David Bernardino da Tribuna do Cinema entrevistou Gabriel Abrantes, realizador de A Semente do Mal (Amelia’s Children) que estreia esta semana nos cinemas depois da estreia nacional no festival Motelx, com lotação esgotada. Depois do aclamado Diamantino, Gabriel abraça o cinema de género com um filme de terror clássico ainda raramente visto em Portugal. O realizador fala-nos da sua experiência a dirigir um filme de terror, das suas influências, dos seus protagonistas e da forma como criou o seu grotesco “monstro”.
Sinopse: Edward e a sua namorada Riley embarcam numa viagem ao norte de Portugal para conhecer a família há muito perdida de Edward. Ao chegar ao magnífico palacete na montanha, Edward fica encantado ao conhecer a sua mãe e irmão gémeo e ansioso por conectar com as suas origens. No entanto, nem tudo é o que parece, e Edward descobre em breve que está ligado a eles por um monstruoso segredo.
1 – Olá Gabriel e obrigado por aceitares fazer esta entrevista. A primeira pergunta que se coloca é óbvia: depois da fantasia desportiva, até meio sci-fi, de Diamantino, porquê enveredar pelo terror?
Os filmes que mais gosto têm fantasia, surrealismo, transgressão, violência, acção, suspense, política, algo relacionado com arte, e comédia. O horror como género já tem muitos destes elementos no seu ADN: é violento, muitas vezes transgressivo, surreal, fantástico, e às vezes político e/ou cómico (por exemplo Barbarian, um dos meus favoritos, é hilariante, aterrorizante e consegue ainda tratar de assuntos políticos como as relações de poder entre géneros na era pós #metoo). Por isso, senti-me em casa a dirigir horror. Diverti-me imenso. Diamantino é uma fantasia, mas também uma comédia romântica inspirada em Lubitsch, Capra, Sturges, Hawks, etc. Gosto de filmes de género, adoro acção, ficção científica, comédias românticas, crime, terror, animações infantis, etc. E realmente aprecio quando realizadores invertem ou misturam géneros, como Bong Joon-ho que faz thrillers que também são comédias (por exemplo Memories of Murder, Parasita), ou quando Lynch faz uma thriller erótico surrealista, e mistura isso com um pastiche de um policial. Esses são os meus filmes preferidos, os que misturam e brincam com os códigos dos géneros clássicos, para fazer algo de novo, que é entertaining e inteligente.
2 – Quais os principais desafios de filmar um filme de género?
Encontrar o tom certo entre comédia e filme de terror foi difícil. E este filme não será para todos. Mas alguns dos meus filmes de terror ou thrillers favoritos fazem-me rir imenso: Barbarian, Scream, Evil Dead 2, a performance de Nicholson em The Shining, Frank em Blue Velvet, Hannibal em Silence of the Lambs. Esses filmes e personagens são tão extremos e caricatos na sua maldade e perversão que alcançam um patamar de grotesco e camp que me fascina. Mas tem de ser na dose certa, senão torna-se demasiado tolo, ou uma comédia direta, como os filmes de terror de Edgar Wright, que não aprecio tanto.
3 – Em Portugal o teu filme chama-se A Semente do Mal, mas o título internacional que escolheste é Amelia’s Children. Qual é para ti o verdadeiro título original e porquê?
Amelia’s Children é o título oficial. O distribuidor português escolheu por A Semente do Mal para a versão portuguesa. Penso que as pessoas possam ter sentido que ‘Os Filhos de Amelia’ soasse a um drama histórico ou algo do género.
4 – O título português é um piscar de olho a Rosemary’s Baby de Polanski?
Rosemary’s Baby penso que foi distribuído sob o título A Semente do Diabo em Portugal. De facto, são parecidos, mas não o vejo realmente como uma homenagem.
5 – Porque é que voltaste a escolher o Carloto Cotta para protagonizar o teu filme, desta vez num duplo papel de gémeos?
Carloto fez um excelente trabalho como protagonista do Diamantino, e já tínhamos trabalhado juntos em algumas curtas. A primeira coisa que fizemos juntos talvez tenha sido Fratelli, em 2011, por isso já lá vão cerca de 10 anos a trabalhar juntos. Assim, foi natural pensar nele.
6 – O outro protagonista do teu filme é Brigette Lundy-Paine, um actor não binário americano já com algum currículo. Como chegaram a trabalhar juntos e porquê essa escolha?
Brigette tinha visto Diamantino e entrou em contacto após uma apresentação feita por um amigo que temos em comum. Fiquei fascinado pelo seu trabalho em Atypical e em Bill & Ted, assim como pela sua presença online. Estava muito entusiasmado para trabalhar com Brig e, desde então, tornámo-nos amigos próximos. Brig é incrível, considero que o que fez neste filme foi excepcional.
7 – Como foi trabalhar com o Carloto e com o resto do elenco num registo de terror? Como te sentiste a dirigir os actores neste registo?
Foi interessante. Queria realmente conseguir essa mistura de terror e comédia que me diverte nos filmes de terror ou thrillers que mencionei. A Anabela inicialmente estava um pouco surpresa quando eu ria após as cenas, mas ela entendeu exactamente o tom que queria alcançar, variando entre arrepiante, perturbadora, caricata, divertida, proferindo grandes aforismos como ‘Time is a whore.’; ou soltando piadas sobre não querer comer batatas para manter a linha.
8 – Como lidas com a gestão de expectativas do público perante um filme de terror assinado por ti?
Não pensei muito sobre isso. Tentei o meu melhor para fazer um filme polido que fosse entertaining, que abraçasse o género de terror, que tivesse uma ideia original e um monstro original por trás disso. O que mais me satisfaz no guião é o monstro que criei.
9 – A personagem mais emblemática do filme é Amelia, a velha matriarca misteriosa que vive numa mansão no Portugal rural. O trabalho de caracterização é verdadeiramente notável, transformando completamente a Anabela Moreira numa mulher grotesca obcecada com a sua imagem. Podes falar-nos deste trabalho?
Trabalhámos com Rita Anjos e David Bonneywell, dois artistas de maquilhagem prostética incríveis, que trabalharam no personagem do Night King dos white walkers em Game of Thrones, e em tantas outras produções incríveis. Para o nosso filme, eles criaram máscaras de alta qualidade e estávamos sintonizados com a direção artística. Para o personagem da ‘Amelia’ tomei como referência pessoas que fizeram tantas cirurgias plásticas que as suas feições começaram a ficar distorcidas, e isso pareceu-me uma boa reviravolta ou inversão do cliché da velha bruxa feia de nariz torto, que é um estereótipo do género, e também se relaciona com o desejo de Amelia pela juventude.
10 – És simultaneamente português e norte americano e tens contacto com essas duas realidades do cinema. O teu filme vai estrear nos Estados Unidos? Como percepcionas as duas realidades? Tinhas em vista o mercado internacional quando realizaste A Semente do Mal/Amelia’s Children?
O filme vai ser lançado em Março na América do Norte pela Magnolia, que lançou alguns dos meus filmes favoritos (Melancholia de Trier, The Host, Memories of Murder e Mother de Bong Joon Ho, Let The Right One In, The Hunt de Vinterberg). Não poderia estar mais satisfeito por a Magnolia ter decidido distribuir o filme. Na França temos a Le Pacte conosco, que é um distribuidor incrível (distribuidor de ‘Anatomy of a Fall‘ realisado por Triet, vencedor da Palma de Ouro e três Golden Globes dos EUA). Estamos incrivelmente felizes com estes parceiros e os que encontrámos na América do Sul, no resto da Europa e na Ásia. A minha família é portuguesa, mas eu nasci e cresci nos Estados Unidos, e a minha primeira língua é inglês, então estava feliz por poder trabalhar num guião que fala de duplas identidades, da armadilha de perseguir as ‘raízes’, e poder escrever em inglês sem ter depois que traduzir para outra língua, o que tinha feito em muitos filmes, incluindo Diamantino.
11 – Planeias manter-te no registo do terror para o futuro? O que podemos esperar?
Estou a escrever um filme infantil, dois thrillers e um filme de terror. Estou apenas a começar a pensar neles, ainda a desenvolver o guião. O filme de terror é sobre uma experiência estranha e perturbadora que tive quando me juntei, durante uns anos, a uma igreja presbiteriana quando tinha 12 anos. Estou entusiasmado para começar a trabalhar nisso.
A Semente do Mal estreia dia 18 de Janeiro nas salas portuguesas