Encontros de Cinema do Fundão 2025 : Antevisão

EquipaMaio 16, 2025

Longe dos radares dos reputados festivais de cinema nacionais e com um conceito comunitário no polo oposto desses certames, aproxima-se, mais uma vez, um dos grandes eventos cinematográficos e cinéfilos do ano: os Encontros de Cinema do Fundão. Promovido pelo Cineclube da Gardunha, de 28 de maio a 1 de junho, na Moagem, o evento cruza projeções de filmes, debates com a presença dos autores, apresentações de livros e concertos, reunindo importantes criadores nacionais e internacionais, apostando na qualidade, singularidade e diversidade das propostas artísticas e cinematográficas. A edição de 2025 conta com retrospetivas de três realizadores europeus marcantes: Enzo G. Castellari, realizador de culto do cinema italiano, admirado por Quentin Tarantino; Pablo García Canga, um dos mais importantes e originais autores do cinema espanhol contemporâneo e Pedro Ruivo, que foi assistente de realização de alguns dos maiores nomes do cinema. A Tribuna do Cinema alia-se aos Encontros, debruçando-se sobre cinco dos filmes que serão exibidos no evento, quatro filmes de Castellari e um filme de Canga.

 

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Enzo G. Castellari

 

Il Grande Racket / The Big Racket 1976

Nos confins de uma Itália saudosista pelo imaginário do fascismo, mora o legado do poliziotteschi, o filme policial marcado pelo vigilantismo e o revanchismo perante a montanha de criminalidade que cercava o cidadão de bem italiano. Para Enzo Castellari em Il Grande Racket, esse cidadão faz-se representar por um polícia (Fabio Testi), claro, mas é sobretudo corporizado por uma massa humana trabalhadora e diligente que apenas quer sossego. Comerciantes, donos de restaurantes e bares, e até pequenos criminosos que ainda cumprem a ética do ‘bom ladrão’; todos são visados pela violência gratuita e indiscriminada de um novo grupo de delinquentes que não vê limites morais para executar um esquema de chantagem megalómano. A inspiração clássica para este tipo de filme, muito embora fundada na mesma Hollywood do Dirty Harry de Eastwood, terá forçosamente raízes nos anni di piombo italianos, mas Castellari faz questão de introduzir equidistância política no mar de violência: ao fazerem-se passar por activistas contra o capitalismo consumista a caminho de mais uma vaga de violência, os criminosos são detidos por Testi, ainda que cedo libertados no âmbito de um regime judicial retratado como permissivo, mas exonerados pelo próprio de qualquer noção política. Na face de Castellari não está necessariamente a libertinagem tida como esquerdista dos anos 70, mas sobretudo o niilismo do elemento criminoso. E é nesse contexto que Il Grande Racket é um filme tão imediatista e, sobretudo, visceral. Na Itália de Castellari, a sociedade está em falência profunda e os laços comunitários estão presos por arames. Nem mesmo as boas intenções são premiadas: o único homem que, em nome da filha pequena (representada pela filha do próprio Castellari), resolve enfrentar o gang homicida paga um preço tão brutal quanto final. As sucessivas orgias de crueldade são captadas por Castellari com uma urgência tremenda, sendo sempre envoltas numa intensidade que legitima desde logo a vingança como resposta moral definidora. Tal como a Harry Callahan, é dada pouca escolha a Testi que não a de responder à violência com a mesma violência. Mas Il Grande Racket não coloca apenas o ónus no homem singular. O fardo de libertação revanchista cabe à própria sociedade, e em última análise é o pequeno povo, vitimizado das maneiras mais bárbaras possível, que tem de pegar nas armas. O olho-por-olho derradeiro, a desumanização completa.

Hugo Dinis

 

Keoma 1976

– Why did you come back?
– The world keeps going around and around. So you always end up in the same place.

Quando Keoma se estreia, em 1976, o spaghetti western chegara à sua fase terminal. O ocaso do congénere americano, ao qual sempre estivera crítica mas umbilicalmente ligado, terá contribuído para isso: o ideal da virtude civilizadora estava arrumado no imaginário coletivo pós-Vietname, tendo já sido alvo de revisões e autocríticas por parte de Hollywood. Sem positividade para negar, o tom operático e a violência estilizada do western italiano começavam a soar a ecos de si próprios e, consequentemente, a popularidade de que o género gozara na década anterior esvaía-se, agora, das salas de cinema. Neste cenário, seria fácil cair na tentação de reavivar mitos (ou de continuar em piloto automático), mas Enzo G. Castellari viu neste estertor a rima perfeita para uma realidade em colapso. Uma que vivia de perto…

E no princípio era o fim. O primeiro plano do filme apresenta-nos o protagonista titular enquadrado por uma porta – o mesmo lugar de transição onde John Ford deixara Ethan Edwards (John Wayne) no final de The Searchers, em 1956. Nesse momento maior do western clássico, Ford registava a lei definitiva do mito fundacional americano: a violência da fronteira não tinha lugar na civilização que ajudara a criar e, por isso, ficava do lado de fora do lar. “Lá dentro” era o novo mundo de paz, virtude e valores cristãos que se substituía à “terra selvagem”. Claro que Keoma não subscreve esta narrativa (encabeça, afinal, um subgénero que se dedicou a enxovalhá-la), mas o seu objetivo já não se prende tanto com a negação destes pressupostos, quanto com o questionamento do seu fundamento, isto é, da própria possibilidade de civilização. Quando Franco Nero atravessa o mesmo limiar que John Wayne, não é um lar que se encontra no contracampo, nem a família ideal para rematar os seus valores. É um edifício destruído, numa cidade em escombros. Se em Ford a porta delimitava dois modos de vida opostos – a pertença a um ou a outro – em Castellari o limite é obliterado. A porta é detrito, índice de uma ruína geral. À semelhança de Itália, a cidade (a civilização) ruíra por dentro. O ideal estava morto à nascença. À semelhança de Itália, uma nova tirania emergira (e pela mão de um ex-confederado, numa referência direta ao espectro do fascismo) e a população da cidade fantasma definhava em peste e resignação. À semelhança de Itália, o protagonista procura um propósito e uma identidade, é órfão de mãe e filho de pai diminuído (não tem referências morais ou líderes inspiradores), é mestiço (repudiado por fações opostas) e envolve-se numa luta fratricida.

Plano final de The Searchers (1956)
Plano inicial de Keoma

A metáfora central de Keoma tem, na sua génese, um diagnóstico de recorrência histórica. Nos anos 70, o milagre económico italiano dissolvera-se em depressão. A corrupção que carcomia as instituições democráticas polarizara a sociedade, gerando um clima de violência politicamente motivada e reabrindo feridas que se julgavam cicatrizadas. O peso dos Anos de Chumbo era duplo: de um lado a insegurança quotidiana (agravada pelo ror de imagens televisivas de sequestros, execuções e atentados à bomba que inundava os lares); do outro, o trauma do eterno retorno. A guerra terminara 3 décadas antes, o fascismo caíra, mas os seus métodos persistiam na nova ordem, agora disfarçada de progresso. O milagre prometido desaparecia no rasgão do tecido social e pairava no ar a sensação de que o regresso à casa de partida era, afinal, inevitável. O cinema, e particularmente o de género, assinalou-o: do giallo ao policial, passando pelo terror, encontramos na produção desta época algumas das obras mais cínicas e pessimistas da história do medium. E é à luz deste contexto que se deve ver Keoma. Requiem para a totalidade de um programa cinematográfico e também para o país que o viu nascer.

Neste Oeste, como no país de Castellari, uma tirania substitui outra. O pessimismo face à tendência humana de repetir os mesmo erros é enfatizado pela fatalidade que permeia todas as parcelas do filme. Podemos constatá-lo tanto na circularidade da découpage, que constrange as personagens a cavalgar em círculos entre os mesmos 3 ou 4 décors, como na construção trágica da narrativa — pejada de presságios, simbologia crística e sempre ao som de uma banda sonora que funciona como coro grego, comentando, interpelando e julgando as personagens e as suas ações. Ambas invocam uma toada sentenciosa que se cumpre em pleno na montagem. A frequente justaposição de passado e presente dentro de uma mesma sequência (por vezes, dentro de um mesmo plano) — dissolve a linha entre o instante vivido e a recordação. A memória nunca é registo separado, mas corpo presente. Esta persistência do passado inibe qualquer possibilidade de superação. Tudo já foi, tudo continua a ser. E, contudo… Keoma recusa-se a ser um agente passivo dessa repetição: é também um corpo em conflito com ela. A sua luta será menos contra vilões de carne e osso — meras marionetas de um mal difuso — do que contra a inércia de um mundo que se acomodou a esse mal. É uma luta que já não será para si, ou para aquele tempo e lugar, mas para um bebé que vem a caminho. Um “homem livre, que não precisa de nada”, como grita o cowboy ao destino. É o oposto de uma bênção — é um aviso. A liberdade que se proclama é feita de solidão e despojamento. De exílio. Não há futuro nesta terra, apenas a possibilidade — remota, diluída — de um recomeço algures, noutro lugar que o filme, sabiamente, recusa mostrar.

Gil Gonçalves

 

Quel Maledetto Treno Blindato / The Inglorious Bastards 1978

É difícil falar sobre Quel Maledetto Treno Blindato, de Enzo G. Castellari, sem falar de Inglorious Basterds, de Quentin Tarantino. O contrário também deveria ser verdade, mas será certamente menos comum. E, de facto, não deixa de ser interessante olhar para os dois filmes e realizadores, e traçar eventuais paralelismos. O mais curioso é que, tirando as proximidades narrativas – um grupo de soldados americanos encontra-se em solo francês durante a ocupação nazi no decorrer da 2ª Guerra Mundial -, muito mais é o que os separa, temática e formalmente, que aquilo que os une.

Independentemente dos méritos e deméritos do filme de Tarantino, e da sua habitual e relativa aproximação à série B italiana (western spaghetti, etc.), há uma natureza artesanal muito vincada no filme de Castellari, mesmo que conte no seu elenco com estrelas hollywoodianas como Bo Svensson e Fred Williamson, que não se encontra no filme do realizador norte-americano. Mesmo em termos da história propriamente dita são notórias as diferenças entre os dois filmes. Em Inglorious Basterds, por exemplo, há um prazer sádico dos personagens de Tarantino em aniquilar, de diversas formas e feitios, os seus oponentes nazis. Contrariamente, os protagonistas de Castellari apenas querem encontrar o caminho de fuga para a neutral Suíça, ainda que, por força das circunstâncias, se vejam obrigados a adotar semelhante modus operandi

Como exemplar paradigmático da série B, Quel Maledetto Treno Blindato não tem qualquer pretensão artística em ser mais do que um divertidíssimo filme de ação, com um par de cenas absolutamente memoráveis e icónicas, como o momento em que os nossos bastardos encontram um grupo de jovens mulheres alemãs desnudadas numa cascata ou toda a parte final do filme passada no comboio. Não estamos propriamente perante uma subestimada obra-prima do cinema italiano, mas, acima de tudo, sentimos nas imagens aquilo que terá sido um tempo muito bem passado e carregado de espontaneidade entre elenco e equipa de filmagem, e isso, muitas vezes, é tudo o que precisamos do cinema.

Bruno Victorino

 

Escape from the Bronx 1983

Será em tudo uma questão de “ganhar altura”. Tal como no clássico de Lang (Metropolis), a cidade funciona verticalmente e, Escape from the Bronx relata, em contínuo, um conflito entre o que está “em cima” e o que está “em baixo”. A metáfora é simples, talvez, mas o foco aqui não será, finalmente, “quem explora quem” – não subsistindo uma verdadeira exploração, mas antes uma vontade declarada de supressão. O Bronx é um enclave no interior da metrópole (na sequência dos eventos de Warriors of the Bronx (1982), que antecedem este filme), a sua população uma (quase) comunidade de gentes oriundas de diferentes origens e credos, refugiados de uma guerra capitalista, agora sujeitos a uma “limpeza” definitiva das ruas da grande cidade. Da gentrificação, ou pura e simplesmente do genocídio, trata-se aqui de um império (urbano) que se impõe sobre uma população “indesejada”. Como nos revela o plano de abertura, o propósito é simples — convite a desocupar o Bronx e rumar a um Novo México longínquo e desconhecido. Àquela área da cidade está destinado um projecto de renovação “inovador”, do qual nem todos poderão, necessariamente, fazer parte — dado o seu alcance muito limitado naquela terra do capital. Talvez se pense, até, em instalar ali um resort de luxo; Escape não o conta, e o que se segue é uma incessante sequência de combate e morte. 

O gesto político de Castellari não será tanto o de expor uma problemática que nos parece, hoje, mais actual do que nunca. Pela voz das suas personagens, coloca-se afinal o dilema — uma população que se defende, e que quer chegar “lá acima”, é certo, mas a que custo? As respostas não serão tão simples quanto o filme aparenta pela sua heróica artesanalidade. A escalada é dura, e o preço a pagar é elevado — isso já o sabíamos — mas no que nos tornaremos nós quando chegarmos, enfim, ao lugar ocupado por aqueles que nos agridem? Como grita o pai do protagonista, Trash, por hora do assalto que lhe será mortal: defender uma casa é questão moral. Por isso, no fim da guerra, a necessária questão será a de subir ou voltar a descer. Trash, esvaziado do seu ódio e enfim solitário entre tantos outros guerreiros, não nos saberá responder. E, no profundo pessimismo do filme em relação à raça humana, a única resposta que se pressente é a solidão. Aquela que Trash manifesta logo na sua introdução, em luta contra o gigante pássaro metálico; a independência que evocará pelo seu percurso em cena, ao desbravar as escadas da cidade sobre a sua mota.

Paisagens de guerra – Nova Iorque nos anos 80, Berlim em 45, Gaza — a imagem de um mundo que, quarenta anos mais tarde (ou melhor, sessenta), continua, assim, a auto-incinerar-se até uma destruição total.

Miguel Allen

 

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Pablo García Canga

 

Las Tierras del Cielo 2023

O filme do realizador espanhol Pablo García Canga é composto por singelas conversas entre vários personagens em diferentes situações,  dialogando sobre a vida e tendo por base a experiência de visualização de um mesmo filme. Através dos créditos finais, ficamos a saber que o filme comentado não existe, tendo sido imaginado com forte inspiração em Mother, do realizador japonês Mikio Naruse. O filme hipotético acaba por se constituir como elo de ligação entre os diversos protagonistas e contextos, estabelecendo rimas, repetições e variações, que são incorporadas nos vários diálogos entre eles. Nesse sentido, é quase como se estivéssemos dentro de um filme de Hong Sang-soo. A teia que se vai enleando, cena após cena, constrói uma imagem do tal filme imaginado, apenas formulada pelas palavras, reações e interpretações de cada um à exposição a uma determinada obra de arte.

Filmado a preto e branco e encenado com singular elegância durante uma noite em Madrid, testemunhamos um casal a conversar na cama, um grupo de três amigos na sala, dois amantes ao telefone e mãe e filha num quarto, em conversas amenas, simples, mas plenas de empatia e compaixão. Las Tierras del Cielo é um filme sobre cinema e cinefilia, capaz de, através da palavra dita, projetar no espectador a densidade dramática de cada um dos nove protagonistas, que ficamos a conhecer pela forma como nos contam detalhadamente a sua história do filme. E assim, na plena comunhão entre realidade e ficção, se assinalam os pequenos prazeres da vida, que brotam da simplicidade de uma conversa em redor de um filme.

Bruno Victorino