Entre Sapatos Vermelhos e Maçãs Envenenadas: O Imaginário Simbólico no Cinema dos Contos de Fadas

Os cinco filmes analisados neste artigo provêm de contextos culturais, históricos e estéticos distintos, embora partilhem uma dimensão simbólica profunda e um enraizamento no arquétipo do imaginário ocidental. A observação detalhada de todos eles confirma-nos que todos convergem na mesma cruzada feminina, sublinhando-se que a actual e tão proclamada luta feminista não tem na contemporaneidade a sua maior infraestrutura. Todos estes “contos de fadas” têm feito parte das nossas infâncias, mas no nosso crescimento cinematográfico, ao serem analisados, algures entre o etéreo e o pormenorizado, torna-se inegável a forma como retratam aspectos concretos das diferentes jornadas de mulheres distintas, cuja jovialidade, coragem e heroísmo são os artefactos necessários para enfrentar os desafios e obstáculos das sociedades nas quais se inserem.

 

Snow White (1937), de David Hand et al.
The Wizard of Oz (1939), de Victor Fleming
The Red Shoes (1948), de Michael Powell & Emeric Pressburger
Peau d’âne (1970), de Jacques Demy
Pocahontas (1995), de Mike Gabriel e Eric Goldberg

 

Sendo esta uma viagem incessante de detalhes figurativos, estéticos e alegóricos, é na busca pela identidade, na constante procura pela definição ou redefinição do “eu”, que Branca de Neve, Victoria, Dorothy, a Princesa e Pocahontas se unem. Aqui importa o caminho que estas protagonistas empreendem, urge que a meta seja resposta ao trilho caminhado, onde se irá determinar e moldar o carácter, ele que é o factor catalisador da mudança, ao invés da expectável e fútil pretensão em corresponder a um padrão marital ou conjugal, que as subjugaria à anulação e reclusão.

O propósito será sempre desafiar as expectativas sociais, mas sobretudo enfrentar as pressões familiares ou de um círculo mais próximo. É esta transformação física e emocional que ao longo dos filmes lhes vai garantindo uma mutação identitária, na qual a natureza desempenha um papel importante, exaltando a força e a beleza físicas, mas também a maturidade emocional. Quase todas estas protagonistas são confrontadas com desafios e intempéries, cuja árdua resolução lhes confere a desejada transformação física ou psíquica ao longo do filme. Aqui, o conflito entre o bem  e o mal acompanha as protagonistas numa luta constante com as forças negativas, almejando uma vitória moral e ética, mais colectiva do que pessoal, e sempre em prol de um bem comum.

No fundo, todas estas as cinco obras assentam, de forma directa ou indirecta, numa fábula ou matriz mítica, mesmo que algumas sejam adaptações explícitas de um conto de fadas tradicional e outras baseadas em episódios históricos, sendo narradas em forma de lenda. Estas narrativas funcionam como ritos de passagem cuja figuração poderá ser segmentada em três etapas clássicas e distintas:

  1. Separação (da família, de casa, da infância ou da realidade conhecida)
  2. Travessia ou iniciação (da floresta, do exílio, da guerra, do conflito cultural)
  3. Retorno ou Reintegração (com transformação interior, com ou sem retorno literal ao ponto de partida).

 

A Figura Feminina como Eixo Central

Um dos pontos fortes de convergência é a centralidade da figura feminina, quase sempre jovem, em que cada uma destas protagonistas representa uma fase de maturidade psicológica de quase-mulher. Estas personagens vivem processos de transformação físicos e psicológicos, enfrentando quase todas uma prova de vida ou de morte (ou social ou emocional), num desafio extenuante que as faz renascer mais conscientes do seu valor e da sua identidade.

Comecemos por Branca de Neve que é o maior símbolo da inocência e da pureza passiva, vencendo pela rectidão, virtude e submissão. É o arquétipo idealizado do feminino e das suas representações. No Feiticeiro de Oz, Dorothy representa a curiosidade, a frontalidade infanto-juvenil e a capacidade de questionar a vida, sendo que a sua jornada é psicológica, numa busca pelo equilíbrio interior,  mesmo que para isso seja necessário enfrentar o outro e o desconhecido. Jacques Demy, em Pele de Asno, defende que a Princesa (representação feminina) faça frente à ameaça masculina, mascarando-se de alguma irracionalidade para sobreviver a essa mesma ameaça, mas escolhendo, no fim, a afirmação de si própria. Em Pocahontas, testemunhamos o romper com as normas e com a passividade tradicional, com a protagonista feminina a assumir uma postura activa e mediadora, salientando-se o seu espírito de sacrifício. É a mulher que pensa, age e escolhe com liberdade.

 

 A Natureza como Espaço de Transição e Verdade

Outro elemento comum a estas cinco obras é o o papel da Natureza como espaço de revelação e iniciação, cujo sentido agregador permite às personagens femininas um maior autoconhecimento, nem que seja pelo facto de marcar a partida para lugares desconhecidos, que as deixam à mercê do desconforto e das provações. Nenhuma das protagonistas permanece no espaço doméstico ou urbano, superando-se e afirmando-se, mesmo que seja neste desenlace que se parta para uma maior introspecção pessoal e autognose social.

A Branca de Neve procura refúgio numa floresta encantada. Dorothy é transportada para um mundo de fantasia, marcado por cenários exuberantes com cores e seres que desconhecia. Pele de Asno esconde-se num espaço rural e vive em comunhão com os elementos. Pocahontas vive imersa na natureza, escuta o vento, as árvores, os rios e fala com as flores e os animais. Este espaço natural é sempre mais do que cenário: é o lugar da verdade, onde todas elas se encontram consigo próprias e também com o sagrado. Assim, o mundo natural aparece como antítese do mundo civilizado, sendo este último frequentemente marcado pela crueldade e hostilidade (o palácio incestuoso, a cidade cinzenta, os colonos europeus).

 

A Cor e o Simbolismo Visual

As cores funcionam como expressões simbólicas do invisível, revelando emoções, dilemas e revelações. A linguagem visual destas obras funciona como prolongamento da psique das personagens. The Wizard of Oz faz uso da transição do preto e branco para a cor como metáfora da passagem da consciência mundana para a experiência interior ou onírica. Branca de Neve recorre a contrastes fortes (o preto da madrasta, o vermelho da maçã, o verde da floresta) para reforçar a luta entre o bem e o mal. Pele de Asno explora o maravilhoso e o fantástico através de cores artificiais e cenários teatrais — quase como um conto contado num palco de sonhos. Pocahontas é uma prosopopeia que utiliza cores etéreas e em constante movimento (o vento colorido, os espíritos da natureza) para transmitir fluidez espiritual e ligação universal.

 

O Confronto com o Poder Patriarcal

O percurso das protagonistas implica, muitas vezes, uma rejeição desse poder e a afirmação de uma forma de sabedoria própria, frequentemente associada ao feminismo arcaico e à natureza. Cada uma das narrativas envolve, de formas distintas, um confronto com figuras de poder masculino, geralmente dominadoras, autoritárias ou predadoras. O pai de Pele de Asno, que deseja casar com a filha. O Feiticeiro de Oz, que afinal é uma fraude. O sistema colonial em Pocahontas, simbolizado por Ratcliffe e os colonos. A madrasta de Branca de Neve, embora feminina, age com a lógica de poder autoritário e possessivo.

 

A Transcendência pelo Amor ou pela Escolha Ética

Em todas estas histórias, há uma dimensão redentora associada ao amor, mas não necessariamente no sentido romântico tradicional. Há aqui uma evolução interessante: do amor idealizado e salvador (Disney, 1937) para o amor como escolha ética e consciente (anos 70 e 90). Branca de Neve é salva pelo beijo do príncipe, talvez um símbolo do renascimento. Dorothy regressa ao lar quando compreende e adquire a certeza de que o poder esteve sempre dentro de si. Pele de Asno só se une ao príncipe depois de ter ultrapassado a vergonha e a provação. Pocahontas renuncia ao amor imediato em nome de um bem maior: a paz e a fidelidade ao seu povo.

No fundo, o que une estas cinco obras é o percurso simbólico da mulher em busca da sua identidade, por entre forças opostas — natureza e civilização, submissão e liberdade, ilusão e verdade. São narrativas de crescimento espiritual, onde o universo do conto de fadas serve de veículo para dilemas profundamente humanos e existenciais. Cada uma das protagonistas, à sua maneira, personifica o processo de crescimento individual: o tornar-se aquilo que se é, superando as máscaras, os medos e as imposições externas. E é precisamente por isso que estas histórias continuam a ressoar na actualidade, porque falam, de forma algo oculta e encoberta mas sempre poética, das transformações universais da alma.

 

PARALLAX

 

Fadas, Princesas e Bruxas

O paralelismo entre O Feiticeiro de Oz e Donkey Skin (ou Pele de Asno) destaca-se na representação dual das figuras femininas mágicas — bruxas e fadas — como guias e obstáculos nas jornadas das protagonistas. Em O Feiticeiro de Oz, Glinda, a bruxa boa do Sul, assume um papel semelhante ao de uma fada madrinha, oferecendo apoio e orientação a Dorothy, enquanto a Bruxa Má do Oeste encarna a ameaça e o poder corrompido. Já em Donkey Skin, a fada madrinha protege a princesa, ajudando-a a escapar de um destino cruel, enquanto outras figuras femininas (como a madrasta, ou o próprio rei, em algumas versões simbólicas) representam forças opressoras. Ambas as histórias usam essas figuras mágicas para reflectir dilemas morais e o amadurecimento das protagonistas. As bruxas e fadas revelam-se menos como arquétipos fixos e mais como expressões da dualidade feminina no imaginário dos contos de fadas, capazes de guiar ou destruir, segundo as suas intenções e o contexto da narrativa.

The Wizard of Oz (1939), de Victor Fleming
Peau d’âne (1970), de Jacques Demy
The Wizard of Oz (1939), de Victor Fleming
Peau d’âne (1970), de Jacques Demy

 

Sapatos Vermelhos

Os sapatos vermelhos são o símbolo mais representativo que une The Wizard of Oz e Red Shoes. Em Red Shoes, simbolizam a dualidade entre o desejo e o sacrifício, onde a protagonista é consumida pela paixão pela dança, que a leva à destruição. Já em The Wizard of Oz, os sapatos vermelhos representam um guia divino, a proteção e o poder, conduzindo Dorothy de volta ao lar. Em ambas as obras, os sapatos têm um papel central na jornada da personagem feminina, simbolizando escolhas, liberdade e o custo da realização de sonhos. Assim, reflectem desejos profundos e as suas consequências na transformação pessoal da heroína.

 

The Wizard of Oz (1939), de Victor Fleming
The Red Shoes (1948), de Michael Powell, Emeric Pressburger
The Wizard of Oz (1939), de Victor Fleming
The Red Shoes (1948), de Michael Powell, Emeric Pressburger

 

Maçãs

The Wizard of Oz e Snow White partilham um simbolismo comum, a maçã como ícone e figura de poder, sedução e transformação. Em Snow White, a maçã é usada pela Rainha Má para colocar Branca de Neve num sono profundo, vislumbrando-se a morte, enquanto em The Wizard of Oz, a maçã é um dos muitos engodos que a Bruxa Má do Oeste usa para tentar desviar a atenção de Dorothy do seu caminho, para a derrotar. Neste contexto, a cor da maçã também é representativa. As maçãs, em ambos os filmes, são vermelhas, o que simboliza paixão, desejo e perigo. A cor vermelha poderá igualmente ser associada à magia e ao sobrenatural. As maçãs, em ambos os filmes, são redondas e suaves, o que as torna atraentes e apetitosas, da mesma forma que a sua textura também lhes confere uma aparente perfeição. Em Branca de Neve, a maçã é iluminada por uma luz suave, delicada e misteriosa, o que a torna ainda mais atraente e sedutora. É também apresentada de forma estática, aparentando uma perspectiva mais íntima e pessoal. No Feiticeiro de Oz, as maçãs são iluminadas por uma luz mais intensa e sinistra, o que as torna mais tenebrosas e ameaçadoras, embora os seus movimentos rápidos e mais intensos também lhes confiram uma perspectiva mais ampla e dramática.

 

The Wizard of Oz (1939), de Victor Fleming
Snow White (1937), de David Hand et al.
The Wizard of Oz (1939), de Victor Fleming
Snow White (1937), de David Hand et al.

 

Árvores

Tanto em The Wizard of Oz como em Pocahontas, as árvores são retratadas como fontes de sabedoria e conhecimento, anciãs e transmissoras de gerações. A árvore falante de Oz oferece conselhos e orientação a Dorothy, enquanto a árvore Willow, em Pocahontas, aproxima-se de uma guardiã, assumindo-se como guia espiritual da protagonista. Ambas as árvores são da natureza e estão profundamente conectadas com ela, simbolizando a interconexão de todos os seres vivos. Em Oz, a árvore é uma parte integral do mundo mágico, enquanto a árvore Willow é uma parte representante e basilar da floresta e da cultura dos povos indígenas. As duas árvores desempenham um papel de mentoras ou guias para as protagonistas, porém, em Oz, a árvore ajuda Dorothy a encontrar seu caminho, enquanto a árvore Willow auxilia Pocahontas a entender sua conexão com a natureza e com o seu povo. Com efeito, ambas as árvores têm um simbolismo profundo, sendo que a de Oz é o garante da sabedoria e da orientação, e Willow é a simbologia anciã da flexibilidade e da adaptação.

 

The Wizard of Oz (1939), de Victor Fleming
Pocahontas (1995), de Mike Gabriel e Eric Goldberg

 

Rita Cadima de Oliveira