolescentes eternos não querem ou não podem adaptar-se ao mundo que os rodeia, provavelmente porque a sensibilidade deles não o permite. Foi assim que construímos a personagem do Antonin.
– Por último, as vossas imagens e sons parecem vir de lado nenhum, de um paraíso perdido algures. Alguns pensadores contemporâneos falam das dificuldades de fugir a uma espécie de “lei das imagens”, a esse ruído audiovisual que hoje em dia escorre pelos mais variados ecrãs e formatos, condicionando a criação livre. Pensam nisso conscientemente quando filmam?
Sérgio: Compreendo o que quer dizer e é algo sobre o qual sempre refletimos. Nesse fluxo constante de imagens, como propor algo de diferente? Na prática esta questão torna-se mais complicada, mas é verdade que sempre tentamos fugir ao que já vimos. Quando filmamos temos sempre isso presente, mas sem ser realmente consciente, acho eu, porque quando estou atrás da câmara as minhas ações são mais intuitivas do que racionais. Por isso acho que até agora não consegui trabalhar com um operador ou uma operadora de câmara, porque não consigo transmitir por palavras o que quero. Por exemplo, quando estava a filmar as operações, por vezes estava tão perto da ave e tão imerso na concentração imposta pela veterinária que me sentia como se estivesse eu a operar com a câmara, numa relação quase cirúrgica com a ave. Neste momento eu vivo a imagem e não tenho espaço para analisar o que estou a fazer.